Sérgio Telles
As guerras culturais travadas hoje se assemelham às antigas (e atuais) guerras religiosas. Regidas pelo politicamente correto, as redes sociais estimulam a intolerância dos combatentes e montam fogueiras inquisitoriais para o sacrifício dos que caem em desgraça. Entre as causas em disputa, têm lugar de destaque as questões ligadas à sexualidade, quer seja no que diz respeito às diferenças entre homens e mulheres ou as ligadas às questões de gênero.
São temas muito amplos. Sabemos que não é suficiente a realidade concreta do sexo biológico para definir a identidade sexual de cada um. Sentir-se homem ou mulher (ou nenhum dos dois propriamente) decorre de complexos processos psíquicos de identificação ocorridos durante a infância. Uma via para entender isso é observar como as crianças lidam com a diferença dos sexos, com o fato de algumas delas terem pênis e outras não. Por desconhecerem anatomia e biologia, as crianças elaboram fantasias especificas, chamadas de “teorias sexuais infantis” por Freud. Partindo da ideia de que originariamente todo ser humano tem um falo, elas concluem que aqueles que não o tem, foram dele privados em decorrência de rigorosa punição. A diferença dos sexos não é vista como um dado natural e sim como produto de uma intervenção externa, uma castração realizada por um dos adultos cuidadores, na maioria das vezes o pai. O mundo fica então dividido entre castrados (desvalorizados) e não castrados (valorizados). Instala-se assim o complexo de castração – os meninos para sempre marcados com o orgulho de ter um pênis e o pavor de perdê-lo, e as meninas com a inveja do mesmo.
Esse importante aspecto da teoria freudiana, que tem grandes desdobramentos, foi fortemente atacado a partir dos anos 70 pelas feministas, que acusavam a psicanálise de não ter uma teorização adequada da sexualidade feminina, de reduzir a mulher a um homem castrado.
Essa crítica é equivocada pois confunde a teoria psicanalítica com a teoria sexual infantil. Ao invés de endossar a concepção infantil que divide os seres humanos entre castrados e não castrados, a psicanálise mostra a diferença entre o pênis, órgão corporal dos homens, e o falo, uma construção simbólica, cuja posse representa uma ansiada completude impossível tanto para homens como para mulheres. A completude fálica é uma fantasia narcísica onipotente, que nega as falhas e deficiências que nos são inerentes, desde que somos, homens e mulheres, seres incompletos e, por isso mesmo, desejantes. A psicanálise não é inimiga das feministas e sim uma aliada, pois fornece instrumentos para denunciar a persistência das teorias sexuais infantis na organização social, constituindo elas a base fantasmagórica do patriarcado e sua ideologia.
As formas como se organizam as identidades em torno da sexualidade não se restringem à binaria divisão de homens e mulheres. A moral sexual mudou, possibilitando a expressão do erotismo sob modalidades variadas, como mostra a sigla LGBT que não cessa de crescer (hoje LGBTQIA+).
É nesse contexto conturbado que a influente APA (American Psycological Association) lança um conjunto de diretrizes sobre o atendimento psicoterapêutico de homens e meninos (https://www.apa.org/monitor/2019/01/ce-corner). Baseado em pesquisas nos últimos 40 anos, o documento mostra como nos Estados Unidos os homens efetivamente detêm o poder profissional e político. A revista “Fortune” mostra que, em 2018, 95,2% dos executivos das 500 maiores companhias norte-americanas é formada por homens. Ainda segundo a revista, em 2017, nas 16 maiores corporações daquele país, os homens constituíam 80% dos executivos. Também em 2017, constatou-se que 81% dos congressistas eram homens.
Por outro lado, os homens cometem 90% dos assassinatos e são 77% das vítimas. Suicidam-se 3,5 vezes mais que as mulheres. Têm uma expectativa de vida de 4,9 anos a menos que as mulheres. Os homens têm maior descuido com a saúde – bebem e fumam mais, além de se exporem com mais frequência a comportamentos de risco.
