Ana Júlia Schmidt dos Santos, Gabriela Lenzi de Oliveira, Renata Xavier da Silva
Para esta apresentação será descrita uma vinheta de um caso clínico. Buscaremos no
desenvolver desta permitir formarem-se paralelos entre a subjetividade da paciente e seus
entrelaçamentos com a linguagem sensível existente dentro de um setting terapêutico.
Maria é uma mulher de 62 anos, branca e aposentada. Atualmente vive com seus gatos
e fala que estes são sua maior companhia (sic). Sua única filha, Beatriz, está casada, mas ainda
sem filhos e a demora em tornar-se avó gera grande ansiedade na paciente. Maria conta que foi
casada por dois anos com o pai de sua filha e relata que esta relação foi conturbada desde o
início, pois seu companheiro era muito agressivo. A separação ocorreu quando a filha era bebê
e desde então não teve uma relação próxima com seu ex marido. Ainda sobre sua vida
afetiva/amorosa, diz estar tranquila ao permanecer sozinha, verbalizando que gosta de ter seu
espaço e suas coisas (sic), bem como, que na sua idade, não teria mais interesse em relacionar-
se intimamente com outra pessoa.
A paciente demonstra-se vaidosa, cuidadosa com sua aparência e higiene pessoal,
comparece para atendimento com unhas e cabelos sempre pintados. Em um primeiro momento,
Maria transmite uma ideia de ser cronologicamente mais velha, pois sua fala e raciocínio são
lentificados. Possui dificuldade no caminhar, precisando de apoio ao levantar-se e demora a
equilibrar-se ao estar em pé. Nas primeiras sessões fazia uso de uma bengala para apoiar-se,
afirmando que este suporte minimizava suas dores nas costas ao manter-se mais ereta para
caminhar e servia como apoio caso houvesse uma crise de labirintite.
Nos primeiros atendimentos Maria trouxe questões referentes ao incômodo que sentia
com o controle da filha sobre o seu salário e de suas contas mensais (sic), atitude necessária
para evitar sua compulsão por compras. Maria então utilizava de outros meios, comprando no
cartão da amiga e pedindo dinheiro emprestado ao irmão. Diante disso, Maria fala: “Me sinto
uma criança fazendo arte” (sic), ao descrever suas compras no cartão da amiga, atitude que
temia que fosse descoberta pela filha. Ao identificar sua compulsão e os resultados da mesma
atrapalhavam sua organização, passou a buscar maneiras de evitar seus gastos, começando a
anotar qualquer valor consumido em uma planilha. Sendo assim, pode ter uma visão geral no
final do mês e conseguiu expor para a filha suas dívidas extras, onde juntas conseguiram
alternativas para solucionar esta questão.
Com o seguir das sessões, Maria traz que a solidão tem lhe incomodado, fala das
importantes presenças masculinas, nas relações de afeto que teve em sua vida e relembra as
relações amorosas que teve após sua separação. Com isto, traz questões referentes ao seu corpo,
ao feminino e as representações destes. Quando descreve sobre seu corpo Maria fala sobre as
marcas que os investimentos primordiais e primitivos deixaram na imagem que ela possui do
mesmo.
– “Eu nunca achei meu corpo bonito e nunca olhei para ele. Nunca vou me esquecer,
eu adolescente e estava no quarto, minha mãe entrou sem bater, eu estava me olhando no
espelho, admirando meu corpo, minha mãe começou a me xingar dizendo que aquilo não era
coisa de que uma moça de família deveria fazer. Eu nunca mais quis me olhar.”
Diante do que foi comentado por Maria, os autores Amparo, Magalhães e Chatelard
(2013) afirmam que a imagem do corpo não constitui uma simples representação mental. É um
processo que envolve aspectos sensoriais e emocionais, não sendo uma mera sensação ou
imaginação, mas uma percepção do corpo. A partir disso, podemos entender que a construção
da forma com que a paciente passou a perceber seu corpo, foi influenciada por questões externas
(sua mãe) e questões internas, as quais remetem ao modo como Maria vê e sente seu corpo.
Para Cherix (2015), a história de um corpo é construída através das experiências de prazer que
deixam traços na memória. O sujeito cria uma imagem corporal inconsciente que permite que
ele se reconheça e se identifique em vários momentos da sua vida. Existe uma distância entre a
imagem do corpo e imagem do espelho.
Além disto, Maria traz questões sobre a mudança do seu corpo com o passar dos anos e
acentuadas com a menopausa. Tais aspectos mostram-se importantes em seu discurso sobre sua
autoestima, o seu olhar sobre este corpo, pois, segundo relato da paciente, não se sentia mais
mulher.
– “Meu corpo não é mais o mesmo, com a idade e principalmente com a menopausa, tudo
mudou. Eu nunca gostei do meu corpo, mas agora não reconheço. Eu olho as mulheres na
rua e fico pensando se elas tem os seios caídos igual aos meus e se elas tem barriga
grande”(sic)
Durante esta fala Maria olha em direção aos seios e barriga da terapeuta, que aparenta
sinais de gravidez. Motta (2009) conceitua, quando a terapeuta engravida, ocorre uma
interferência no setting, reportando o paciente à união e à separação mais primitiva com a mãe,
o que a caracteriza de uma forma singular.
