Dra. Alcina Juliana Soares Barros ([email protected])

Psiquiatra Forense. Psicoterapeuta de Orientação Analítica. Doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS.

 

Introdução

            O conceito de contratransferência é quase tão antigo quanto a psicoterapia em si (HAYES et al, 2018), tendo sido introduzido por Freud em 1910, após o descobrimento da transferência (BETAN et al, 2005). Sua definição traz certas dificuldades, visto ser entendida de diversas maneiras, segundo a época e o aspecto teórico que se considere. A evolução do conceito pode ser dividida em quatro fases: a) a formulação inicial de Freud; b) os trabalhos de Paula Heimann e Heinrich Racker, que ampliaram o conceito; c) as décadas de 1970 e 1980, com o emprego intenso do conceito “totalístico”; d) a situação atual de revisão e cautela com a utilização da contratransferência e a proposta de um conceito específico. (BERNARDI, 2006; HINSHELWOOD, 2001; EIZIRIK & LEWKOWICZ, 2005).

A contratransferência é fundamental não apenas para a prática da Psicanálise e da Psicoterapia de Orientação Analítica, que se ocupam em estudá-la de maneira aprofundada e já a reconheceram como um instrumento fundamental para o tratamento, mas também para todas as áreas de atuação do psiquiatra. Dentro da psiquiatria forense, o emprego do termo contratransferência já recebeu algumas críticas, por refletir as bases clínicas da relação médico-paciente (SATTAR et al, 2004). As interações entre o perito psiquiatra e o examinando, embora sejam diferentes da prática clínica, também contemplam respostas emocionais de ambas as partes. Essas respostas possuem o potencial de enfraquecer a neutralidade e objetividade do psiquiatra forense, elementos importantes para a manutenção do foco do trabalho na busca pela verdade (SATTAR et al, 2004). Por neutralidade, entende-se tanto uma condição objetiva de ausência de qualquer interesse no caso em julgamento, quanto especial atenção às questões subjetivas, principalmente às de natureza contratransferenciais. (SATTAR et al, 2004; TABORDA & ARBOLEDA-FLÓREZ, 2006). Ademais, outros riscos podem estar envolvidos, como prejuízos à saúde emocional dos peritos, tais quais aqueles provenientes de burnout, traumatização secundária e vicária.

A prática forense, por sua vez, envolve malabarismos devidos à multiplicidade dos casos que rapidamente se desenvolvem, respostas imediatas às necessidades de advogados, prazos judiciais curtos, requisição de testemunho, reagendamento de perícias, audiências e depoimentos etc. (SIMON, 1994). Sugeriu-se então o uso da nomenclatura “contratransferência forense”, significando as reações experimentadas pelos psiquiatras envolvidos em tarefa única e multifacetada, incluindo sentimentos relacionados ao examinando, sistema judicial e seus integrantes, além das facetas específicas do caso (SATTAR et al, 2004; SIMOPOULOS & COHEN, 2015). Dentro da extensa variedade de casos legais (perícias com fins de interdição, avaliação de dano moral/emocional, guarda e visitação, capacidade para testar e doar, capacidade laboral, dependência toxicológica, etc.), um tipo particular de perícia é a avaliação da responsabilidade penal de criminosos sexuais, situação que pode suscitar respostas emocionais intensas nos peritos, em razão da natureza do delito e suas características perversas.

O objetivo do presente estudo é realizar uma revisão narrativa das publicações sobre a contratransferência envolvida nas atividades desempenhadas por psiquiatras forenses, particularmente em avaliações de crimes sexuais, tendo em vista tratar-se de importante tema, porém com limitado número de investigações na literatura médica e psicológica.

Método

Este é um estudo qualitativo de revisão narrativa, apropriada para discutir o estado da arte do assunto escolhido. Consiste em ampla análise da literatura, sem estabelecer uma metodologia rigorosa, sendo útil para a aquisição e atualização do conhecimento sobre a temática proposta, evidenciando novas ideias, métodos e subtemas dentro da literatura examinada (VOSGERAU & ROMANOWSKI, 2014; ELIAS et al, 2012).