Seriam essas as evidências do alto custo trazidos pela forma como os homens são educados: eles devem ser “durões”, não podem mostrar fragilidades e vulnerabilidades, não são autorizados a expressar seus sentimentos, com exceção dos agressivos. Valores tradicionais da masculinidade – como competitividade, o exercício de dominação, a agressão, o estoicismo – podem ser tóxicos, danosos para o indivíduo e para a sociedade.
O documento da APA imediatamente suscitou controvérsias. Muitos o viram como uma peça feminista, um ataque às qualidades dos homens, uma patologização da masculinidade. Algumas das críticas são válidas, pois o documento parece seguir uma agenda política e focaliza a sintomatologia psicológica do homem como decorrente exclusivamente do patriarcado, que ao mesmo tempo em que dota os homens de privilégios, poder e controle, cobra um altíssimo preço em termo de estresse, exigências e cobranças. Para seus autores, a masculinidade é um conceito construído socialmente e reproduzido através da educação, com isso desconsideram a importância dos fatores biológicos e hormonais, que não podem ser esquecidos.
É verdade que embora intuitivamente reconheçamos as diferenças de comportamento entre homens e mulheres, não é fácil fazer uma discriminação precisa, ainda mais agora quando os padrões de gênero perderam a antiga e estável configuração. Em artigo onde ridiculariza o documento da APA, Zizek diz que as características ali atribuídas à masculinidade tóxica, na verdade são qualidades heroicas humanas e não apenas masculinas, tanto assim que as mulheres também as possuem, exemplificando com Antígona e as heroínas dos seriados “Homeland” e “The Killing”.
Abstraindo os radicalismos, o documento aborda corretamente questões importantes. É difícil não concordar com a discriminação entre masculinidade e machismo (agora rebatizado como “masculinidade tóxica”), reconhecendo os efeitos prejudiciais provocados por este último nos próprios homens e nas mulheres. A questão da afetividade também é significativa. Seria excessivo dizer que aos homens só é permitido a expressão de uma única emoção – a agressão, que as demais devem ser disfarçadas, escondidas, pois são “coisas de mulher”?
Como o menino aprende a fazer “coisas de homem” e deixa de lado as “coisas de mulher”? Mais uma vez a resposta são as identificações com os representantes de cada sexo que nos servem como modelos, o pai e a mãe. Para Freud, as mulheres teriam mais dificuldade em organizar sua vida amorosa e sexual por terem de trocar seu primeiro amor (mãe), um objeto homossexual, pelo amor heterossexual – o pai. Tal vicissitude não ocorreria com o menino, que manteria sua escolha heterossexual (a mãe), em seus amores futuros. O psicanalista Robert Stoller se afasta um tanto da ortodoxia freudiana ao propor que, na verdade, a vida do menino é mais difícil, pois ele está completamente identificado com a mãe, ou seja, identificado com uma mulher, e tem de fazer um extraordinário trabalho interno para se afastar dessas identificações femininas e adquirir as identificações masculinas com o pai. Ele tem de aprender a ser homem e deixar de ser uma mulher, tarefa do qual as mulheres são poupadas, pois sua identidade com a mãe deve ser mantida sem grandes sobressaltos.
Seguindo a linha de Stoller, não poderíamos pensar que os excessos caricaturais do machismo (“masculinidade tóxica”) são formas defensivas que os homens usam contra a antiga identificação feminina, uma maneira de manter bem separados os “modos de homem” das “modas de mulher”, como diria o mestre Gilberto Freyre?
O documento da APA apesar de criticável, é útil para afinarmos nossa capacidade de avaliar até onde as diferenças entre homens e mulheres são naturais ou culturais, e de como elas se organizam socialmente em estruturas de poder. Por mais que o patriarcado seja a “bete noire” do feminismo, com tudo o que isso implica de exagero e distorções, não é mais possível negá-lo ou naturalizá-lo. Somente reconhecendo seus efeitos prejudiciais em nível privado e social podemos lutar para corrigi-los.
Publicado no suplemento “Eu&Fim de Semana” do jornal “Valor Econômico” em 26/04/2019