Marcos Alexandre Gebara Muraro

 

Muitas tentativas improfícuas têm sido feitas no sentido de relacionar um comportamento ou mesmo uma doença psiquiátrica a causas genéticas. É inquestionável, conforme fartamente demonstrado nos estudos epidemiológicos, que o componente genético é extremamente importante na gênese das doenças mentais, sem, no entanto, ser sua causa determinante. Algumas patologias estão num patamar de maior preponderância da genética, como é o caso da esquizofrenia. Outras se encontram num patamar intermediário, como a depressão e outras dependem muito mais do componente ambiental, como se pode observar no transtorno de stress pós traumático. Mesmo no caso da esquizofrenia ou do transtorno bipolar, onde os estudos com gêmeos univitelinos resultam num índice de coincidência variante entre 60 e 80%, apesar de haver exatamente o mesmo genótipo, um porcentual considerável não desenvolve a doença. Os gêmeos monozigóticos devem suas similitudes à genética e suas diferenças ao ambiente.

Modernamente, estudos genéticos vêm mudando antigos paradigmas. Não há como responsabilizar um único gene por um comportamento ou por uma doença, mas sim múltiplos genes atuando em conjunto, cada qual prestando uma pequena contribuição para que, em conjugação com fatores ambientais, o epifenômeno se manifeste. Apenas riscos ou predisposições podem ser herdados. Os genes são responsáveis, através de sua capacidade transcricional, por codificar a síntese de proteínas que vão constituir as inúmeras substâncias mediadoras do funcionamento mental. Estas podem provocar anormalidades moleculares que irão “distorcer” circuitarias neuronais. A isto denominamos “endofenótipos biológicos”. A conjuminação de muitos deles pode provocar um sintoma. Teremos, então, o chamado “endofenótipo sintomático”, que ainda não é suficiente para fazer eclodir o complexo cortejo de sintomas que compõem a síndrome. É necessário que diversas oportunidades ambientais se aliem às fragilidades genotípicas para que os comportamentos anormais venham a ocorrer. A doença, enquanto fenótipo, será a soma da expressão dos múltiplos endofenótipos anormais com os fatores estressores ambientais. Um genótipo mais privilegiado resiste a poderosos estressores ambientais, enquanto um genótipo mais debilitado sucumbe a estressores mais fracos. A resiliência da economia psíquica aos estressores vai depender da presença de sistemas compensatórios que possam absorver o impacto e propiciar a continuidade do funcionamento normal.

Desde os estágios mais precoces do desenvolvimento embrionário, ocorre a neurogênese, com a consequente migração e interconexão neuronal. Os neurônios recém formados têm que se deslocar para que seus terminais axônicos e dendríticos encontrem os terminais de outros neurônios, nos locais e nas sequências corretas. A sinaptogênese acontece em progressão geométrica, perdurando, em proporções diferentes, por toda a vida. Os cones terminais dos filamentos neuronais, em seu trajeto rumo ao seu destino final, são orientados (mecanismos de atração e repulsão eletrostática), nutridos e selecionados pelas neurotrofinas (BDNF, VEGF, NGF, etc.) até que o “velcro molecular” seja atingido. A “pavimentação da estrada” é feita pelas células gliais.