Artigos indexados nas bases de dados PUBMED e PsycINFO foram recuperados durante o mês de abril de 2019. Os descritores utilizados foram: countertransference and sex(ual) crimes e countertransference and Forensic Psychiatry, sem delimitar um intervalo temporal. Os critérios de inclusão das publicações foram: ter as expressões usadas nas buscas no título ou nas palavras-chave; que o artigo se relacionasse com a contratransferência de psiquiatras forenses e/ou sua associação com a avaliação de crimes sexuais; e que o texto estivesse em língua portuguesa, inglesa ou espanhola. Foram excluídos os artigos sem abstracts/resumos, artigos que não se enquadravam nos critérios de inclusão, duplicados, capítulos de livro, comentários sobre livros, dissertações e teses. Em seguida, foi realizada a leitura completa de 24 textos, excluindo-se aqueles que não abordaram especificamente a contratransferência pericial na avaliação de crimes sexuais. Finalmente, os artigos incluídos passaram por uma observação das características gerais, como autores, ano de publicação, língua, objetivos, delineamento e conclusão. Não foram usadas técnicas qualitativas e/ou quantitativas específicas de tratamento de dados, tendo sido feita a análise individual dos textos, não tendo participado juízes.

Resultados

A busca dos artigos para esse estudo identificou 260 referências sobre a contratransferência no setting psiquiátrico-forense e/ou sua associação com crimes sexuais, nas bases de dados referidas, das quais 7 publicações foram incluídas na revisão (Figura 1). Todos os textos selecionados estavam escritos em língua inglesa.

A Tabela 1 exibe a síntese dos artigos revisados. Não foram encontrados artigos de revisão sistemática sobre a contratransferência pericial em ambiente psiquiátrico-forense, relacionada à avaliação de crimes sexuais, uma vez que as investigações e publicações sobre o tema ainda são escassas.

Discussão

A leitura dos artigos permitiu verificar que a contratransferência é uma questão técnica e ética dentro da psiquiatria (CICCONE & CLEMENTS, 1984), não estando limitada ao setting terapêutico. Ela deve ser reconhecida também no ambiente psiquiátrico-forense, em razão das potenciais fortes reações e sentimentos que a interação com examinandos/criminosos podem despertar no psiquiatra forense e de suas repercussões no trabalho e na saúde dos profissionais (SCHETKY & COLBACH, 1982; SILFEN & DAVID, 1993; REID, 2009; BARROS et al, 2014; SIMOPOULOS & COHEN, 2015). Como assinalado por Kappor (2008): “Meu treinamento psicodinâmico me diz que aqueles que afirmam que não há papel para emoções na prática forense estão apenas utilizando os mecanismos de defesa da negação, isolamento afetivo e intelectualização.” Deste modo, no ambiente forense, o perito deve identificar precocemente a presença tanto da contratransferência negativa quanto da positiva e adquirir domínio sobre uma variedade de respostas emocionais e cognitivas evocadas (SIMOPOULOS & COHEN, 2015).

Sentimentos contratransferenciais devem ser considerados como um importante tópico a ser discutido nos programas de treinamento forense, tais quais residências médicas em Psiquiatria Forense e cursos de especialização para o trabalho em instituições de saúde mental forense destinados aos médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, destacando-se a indicação de supervisão dos casos, suporte dos colegas e tratamento psicoterápico pessoal para o adequado manejo da contratransferência forense (REEDER & SCHATTE, 2011; BARROS et al, 2014). Ademais, foi observado que a maior parte dos conhecimentos sobre a contratransferência forense ainda se baseia em estudos teóricos, estudos de casos e narrativas clínicas, com poucas pesquisas empíricas (VOGEL & LOUPPEN, 2016).

Artigos sobre a contratransferência no tratamento de agressores sexuais ou de pacientes vítimas de violência sexual são mais frequentes na literatura (PROTTER & TRAVIN, 1983; FRENKEN, 1994; SCHEELA, 2001; FRIEDRICH & LEIPER. 2006; EIZIRIK et al, 2011), persistindo uma escassez de estudos sobre os sentimentos despertados em peritos que examinam a responsabilidade penal de criminosos sexuais. Pela natureza desse tipo de crime e variedade de apresentações, diferentes respostas emocionais podem ser apresentadas pelos peritos psiquiatras e adverte-se para os riscos de burnout, traumatização secundária e trauma vicário. Em estudo pioneiro com essa população, Barros et al (2014) descreveu as respostas emocionais identificadas em psiquiatras forenses brasileiros, relacionadas à avaliação de criminosos sexuais, com predomínio de sentimentos negativos tais quais: nojo, repulsa, raiva, irritação, desconfiança, medo e impotência, entre outros. Esses peritos relataram que a manutenção do foco na execução da tarefa, a autoanálise dos sentimentos contratransferenciais, o tratamento psicoterápico pessoal, a discussão dos casos com supervisores e colegas foram as principais estratégias empregadas para o manejo da contratransferência durante a avaliação de criminosos sexuais.

