César Augusto Trinta Weber. MD. MSc. PhD. Pós-Doutor.
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento
Universidade de São Paulo/SP/Brasil.

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SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS EM SAÚDE MENTAL

Resumo: A inclusão social de doentes mentais em serviços substitutivos à internação em hospital psiquiátrico é um tema reconhecidamente tensionado tanto pelas noções que envolvem quanto pela natureza do seu funcionamento. O imbricado cruzamento de conceitos complexos como inclusão social, cidadania, liberdade e ética, todos aqui relacionados ao doente mental e às políticas públicas destinadas à sua assistência, é um dos fatores que contribuem para esta situação. Outros fatores tais como as condições gerais de funcionamento (infra-estrutura e capacidade instalada, financiamento, qualificação dos trabalhadores em saúde, grau de comprometimento da doença mental, como exemplos) e a singularidade cultural de cada comunidade onde estão instalados esses serviços, auxiliam na composição desse quadro.

 

Descritores: Moradias Assistidas. Política de Saúde. Psiquiatria. Saúde Mental.

 

 

SUBSTITUTE SERVICES IN MENTAL HEALTH

 

Abstract: The social inclusion of mentally ill patients in services that are substitutive for psychiatric hospital admission is an issue that is known to be strained both by the notions involved and by the nature of their functioning. The imbricated crossing of complex concepts such as social inclusion, citizenship, freedom and ethics, all related to the mentally ill and the public policies aimed at their care, is one of the factors that contribute to this situation. Other factors, such as the general conditions of operation (infrastructure and installed capacity, financing, qualification of health workers, degree of commitment of mental illness, as examples) and the cultural singularity of each community where these services are installed, composition of this table.

 

Keywords: Assisted Living Facilities. Health Policy. Psychiatry. Mental health.

 

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A inclusão social de doentes mentais em serviços substitutivos à internação em hospital psiquiátrico é um tema reconhecidamente tensionado tanto pelas noções que envolvem quanto pela natureza do seu funcionamento.

O imbricado cruzamento de conceitos complexos como inclusão social, cidadania, liberdade e ética, todos aqui relacionados ao doente mental e às políticas públicas destinadas à sua assistência, é um dos fatores que contribuem para esta situação. Outros fatores tais como as condições gerais de funcionamento (infra-estrutura e capacidade instalada, financiamento, qualificação dos trabalhadores em saúde, grau de comprometimento da doença mental, como exemplos) e a singularidade cultural de cada comunidade onde estão instalados esses serviços, auxiliam na composição desse quadro.

Os doentes mentais, a exemplo de outros doentes, apresentam um grau maior ou menor de incapacidade para determinadas atividades de vida diária. Pela hipossuficiência que exibem são classificados, para fins da construção e usufruto das políticas públicas afirmativas, como pessoas portadoras de deficiência e, portanto, com necessidades especiais.

Até bem pouco tempo, uma pessoa portadora de deficiência era entendida como sendo aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho das atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano.[1]

Atualmente, este conceito vem sendo repensado à luz da estreita relação existente entre as limitações que experimentam as pessoas portadoras de deficiências, a concepção e a estrutura do meio ambiente e a atitude da população em geral com relação à questão.[2]

Na raiz dessa nova abordagem está a perspectiva da inclusão social, entendida como o processo pelo qual a sociedade se adapta para incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos.[3]

Com essas ressalvas e exposto o conceito de inclusão social utilizado neste estudo, foi realizada uma revisão bibliográfica com destaque para as principais posições sobre o tema da inclusão social no contexto da Reforma da Assistência Psiquiátrica.

Uma discussão de natureza ética que envolve os portadores de doenças mentais e a sua inserção nos serviços substitutivos traz à tona a questão sobre a capacidade de agir desses doentes na sua relação com a sociedade.

A hipótese de compreensão de que os doentes mentais não seriam livres para escolherem o caminho e o comportamento em uma determinada situação, porque o seu cérebro não funcionaria normalmente pode ser sustentada com base em princípios de natureza Bioética, tais como a autonomia e a liberdade.