Podemos pensar que para Maria, paciente que está passando por um período de crise,
onde estão ocorrendo mudanças corporais significativas, a presença da terapeuta mais jovem e
possivelmente gestante, despertaram questões transferenciais referentes ao seu momento atual
e, sendo assim, relaciona-se diretamente com a história atual e pregressa da paciente. O seu
desejo de ser avó demonstra seu conflito maior, a entrada na terceira idade, a qual por si só, traz
modificações importantes no corpo físico e também no psiquismo.
Na vida da paciente há marcos que sinalizam diferentes fases e que são episódios
marcantes para seu corpo e sua história. Entre esses eventos importantes, podemos citar a
menarca, a gestação e a última menstruação, conhecida como menopausa, a qual se caracteriza
pelo cessar da capacidade reprodutiva, trazendo consequências relativas e particulares, com
efeitos subjetivos, positivos ou negativos à velhice. Estas mudanças envolvem uma
transformação psicológica, física e social, que vão retificar e corrigir a imagem do indivíduo.
Conforme Mori; Coelho (2004, p. 182), “na impossibilidade de ser, muitas mulheres da meia-
idade se veem abaladas na capacidade de fazer, de atuar no mundo de maneira saudável”.
Maria encontra-se na menopausa. O termo menopausa foi criado pelo ginecologista
francês, Gardanne, em 1812, ao realizar um estudo sobre esta fase do ciclo vital. A origem da
palavra vem da soma de dois elementos que significam mens (mês) e pausa (parada). Segundo
Mori; Coelho (2004, p.179) “a menopausa, então, é o último período menstrual do ciclo
reprodutivo feminino”. Com o fim da menstruação e da juventude a mulher realiza o luto de
não ter mais a facilidade do materno nem a de sua beleza e assim, ela realiza o fim da
possibilidade de um filho.
Após levantar a possibilidade de voltar a ter uma posição mais ativa e fazer algo que lhe
proporcione prazer, Maria relata: “eu não sei no que eu poderia trabalhar, gostaria de fazer
alguma coisa, mas agora? Fazer o que?” (sic). Dessa maneira, a paciente demonstra que já não
se sente mais capaz de trabalhar ou realizar a descoberta de uma nova atividade. Há uma ideia
que associa feminilidade aos aspectos da fertilidade e da juventude que pode fazer com que as
mulheres no climatério e especialmente após a menopausa se sintam improdutivas e incapazes
de desempenhar realizar novos projetos de vida. (BRASIL, 2012).
Com isso, Maria faz a associação de que como está tornando-se uma pessoa idosa, é
aposentada e seu corpo apresenta modificações, não pode mais desenvolver alguma tarefa, pois
está envelhecendo. Valença; Filho; Germano (2010, p. 280) comentam sobre este momento:
A menopausa, no entanto, significa apenas o fim do período de fecundidade. Não é e
nem deve ser o fim da vida nem da capacidade produtiva e tampouco o fim da
sexualidade, manifestada ou não através da qualidade da vida sexual e da libido
apresentadas pela mulher nessa fase.
Frente à menopausa e todas as questões que esta fase do ciclo vital proporciona a mulher,
a paciente Maria trás para as sessões de psicoterapia suas problemáticas diante das mudanças
que ocorreram e estão ocorrendo no entorno de sua vida. Neste caso, é importante ressaltar o
fato de que Maria transfere para a terapeuta seus conflitos com o corpo e as modificações que
ele sofreu desde que o climatério e a menopausa iniciaram. No que se refere à terapeuta
devemos pontuar que é uma pessoa jovem e gestante. Essas duas questões estão em desencontro
com o que está acontecendo na vida da paciente, ou seja, Maria está vivenciando a
aposentadoria e o início da velhice, não podendo mais ter filhos, em função da menopausa,
enquanto sua atual terapeuta está grávida e longe do período de aposentar-se. Essa dicotomia
movimenta aspectos internos da paciente, em alguns momentos, demonstrou seu conflito
através da transferência.
Outra questão que Maria traz é sobre a sexualidade, onde relata: “Eu já não tenho mais
aquela lubrificação natural, eu fico apavorada só de pensar em transar e o Benjamin é mais
novo que eu e é muito potente” (sic). Segundo Brasil (2012, p. 21) “os órgãos genitais assim
como o restante do organismo mostra, gradualmente, sinais de envelhecimento. O evento da
menopausa pode ser vivenciado, por algumas mulheres, como a paralisação do próprio fluxo
vital”.
