Sérgio Telles

 

Nem todos gostam de “Roma”, o premiado filme de Alfonso Cuarón. O comentário mais comum é que o filme é devagar demais e que “nada acontece”. Também tive inicialmente essa impressão e, como o via em casa pela Netflix, por pouco não cedi ao impulso de me levantar e fazer alguma outra coisa, desistindo da exibição. Ainda bem, pois permanecendo entendi que ambas impressões decorriam de características próprias do filme, da deliberada lentidão da narrativa, com seus planos longos tão diferentes da montagem de cortes abruptos com rápidos flashbacks e flashfowards que se tornaram a linguagem predominante do cinema comercial de hoje, a marca registrada dos filmes de sucesso, especialmente os de ação.

O mexicano Cuarón deliberadamente escolhe outro ritmo, que me fez lembrar dos filmes de Tarkovisky e Sokurov, nos quais os planos longos ininterruptos parecem dar ao tempo uma dimensão palpável, fazendo-o abandonar sua função costumeira de pano de fundo e passar a ser um protagonista perceptível, postado em primeiro plano. A semelhança entre Cuarón e esses dois diretores já fora apontada antes, com seu distópico “Children of men” (2006).

Tal ritmo se alia à forma sutil e delicada com a qual os acontecimentos são apresentados, configurando o oposto do famigerado “dramalhão mexicano”. Com essa escolha estética, Cuarón talvez tenha pretendido desconstruir a forma estereotipada com que o temperamento latino é correntemente apresentado pelos anglo-saxões: paixões enfurecidas, explosões emocionais, violência e ignorância, tudo envolto numa pesada ambientação kitsch.

O filme abre com Cléo, a empregada doméstica, lavando interminavelmente a garagem da casa, para logo dar continuidade a suas inúmeras obrigações. Quando chega o patrão e com precisão milimétrica estaciona seu Galaxy (logo veremos a relevância dessa informação), pois o local é muito estreito e mal o deixa entrar, os cachorros já haviam emporcalhado o chão. Ele se irrita e acusa a empregada de não cumprir com suas obrigações.  Noutra cena, estando a família já recolhida para dormir, Cléo sai apagando as luzes dos muitos aposentos da casa deserta e, ao chegar finalmente a seu cubículo, é obrigada a acender uma vela, como medida de economia recomendada pela patroa.

Nesses recortes vai compactada uma quantidade de ilações sobre as peculiaridades desse tipo de trabalho, que a nós brasileiros é tão familiar, desde que, juntos com os mexicanos, compartilhamos a realidade e a cultura do terceiro mundo.

À primeira vista, “Roma” conta a história de Cléo, na azáfama de suas tarefas e em seus dramas humanos pessoais, como a dureza de sua iniciação sexual, a gravidez indesejada, a irresponsabilidade do pai da criança que a abandona e ameaça para que ela não o denuncie, o aborto, a culpa. Embora tais acontecimentos não sejam exclusivos aos de sua classe social e, sim, mais ligados à condição da mulher num mundo onde o machismo patriarcal é inquestionado, pesa aí sua posição socioeconômica própria de sua etnia índia desprivilegiada e secularmente explorada.

Mas percebemos que sub-repticiamente uma outra história está sendo contada – a da família dos patrões de Cléo, constituída pelo casal parental, 4 filhos e a avó materna. Logo no inicio somos avisados de que o pai vai se afastar temporariamente para trabalhar no Canadá. De forma fragmentária e casual, por conversas ouvidas de passagem, vamos entendendo que algo de grave está ocorrendo na vida do casal. O marido não havia ido para o Canadá, simplesmente abandonara a família e estava morando com outra mulher. Tal verdade dolorosa não é enfrentada pela mãe, que mantem a farsa para os filhos, enquanto se embebeda em desespero e destrói lentamente o carrão do marido, esbarrando sem parar nas paredes da garagem, numa tragicômica expressão de seu ódio e desejo de vingança.

Os filhos só irão tomar conhecimento desse fato tempos depois, quando fazem um passeio até a praia e, no restaurante, a mãe lhes conta a verdade. Apesar de Cléo dizer que não sabe nadar, a mãe deixa as crianças com ela na praia e sai para fazer algo. Num determinado momento, Cléo se vê forçada a enfrentar o mar para salvar as crianças que não conseguiam sair da água.

Tendo salvo os filhos da patroa num ato de desprendimento e coragem, Cléo desata a chorar, lembrando que não salvou sua própria filha da morte, que abortara e que ficara aliviada com isso, pois não queria tê-la.

A cena tem alta voltagem emocional pois condensa dois momentos dramáticos fundamentais. Por parte de Cléo, a conscientização do luto pela filha perdida, assim como a percepção de sua ligação com a família dos patrões, em detrimento de sua própria família de origem, que pouco é mencionada. Por parte dos patrões, há o desvelamento do segredo familiar, a exposição de sua dimensão traumática, a liberação de seu potencial desagregador e mortífero, bem representado pelo quase afogamento das crianças no mar.

Esquematicamente, pode ser dito que “Roma” se desenvolve em três níveis. No primeiro, conta a história de Cléo. No segundo, é uma crônica familiar na qual os pais, presos a seus próprios interesses, abandonam os filhos, que encontram na empregada doméstica alguém que exerce a função materna de forma eficaz. No terceiro, mostra episódios da história recente do México, como a brutal repressão exercida pela polícia e forças paramilitares sobre os estudantes que protestavam em passeata contra o governo. Essa cena é presenciada pelas crianças, sua avó e Cléo, a partir do segundo andar de uma loja onde tinham ido comprar o berço para o bebê e ali permaneceram quando as hostilidades se iniciaram.

Como se sabe, o filme tem muito de autobiográfico e Cuarón o dedicou à querida empregada libo, que o criou.

Merecidamente “Roma” recebeu vários Oscar e se inscreve no streaming, a nova forma de exibição de filmes, com a qual a Netflix e correlatos ameaçam deixar obsoletas as até então indispensáveis salas de cinema.

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