Para Rodrigues de Almeida[4] autonomia e liberdade são conceitos solidários, mas não coincidentes. Quem faz o mal age livremente, mas sem autonomia; submete-se livremente àquela parte de seu ser que não é efetivamente livre: seus instintos, paixões, fraquezas, interesses e medos, olvidando tanto a lei quanto seu reflexo na consciência moral.[5] Segundo o autor:

uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir em direção a esta deliberação, considerando os valores morais do contexto no qual está inserido, enquanto que um indivíduo autônomo age livremente de acordo com um plano próprio, de forma análoga à que um governo independente administra seu território e estabelece suas políticas.[6]

Se entendermos que a tomada de decisão é uma espécie de autodeterminação, estabelecemos então uma vinculação a um dos princípios éticos mais fundamentais da sociedade contemporânea, nomeadamente o da autonomia e respeito à pessoa.[7] O decidir parte do pressuposto de que o indivíduo, e no caso o doente mental, tenha a capacidade de tomar decisões, de compreender a natureza e implicações das opções que lhe são apresentadas e fazer escolhas livres.

Eike-Henner[8] contribui com essa discussão ao destacar que os processos mentais por trás do comportamento decorrem da capacidade cognitiva. Nessa direção, Rodrigues de Almeida[9] chama a atenção ao fato de que a capacidade cognitiva é o processo de conhecer, que envolve atenção, percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem, exatamente os recursos de processamento de informações que são afetados nos distúrbios mentais.

Na esteira das limitações impostas pela doença mental ou dos tratamentos instituídos, poderíamos também em função da medicação utilizada, ter a noção de que a maioria dos doentes mentais para alcançar uma medida moderada de estabilidade teria o seu funcionamento cerebral afetado. Isso faria com que eles percebessem as coisas de uma forma distorcida estando, portanto, prejudicados para fazerem julgamentos normais e, assim, agirem livremente.

Entretanto, mesmo respeitando a prerrogativa de serem todas as pessoas iguais em direitos, nem todas têm a capacidade de se autodeterminar na mesma medida. Em geral, esta capacidade amadurece durante a vida do indivíduo e algumas pessoas perdem-na total ou parcialmente devido a doenças, distúrbios mentais ou circunstâncias que severamente restrinjam a liberdade.[10]

Nessa perspectiva, Wasow[11] ao defender a necessidade de instituições asilares para a proteção de doentes mentais crônicos por entender que os programas de apoio à comunidade não garantem atendimento a todas as pessoas com doença mental crônica, recebeu duras críticas de Schroeder (1987), para quem as noções de liberdade e responsabilidade não podem ser entendidas separadamente, pois estão filosoficamente interligadas.

Schroeder[12] entende que nenhuma pessoa ao agir livremente poderá eximir-se da responsabilidade de seu comportamento. Todavia, de um lado a pessoa ao poder escolher entre dois ou mais cursos de ação, ela ou ele será responsável pelo resultado da sua escolha, pressupondo-se que as pessoas fazem escolhas devidamente informadas, não podendo, então, desculparem-se por qualquer falta de informação. De outro, não se pode responsabilizar pelo seu comportamento qualquer pessoa que não disponha de liberdade de escolha. O suposto paradoxo existente na relação entre liberdade e responsabilidade poderia fazer crer que as pessoas que se comportam irresponsavelmente em estruturas restritivas, atuariam, em condições de liberdade, de maneira irresponsável. A experiência do pesquisador, em Wisconsin (em uma comunidade rural e em um Estado com uma população pequena), com trabalhos em programas de apoio à comunidade para pessoas diagnosticadas com doença mental grave (esquizofrenia e transtornos afetivos com características psicóticas), apresentam resultados animadores como a conquista da liberdade por terem supridas as suas necessidades básicas, por não estarem sujeitos a restrições desnecessárias e por se tornarem responsáveis pelo que fazem. Conclui o autor, entre outros aspectos, que o sucesso de qualquer modalidade de tratamento de saúde é construído pela possibilidade de adaptação do programa às necessidades do paciente.

Em um debate nacional, Chamme[13] problematizou o tema inclusão e exclusão social nas políticas públicas, a partir da concepção de corpo, considerado como um veículo portador de saúde ou de doença em distintos momentos do tempo e de estágios do desenvolvimento civilizatório. Reconhece que o século XX, com seus avanços e recuos é potencialmente considerado fator decisivo na estrutura e organização biopsicossocial do corpo que se apresenta fragmentado, demarcando o cenário da pós-modenidade. Conclui que incluído eficazmente, ou não, nos mecanismos das Políticas Públicas destinadas à promoção de saúde, o corpo traduz, a partir dos sintomas de estado de saúde ou estado de doença, o maior ou menor grau de inclusão ou de exclusão social, representado pela inserção e ressonância participativa do usuário dos serviços de saúde – portador de um corpo adoecido -, na desigual realidade em que vive enquanto um sujeito considerado sem saber e sem poder.