Conclusão

            Este estudo demonstrou que a contratransferência forense é um assunto importante dentro da prática pericial e deve receber atenção desde o treinamento dos profissionais que trabalharão com saúde mental forense, mantendo-se através da discussão e supervisão dos casos com peritos psiquiatras mais experientes e colegas. Evidenciou também a importância do tratamento psicoterápico daqueles que desejam trabalhar nessa área de atuação, visto ser ferramenta indispensável para a prevenção de quebras da neutralidade e preservação da saúde psíquica do perito, diante de casos muitas vezes complexos ou recheados de material perverso, especialmente nos crimes hediondos, extremamente violentos ou com grande repercussão pública. Por fim, novas pesquisas com delineamentos de maior evidência científica sobre o tema se fazem necessárias.

 

Referências bibliográficas

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Autores Objetivos Delineamento Conclusões
Schetky & Colbach (1982) Investigar os sentimentos de psiquiatras em setting forense. Opinião de especialistas A contratransferência não controlada de psiquiatras envolvidos em casos legais pode dificultar na manutenção da integridade intelectual e clareza de julgamento, pela raiva não resolvida, identificação excessiva com um tipo específico de cliente, ou necessidade exibicionista por reconhecimento.
Ciccone & Clements

(1984)

Identificar e trabalhar os problemas éticos em serviço psiquiátrico-forense. Estudo descritivo O setting forense requer do psiquiatra elevado grau de profissionalismo, atenção à síndrome de burnout, manutenção da empatia, resistência às reações punitivas, ajuste do medo e compreensão do caso.
Ciccone & Clements

(1984)

Descrever a ética clínica aplicada na psiquiatria forense. Estudo descritivo O sistema de valores terapêuticos preocupa-se com a empatia e bem-estar dos indivíduos (aspecto afetivo da ética). Aceitar a responsabilidade seria parte da mudança e crescimento do sujeito (habilidade de monitorar e controlar o próprio comportamento), ao invés de requisito para punição.
Silfen & David

(1993)

Discutir a estrutura, funcionamento, métodos terapêuticos de redes de psiquiatria forense e os problemas enfrentados pela equipe, incluindo o estresse das interações com indivíduos violentos e as relações transferenciais e contratransferenciais. Opinião de especialistas O sentimento de raiva esteve mais relacionado aos psiquiatras e assistentes sociais, com alguma sobreposição entre essas profissões de sentimentos de desesperança e elementos de confusão.
Simon

(1994)

Entender as principais diferenças entre o exercício da psiquiatria clínica e forense. Opinião de especialista O modus operandi da psiquiatria clínica é diverso da psiquiatria forense. O envolvimento do psiquiatra em casos forenses fornece benefícios profissionais, porém pode perturbar a atenção flutuante durante o trabalho psicoterápico.
Barros et al.

(2014)

Investigar os principais sentimentos desencadeados em psiquiatras forenses pela avaliação e tratamento de criminosos sexuais  e examinar como esses profissionais lidam com tais sentimentos. Estudo transversal, unicêntrico e qualitativo Predomínio de sentimentos negativos nos peritos (nojo, raiva, desconfiança e medo). Adverte para o risco de trauma vicário. As estratégias mais usadas para manejar os sentimentos contratransferenciais foram: a manutenção do foco na tarefa, a autoanálise dos sentimentos contratransferenciais e o tratamento pessoal psicoterápico.
Simopoulos & Cohen (2015) Revisar conceitos psicodinâmicos e seu  impacto no setting forense. Opinião de especialistas A identificação inconsciente com defesas patológicas revividas pelo criminoso e a falta de atenção à transferência e contratransferência podem conduzir o perito psiquiatra à revitimização, traumatização secundária e vieses.

 

Tabela 1. Descrição dos artigos incluídos na presente revisão narrativa, 2019.

 

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