O SNC é composto por cerca de 100 bilhões de neurônios que fazem aproximadamente 100 trilhões de sinapses numa citoarquitetura impressionantemente bem organizada, o conectoma, no intuito de permitir o fluxo normal da neurotransmissão. Por volta da época do nascimento 90% dos neurônios existentes cometem o chamado “suicídio apoptótico” devido a um processo previsto no genoma denominado “morte celular programada” que nada mais é do que a seleção e sobrevivência dos neurônios mais dotados por eliminação competitiva. Do trilhão original somente 10% sobrevivem. Alterações na neurogênese, na migração e seleção neuronal, na sinaptogênese e, por conseguinte na neurotransmissão podem implicar em comportamentos anormais e doenças, contrariando o objetivo natural da aquisição de boas habilidades cognitivas e motoras. Outro processo eliminatório, também previamente impresso no genoma é a “poda sináptica” ou “prunning”, ocorrido por volta dos 5 anos de idade, no qual 50% das sinapses existentes são eliminadas no intuito de organizar a neurotransmissão que pode ser obtida por contiguidade, diretamente das conexões físicas, ou por difusão, quando um neurotransmissor logra sensibilizar um receptor à distância, fora de sua sinapse específica. Estão envolvidos neste processo neurotransmissores de início rápido, como o glutamato (excitatório) e o GABA (inibitório), cujas cascatas bioquímicas intracelulares que provocam levam milissegundos e neurotransmissores de início lento, como é o caso da serotonina, noradrenalina, dopamina, acetilcolina e outros, cujas ações podem durar horas, meses ou dias. Ao tocar um receptor, que é um conjunto de proteínas, o neurotransmissor, que pode ser uma pequena amina biogênica ou um polipeptídeo, desencadeia uma sequência incontável de eventos bioquímicos decorrentes da ação de enzimas e mensageiros proteicos que vão “ligar ou desligar genes” de ação rápida ou tardia, fatores de transcrição para a produção de novas proteínas. O DNA contém todas as informações necessárias para regular o funcionamento celular sempre através da síntese de proteínas provocada pela abertura de sua dupla hélice e a subsequente cópia, por imagem especular, de um segmento pelo RNA mensageiro que vai fabricar as novas proteínas correndo sobre os “grampos de magnésio” dos ribossomos no retículo endoplasmático ou no aparelho de Golgi. Estas proteínas comporão os produtos gênicos que determinarão todas as ocorrências mentais. Entre eles neurotransmissores, receptores, fatores neurotróficos, bombas de recaptura e transporte, canais iônicos, arcabouços e membranas neuronais e tudo o que é necessário para a rápida movimentação de axonios e dendritos, conexão e desconexão de sinapses, formação de circuitos, neurotransmissão, sobrevivência e morte celular. Qualquer atividade psíquica tem, como substrato, um acontecimento cerebral. Sinapses são feitas e desfeitas, circuitarias neuronais são abertas e fechadas contínua e dinamicamente. O “exercício mental” é extremamente importante para a consistência de circuitos neuronais assim como para a sobrevivência dos neurônios, por maior demanda de fatores neurotróficos. Hoje sabemos que também a atividade física contribui para a produção de neurotrofinas. O stress crônico precoce com elevados níveis de cortisol, através da metilação do DNA, impede a expressão de genes necessários para a produção de BDNF, VEGF e NGF, facilitando a ação de interleucinas e citocinas pró-inflamatórias, dificultando, assim, a neurogênese, migração, sinaptogênese, seleção e sequenciamento dos neurônios, resultando em inervação confusa e errônea que vai influenciar negativamente o funcionamento cerebral por toda a vida. No organismo adulto o stress crônico, via cortisol, inibe os mecanismos regulatórios de bio-feedback, levando à hiperatividade do eixo HPA, inflamação e atrofia cerebral.

Apesar de todas as células do organismo conterem todo o acervo genético disponível, apenas uma pequena parte dos genes se expressa. A função transcricional de um gene, que vai redundar na sua capacidade de sintetizar proteínas é passível de regulação e responsiva a fatores ambientais. Através da chamada regulação epigenética, hormônios, toxinas, estresse, aprendizado, influências socio-ambientais, medicamentos e psicoterapia podem modificar a transcrição, e, portanto, a expressão gênica. Isto pode explicar os mecanismos de diferenciação celular e da diversa interação com o ambiente por diferentes circuitos neurais. Ao longo da existência o DNA vai “ganhando experiência”. O processo de metilação, decorrente do stress, enovela segmentos do DNA, impedindo a expressão dos genes cujos “locus” são “enrolados”. Contrariamente, num ambiente propício, haverá menor metilação, maior produção de neurotrofinas, resultando em maior neuroplasticidade. Experimentos muito recentes demonstram sobejamente que tratamento farmacológico e psicoterapia são capazes de “desmetilar” o DNA, inaugurando novos circuitos neurais. Estudos ainda mais recentes, que precisam ser mais replicados, apontam no sentido de que a metilação forçada do DNA por gerações sucessivas pode ser sinalizada para as células germinativas, podendo ser transmitida às gerações futuras mesmo na ausência do fator ambiental estressor.

Há mais de um século, o psiquiatra Carl Gustav Jung entendeu que o desenvolvimento psíquico obedecia a um fio diretor, um padrão herdado para organizar a consciência e funcionar, comum a todos os indivíduos da espécie humana e que todos atravessam o mesmo caminho evolutivo, sem, no entanto, perder sua singularidade. Herdamos predisposições, possibilidades e riscos, sendo que, embora tenhamos os mesmos traços que nos caracterizam como espécie, a história pessoal de cada ser o torna único e inimitável. O que Jung chamou de “arquétipo” é um potencial hereditário para o funcionamento psíquico, sendo, portanto, um conceito genético plenamente validado, mais de cem anos depois, pelas mais modernas descobertas da genética, epigenética e biologia molecular.

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