A possibilidade de reabilitação nos serviços residenciais terapêuticos foi discutida por Marcos[14] que ao fazer uma aproximação entre o hospital e a moradia assistida (casa), o modo de vida asilar e o modo de vida doméstico, concluiu:

A saída do hospital e a chegada na casa não garantem a real passagem do modo de vida asilar ao modo de vida doméstico e da cidade. Os moradores podem reproduzir o cotidiano do hospital na casa, fechando-se em seus quartos, deambulando no quintal, recusando-se a participar dos afazeres domésticos e esperando a tutela e o cuidado hospitalares, entre outras atitudes. Podem não saber cuidar do próprio corpo e dos objetos de uso pessoal (muitos simplesmente não os têm), não saber sentar-se à mesa e comer de garfo e faca, não saber servir sua própria comida. Existe ainda a dificuldade de adaptação ao espaço privado e à idéia de que se tem direito a ele. O medo da cidade também pode estar presente, uma cidade que se modificou ao longo dos anos de internação, cujos referenciais não existem mais. Embora a casa não deva ser espaço de clausura, eles podem simplesmente, em um primeiro momento, não querer sair. Trata-se antes de mais nada de fazer daquele espaço lugar de abrigo, sem transformá-lo em prisão.[15]

De acordo com a mesma autora é o processo de superação, pelo doente mental desospitalizado, da lógica asilar na direção da conquista do espaço de moradia próprio que justifica os residenciais terapêuticos como serviços substitutivos ao hospital no alcance dessa nova forma de viver.

Habitar a casa é desmontar um modo de vida asilar, em um trabalho de subjetivação dos espaços, de reaquisição do direito ao uso dos espaços e do seu melhoramento. É o processo de transformação do espaço da casa em espaço em que se habita, em que se vive, do “Serviço Residencial Terapêutico” em habitat, casa, que dá sentido à reabilitação.[16]

 

Todavia, os riscos da manutenção da segregação em um processo de reabilitação social do doente mental, mediante determinadas condições, foi observado por Viganó[17] para quem “a abertura dos manicômios não exclui a segregação”.

Nesse sentido, Marcos[18] acrescenta que:

Pode-se criar lugares onde o louco é objeto de políticas de saúde e assistência, e continua sendo segregado, excluído dos discursos. Não estar atento às soluções que a psicose nos ensina, não discutir com o louco, não falar com ele, não torná-lo parte ativa da reabilitação é uma forma de excluí-lo. A adesão a um programa de vida, imposto sem expressão subjetiva, ainda é uma forma de segregação.[19]

Belini e Hirdes[20] realizaram uma investigação sobre o processo de desinstitucionalização da doença mental, com vistas à construção de um referencial teórico/prático sobre residências terapêuticas com os profissionais vinculados ao Projeto Morada São Pedro. Observaram que as limitações físicas e psíquicas que demandam suporte para o enfrentamento do dia-a-dia são consequência dos anos de institucionalização manicomial. Para as autoras, o resgate da cidadania como emancipação significa dizer que a cidadania do paciente psiquiátrico não é a simples restituição de seus direitos formais, mas a construção de seus direitos substanciais, e é dentro de tal construção (afetiva, relacional, material, habitacional, produtiva) que se encontra a única reabilitação possível. O estudo revelou que é necessária uma prática reabilitadora voltada para a educação, uma reaprendizagem das atividades diárias da vida; é necessário motivar essas pessoas para que elas desenvolvam estes ensinamentos sozinhos, não discriminando, nem excluindo, mas sim, respeitando o tempo de cada pessoa no processo. A operacionalização das moradias enquanto modalidade assistencial substitutiva deve permitir o redirecionamento dos recursos e da atenção para as ações no serviço, estimulando a inserção social e a prestação de cuidados aos portadores de transtorno mental. Segundo essas pesquisadoras a idéia da necessidade de um serviço residencial para os portadores de transtorno mental, para que eles conquistem um espaço de territorialidade, ou seja, a casa do paciente, que possam ter uma reapropriação do espaço que é seu, uma recuperação das relações interpessoais, o viver em família, com os vizinhos, com a escola e alguns com o próprio trabalho. Concluem que ao falar da inserção dos portadores de transtornos mentais crônicos, deve-se não apenas levar em consideração a sociedade que os exclui, mas a sua própria subjetividade, as limitações decorrentes de muitos anos de institucionalização, como a mortificação do eu, a perda da identidade, a abolição do desejo, a perda da subjetividade através da objetividade institucional. Reafirmam que é preciso construir um referencial teórico embasado nas práticas que se efetivam nas residências terapêuticas, permitindo reflexões, construindo conceitos que darão margem a outros estudos que possam gerar subsídios para os trabalhadores de saúde mental e assim consolidar avanços nos novos dispositivos em saúde mental no contexto da Reforma da Assistência Psiquiátrica.