Sobre a gravidez aparente da terapeuta, Maria começou a trazer nas sessões
pensamentos sobre a maternidade. Para a paciente essa modificação real, vista em sua
concretude, mostra uma situação reveladora da vida da terapeuta que pode interferir no
tratamento, além de exercer um papel relevante nas intervenções e na transferência estabelecida,
pois se trata de uma experiência única, altamente carregada de estímulos, fantasias e desejos
infantis reprimidos. Maria fala:
-“O médico disse que depois de um ano que os remédios demoram para sair
totalmente do organismo da mulher, só que já passou esse tempo e nada ainda, minha filha
ainda não conseguiu engravidar, tu que tá passando por esse momento, como foi para ti? Tu
demorou pra engravidar?”
Por se tratar de uma evidência sobre a vida pessoal da terapeuta, a gravidez oportuniza
o reaparecimento de sentimentos e conflitos, pois há um intruso dentro do setting terapêutico
que passa a ser alterado sem o consentimento do paciente e que agora vive em uma tríade. Maria
diz -“agora dá pra ver bem tua barriguinha” (sic). Assim a gravidez torna-se visível a paciente,
quebrando o conceito de neutralidade, pois se configura um momento pessoal e íntimo da vida
da terapeuta, que afeta setting e curso do tratamento (TONON, 2012).
Portanto, a gravidez da terapeuta desperta em Maria diversos questionamentos que vem
à tona em sessão, como, por exemplo, “agora tua barriga cresceu”; “essa barriga ta cada vez
maior”; “com quantos meses tu ta?”; “já sabe o sexo?” (sic), podendo ser entendido como um
movimento transferencial. É possível compreender segundo Tonon (2012) que muitos
sentimentos transferenciais podem surgir ao longo da psicoterapia evocados pela gestação,
como perda, abandono, inveja, medo e repulsa sobre a anatomia e sexualidade feminina, desejos
e medo de engravidar, idealização e desvalorização, ansiedade e culpa por desejos de morte do
feto ou da terapeuta e preocupações de reparação.
– “Então, não tenho o que te falar hoje, não sei se tu tem algum plano, pois até pensei
se não seria o caso de alta”
A paciente demonstra os sentimentos que surgem ao se sentir desamparada e mostra a
sua dificuldade ou incapacidade de elaboração e coloca em questão a possibilidade de terminar
o tratamento sem que a terapeuta tenha cogitado o mesmo anteriormente. Segundo Tonon
(2012, p. 89) “a percepção da gravidez acontece de forma particular e específica com cada
paciente. As reações são as mais variadas, conforme a conflitiva e personalidade de cada
indivíduo”.
Outro fator de importância neste caso é o setting terapêutico e a linguagem nele
utilizada. Moreira e Esteves (2012) consideram que o setting é um novo espaço para o paciente,
um lugar onde ele pode reeditar questões do passado, aproximar-se de fantasmas e dores que
lhe incomodam. Por isso é um lugar que deve ser cuidado e preservado ao longo do tratamento.
Portanto, no caso de Maria, ter um espaço para pensar e entender questões internas é de suma
relevância, pois foi neste ambiente em que seu conflito pode aparecer de forma segura e
amparada.
Ainda no setting terapêutico, devemos observar as manifestações não verbais, como as
emoções, presentes nessa relação, que representam fatores determinantes para ajudar o paciente
a enfrentar os seus conflitos psíquicos e resgatar o significado de sua vida. (FIGUEIREDO,
2005). Enfatiza-se a importância do vínculo entre terapeuta e paciente, bem como uma
linguagem sensível no processo terapêutico visto que ambas estão vivenciando um papel no
ciclo vital, em diferentes momentos e espectros, tornando possíveis encontros dentro do setting
que proporcionem o desenvolver da dupla analítica. O setting sempre um significado e o
terapeuta tem de estar atento para perceber essas mudanças no desenvolvimento do processo
analítico (ETCHGOYEN, 1989).
A partir disso, é possível entender que a presença da terapeuta grávida, despertou
transferencialmente questões importantes na paciente, ou seja, é papel da terapeuta acolher e
compreender o conflito que está se apresentando no ambiente, pois de certa forma, há um
“intruso” o setting que mexeu com aspectos internos de Maria. Assim, a terapeuta pode analisar
o todo das questões psíquicas da paciente.
Por fim, o presente trabalho buscou aprofundar questões da crise vital em que a paciente
apresentada encontra-se. Além disso, buscou-se mostrar que a gravidez da terapeuta é um
elemento importante na psicoterapia, tanto em relação à paciente quanto em relação à própria
terapeuta, bem como também foram explorados aspectos do climatério, menopausa,
modificações corporais e psíquicas. Diante deste momento sensível foram trabalhadas muitas
questões que envolviam o feminino, fertilidade, maternidade e assim, foi-se aprofundado o
olhar que a paciente possuía sobre si mesma, fazendo com que ela se enxergasse além de sua
patologia, sendo capaz de perceber a possível relação de seus conflitos atuais com suas
vivências primitivas, a influência que tiveram em seu ser e que aparecem na transferência com
a gestação de sua terapeuta.
REFERÊNCIAS
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