As práticas de inclusão social realizadas pelos serviços substitutivos em saúde mental no âmbito do SUS foram estudadas por Leão.[21] Com os objetivos de identificar as ações desenvolvidas no CAPS da cidade de São Carlos/SP voltadas para inclusão social das pessoas portadoras de transtornos mentais severos e persistentes, analisar a concepção de inclusão social expressa na representação social dos trabalhadores para fomentar a inclusão social de usuários em serviços de saúde mental e compreender a fundamentação teórico-prática que sustentam as ações de inclusão, concluiu a autora entre outros aspectos que a concepção de inclusão está também atrelada à ideologia da normalidade social. O estigma da doença mental também foi visto com uma das barreiras para a inclusão social. Para que os serviços de substitutivos em saúde mental cumpram o seu objetivo de inclusão social de acordo com as diretrizes da Reforma da Assistência Psiquiátrica Brasileira, eles devem buscar ações que possibilitem e estimulem a realização de trocas sociais, principalmente em sua rede social nuclear – a família, que solicita dos profissionais sensibilidade para lidar com o seu sofrimento sem culpabilizações, o enfretamento ao estigma e a produção de autonomia da pessoa acometida pelo transtorno mental, igualmente pela via do trabalho.

Moreira et al.[22] realizaram uma revisão bibliográfica da inclusão social do doente mental com a Reforma da Assistência Psiquiátrica brasileira. Verificaram a influência da família e dos profissionais da enfermagem no processo de inclusão social no propósito de retirar o paciente do hospital psiquiátrico e inseri-lo novamente em seu cotidiano social com o desenvolvimento de sua autonomia. Analisaram as experiências em residências terapêuticas, centros de atenção psicossocial, cooperativas sociais e outros incentivos para fazer valer os direitos dos doentes mentais e concluíram pela necessidade de inclusão do doente mental na sociedade, entendendo que a reforma começa em nosso próprio contexto, no nosso imaginário, na forma como vemos e percebemos o mundo interno e externo. Enfatizam a importância da família no processo de reabilitação, assim como na inclusão nos programas propostos e subsidiados pelo governo, favorecendo a segurança e permanência do doente fora das instituições psiquiátricas de internação. Por fim, destacam que a enfermagem – em conjunto com outros profissionais, usuários e familiares e a sociedade -, contribui para a identificação e valorização do portador de sofrimento psíquico em sua individualidade, responsabilizando-o por suas atitudes e instruindo-o de maneira correta para que assuma independência, além de exercer a função de informar à sociedade, favorecendo a inclusão social desse indivíduo.

Guerra e Generoso[23] em um estudo multicêntrico (Santo André, Goiânia e Belo Horizonte) e multidisciplinar (Antropologia, Arquitetura, Psicanálise e Saúde Coletiva), avaliaram como os portadores de sofrimento mental grave constituem suas habitação (habitus) e inserção social a partir dos elementos estruturais da moradia (abrigo, privacidade, segurança e conforto) e de suporte social (rede social e de serviços), independentemente de estarem ou não inseridos em SRTs. Analisaram as repercussões das diferentes formas de moradias e dos modos de habitar na inserção dos portadores de sofrimento mental grave, a partir da superação da centralidade do hospital psiquiátrico e do direcionamento da atenção em saúde mental para o espaço comunitário. Articulando um diálogo entre a Psicanálise e a Antropologia, os autores discutem o habitar e a inserção social concluindo que o habitar uma moradia, assim como habitar o mundo, exige suportarmos as exceções e as diferenças irredutíveis, no sentido da introdução de novas variáveis ao lado da ideia de integração social, em cuja base encontra-se a “comunicação e o consenso sobre o sentido do mundo social e que a inserção social deve incluir a noção de laço social, bem como com a concepção de sujeito do inconsciente, singular, único e irredutível, cujos desdobramentos apontam para modos de estar no mundo, bem como para a aposta na implicação do sujeito nas respostas que constrói, seja por quais vias for.

A experiência de implantação e seus determinantes locais e nacionais, na sua relação com o movimento de Reforma da Assistência Psiquiátrica foi o objetivo de um estudo documental, realizado por Oliveira e Conciani[24] partir de documentos oficiais dos três níveis de gestão, informações da mídia local e trabalhos acadêmicos, no período 2000 a 2005, em Cuiabá-MT. A análise do isolamento para a reintegração social, como mudança de paradigma, enfatiza a transformação da função de “expurgo” social realizada pelos hospícios/manicômios ao longo dos tempos, à situação atual no campo da saúde mental que afirma a necessidade de “reinserção social” dos “doentes crônicos” e de criação dos SRTs. As autoras debatem importante ponto nessa discussão ao refletirem sobre as potencialidades do SRT para a desinstitucionalização ou a transinstitucionalização. No sentido da desinstitucionalização torna-se um processo complexo de recolocar o problema, de reconstruir saberes e práticas, de estabelecer novas relações e acima de tudo um processo ético – estético, de reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. Na transinstitucionalização ocorre o “deslocamento da clientela psiquiátrica [internada] para instituições similares de outro tipo, tais como delegacias, penitenciárias, asilos de idosos, casas de enfermagem, o que resultaria em transferência dos pacientes de uma instituição para outra, sem que se fizesse a crítica do paradigma psiquiátrico. Entre as conclusões da investigação realizada, as autoras consideram que a superação dos “manicômios” requer, além de descentralização dos serviços de atenção e criação de rede de cuidados, a desconcentração de poder político-decisório (participação). Ainda que a criação de SRT pode representar, por um lado, um importante passo em direção à Reforma da Assistência Psiquiátrica, e por outro, em regiões onde os movimentos e demandas sociais são rara e fragilmente constituídos, e sob a imposição de políticas neoliberais, pode ser “aprisionada” como instrumento de gestão centralizada e reduzida à transinstitucionalização e racionalização financeira.

Hirdes[25] realizou uma revisão na base eletrônica de dados Scielo e nos documentos oficiais do MS do Brasil sobre o tema da Reforma da Assistência Psiquiátrica brasileira no período de 1997-2007. Evidenciou avanços e desafios da reforma destacando a necessidade de investimento na instrumentalização dos profissionais para alavancar a inclusão do cuidado à saúde mental no Sistema Único de Saúde, com vistas à reversão do modelo assistencial. A inserção das ações de saúde mental no PSF, por exemplo, perpassa fundamentalmente a capacitação e apropriação de conceitos de clínica ampliada dos profissionais para a mudança do paradigma. A Reforma da Assistência Psiquiátrica brasileira, através da criação dos novos dispositivos em saúde mental, assim como através da inserção das ações de saúde mental na saúde pública, possibilita novas abordagens, novos princípios, valores e olhares às pessoas em situação de sofrimento psíquico, impulsionando formas mais adequadas de cuidado à loucura no seu âmbito familiar, social e cultural. Concluiu que os projetos de reforma não são homogêneos, as práticas são executadas conforme a concepção teórica dos trabalhadores de saúde mental e que existem princípios orientadores gerais, mas que, em última análise, estão subordinados aos settings específicos onde ocorrem as práticas.

Furtado et al.[26] discutiram um método de investigação avaliativa qualitativa interdisciplinar da situação de moradia de portadores de transtorno mental grave no Brasil, a partir das diferentes experiências que influenciaram e ajudaram a conformar o que hoje se entende como Serviços Residenciais Terapêuticos. Os autores constataram que há no Brasil, atualmente, a coexistência de experiências locais mais voltadas à proteção e outras que privilegiam a reabilitação, sendo que a posse ou a garantia da casa como direito ainda está longe de se tornar uma questão para os moradores dos SRTs, e menos ainda experiências que considerem claramente a necessidade de sua inserção social. Nessa direção, uma abordagem interdisciplinar que leve em consideração categorias de análise como a inserção social, moradia e habitação pode-se constituir em um caminho para melhor compreensão e avaliação de como os portadores de transtornos mentais graves constituem suas habitações (habitus) e inserção social em tais experiências.

Estudos internacionais também investigaram, sob diversos enfoques, o tema da inclusão social do doente mental. A superação do manicômio e a sua substituição por serviços ambulatoriais e comunitários tem o propósito de atender a desospitalização e a desinstitucionalização. O resgate da cidadania, a recuperação da autonomia, a reinserção social e a qualidade dos serviços oferecidos aos doentes mentais são parte dos objetivos permanentemente perseguidos pelas novas práticas assistenciais em saúde mental.

Esses fenômenos vêm sendo estudados e alguns pesquisadores apresentam resultados que identificam que a saúde mental está fortemente subfinanciada em muitos países europeus.[27] Apenas um quarto das pessoas com perturbações mentais recorrem aos serviços profissionais de saúde, sugerindo um grau considerável de necessidades não satisfeitas por toda a Europa.[28] O processo de reinstitucionalização assume uma configuração muito parecida no Continente Europeu, prejudicando o alcance da inclusão social e dos demais objetivos pretendidos pela Reforma da Assistência Psiquiátrica.

Drake et al.[29] sugeriram em seu estudo que mesmo alguns doentes crônicos incluídos em dispositivos de cuidados sociais, preconizados pela Reforma da Assistência Psiquiátrica, se tornavam tão dependentes da instituição como o eram anteriormente.

Fakhoury e col.[30] estudaram o nível dos cuidados em saúde mental em serviços substitutivos. Concluíram que em países como a Alemanha e a Itália, as enfermarias hospitalares foram transformadas em dispositivos de cuidados residenciais e os padrões da qualidade de cuidados estabelecidos pelas autoridades de saúde baixaram, tendo como consequência um empobrecimento dos cuidados prestados aos doentes.

Priebe e Turner[31] sugerem que o contexto histórico e internacional instalou um debate em alguns países em torno do financiamento e da reorganização dos serviços de saúde mental. Para os autores os cuidados de Saúde Mental entraram numa nova era de reinstitucionalização e o resultado mais perverso das reformas instituídas é que de um lado pode-se constatar um mercado crescente para os doentes que procuram ativamente tratamento e que podem pagá-lo direta ou indiretamente; contrastando com este lado, um outro, o da reinstitucionalização ou transinstitucionalização para doentes com doenças mentais mais graves que podem perturbar a ordem pública.

A qualificação dos profissionais que trabalharam nos serviços substitutivos de atenção a saúde mental também foi estudada por Priebe.[32] O autor constatou que a diminuição do nível de exigência dos cuidados aos doentes crônicos tinha reflexos em muitos países da Europa, numa diminuição dos fatores de atração de novos profissionais. Como consequência o difícil recrutamento de pessoal qualificado para esses serviços desestimulava qualquer interesse de futuros psiquiatras. Sem a garantia de qualidade desses serviços substitutivos associado a capacidade relativa dos doentes mentais em reivindicarem os seus direitos, a superação das dificuldades para as atividades de vida diária, o alcance de autonomia e a reinserção social passam a representar conquistas duvidosas.

Um estudo multicêntrico (Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Suécia) foi realizado por Priebe e Col.[33] com o propósito de investigar os resultados da experiência de desinstitucionalização, a partir dos anos 70, tendo em vista as diferentes tradições de organização de cuidados de saúde mental desses países. Constataram que o número de leitos forense e vagas em moradias assistidas, aumentaram em todos esses países, ao mesmo tempo em que o número de leitos em hospitais psiquiátricos reduziram em 5 dos 6 países. Concluíram que a reinstitucionalização está em curso em países europeus. As razões para esse fenômeno ainda não estão claras. É possível que medidas que visem a redução de risco social, como o aumento da população carcerária, podem ser mais importantes do que outras tentativas de redução da morbidade e de desenvolvimento de novos métodos de prestação de cuidados de saúde mental.

A Organização Mundial da Saúde e a União Européia reconhecem, em suas publicações desde 2001, que a doença mental é uma das questões mais urgentes da saúde pública. Um aspecto que merece destaque, pelo caráter endêmico, é a exclusão social das doenças mentais, especialmente, as graves. O estigma em torno da saúde mental está espalhado por toda a sociedade européia.[34], [35]

A institucionalização desnecessária e o abuso fundamental dos direitos humanos ainda se verificam em muitos países europeus.[36] Nos países em que a desinstitucionalização foi implementada, pode-se observar que os níveis de investimento em serviços comunitários raramente acompanham os patamares necessários.[37]

Aproximadamente 25% dos países da União Européia continuam a não fornecer cuidados comunitários para as perturbações mentais.[38] No entanto, estes serviços são uma parte importante do processo de inclusão social e do tratamento eficaz de pessoas com doença mental grave.[39]

Os resultados desses estudos demonstram que apesar do reconhecimento da importância dos serviços substitutivos no processo de inclusão social de doentes mentais, o alcance desse objetivo ainda encontra várias barreiras.

Para superação dos obstáculos verificados são necessárias algumas medidas, entre as quais: número adequado de serviços; qualificação dos trabalhadores; financiamento minimamente suficiente; cuidado tecnicamente adequado dos doentes mentais; e, principalmente, mecanismos para evitar a dependência excessiva ou o deslocamento desses doentes mentais para outros lugares (instituições), reproduzindo a lógica anterior, movimento denominado re-institucionalização ou transinstitucionalização.[40], [41], [42]

Nessa perspectiva, é importante destacar que os projetos que buscam a inclusão social de doentes mentais possuem racionalidades operacionais heterogêneas e os seus efeitos estão intimamente condicionados às práticas culturais dos locais aonde eles são executados.[43], [44]

A investigação descrita no livro Residenciais Terapêuticos: O Dilema da Inclusão Social de Doentes Mentais se insere em um contexto de políticas públicas na área da saúde mental nas quais as questões referentes ao universo cultural ganham destaque, uma vez que os Serviços Residenciais Terapêuticos Morada São Pedro estão implantados em meio a um determinado grupo social com o seu modo próprio de viver e simbolizar as suas experiências com o adoecimento.

 

Referência:

 

Weber CAT. Residenciais Terapêuticos: O Dilema da Inclusão Social de Doentes Mentais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

 

 

NOTA: Este artigo é um recorte da Parte I, Rumos da Saúde Mental no Brasil após 1980, do livro Residenciais Terapêuticos: O Dilema da Inclusão Social de Doentes Mentais, para publicação na Psychiatry on line Brasil. Part of the International Journal of Psychiatry – ISSN 1359 7620 – A trade mark of Priory Lodge Education LTD.

 

[1]Brasil, 1989.

[2]Brasil, 1999.

[3]Sassaki, 1997.

[4]Rodrigues de Almeida, 2010.

[5]Rodrigues de Almeida, 2010, p. 383.

[6]Rodrigues de Almeida, 2010, p. 383.

[7]Rodrigues de Almeida, 2010.

[8]Eike-Henner, 2008.

[9]Rodrigues de Almeida, 2010.

[10]Rodrigues de Almeida, 2010.

[11]Wasow, 1986.

[12]Schroeder, 1987.

[13]Chamme, 2002.

[14]Marcos, 2004.

[15]Marcos, 2004, p. 183-184.

[16]Marcos, 2004 p. 185.

[17]Viganó, 2000.

[18]Marcos, 2004.

[19]Marcos, 2004, p. 188.

[20]Belini e Hirdes, 2006.

[21]Leão, 2006.

[22]Moreira et al., 2008.

[23]Guerra e Generoso, 2009.

[24]Oliveira e Conciani, 2008.

[25]Hirdes, 2009.

[26]Furtado et al., 2010.

[27]McDaid, 2005.

[28]Wittchen, Jacobi, 2005.

[29]Drake et al., 1999.

[30]Fakhoury e col., 2002.

[31]Priebe e Turner, 2003.

[32]Priebe, 2004.

[33]Priebe e Col., 2005.

[34]WHO, 2001.

[35]EUFAMI, 2004.

[36]McDaid, 2005.

[37]McDaid e Thornicroft, 2005.

[38]WHO, 2005.

[39]Corrigan e Phelan, 2004.

[40]Priebe e Turner, 2003.

[41]Oliveira e Conciani, 2008.

[42]Earley, 2009.

[43]Bellini e Hirdes, 2006.

[44]Hirdes, 2009.

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