Sérgio Telles
Atiq Rahimi, como ele mesmo diz “nascido na Índia, encarnado no Afganistão e reencarnado na França”, é cineasta, escritor e artista plástico, autor de vários livros já publicados no Brasil.
“A balada do cálamo”, agora lançado, é um livro peculiar. São ralos os elementos autobiográficos – a vida no Afganistão, o pai juiz da Suprema Corte antes de ser torturado e ficar 10 anos na prisão, a mãe enlouquecida procurando talismãs para protegê-los contra a má sorte, a morte do irmão comunista, a fuga para a Índia e, finalmente, o aportar na França, a residência em Paris e o desenvolvimento de suas habilidades artísticas. Tais elementos autobiográficos estão diluídos num forte caldo poético e aforismático, cuja degustação exige um paladar educado, como acontece com as ostras e o caviar. Nem todo mundo aprendeu a gostar.
Numa noite parisiense, Rahimi se dispõe a escrever sobre o exilio, essa condição cada vez mais frequente num mundo em ebulição geopolítica, mas logo se dá conta da dificuldade para abordar essa experiência inefável de perdas e descentramentos, uma voragem que ameaça a própria identidade.
Sem encontrar as palavras adequadas, espontaneamente faz na folha em branco a sua frente um traço que o faz lembrar o alef, a letra sagrada da escrita persa.
É um bom achado, pois o rabisco o leva de volta à infância, às aulas de caligrafia, ao uso do cálamo – o caniço usado para escrever, ou melhor seria dizer desenhar, as letras de sua escrita pictográfica, intimamente ligadas à palavra sagrada de Alá, uma experiência formativa muito diferente da que temos nós ocidentais, que há muito habitamos um mundo mais laico, no qual a escrita já não guarda tantos resquícios da ligação com o sagrado, com a palavra divina. Dessa forma, Rahimi descobre a via para escrever sobre o exilio, através da língua e de sua escrita, e, ao fazê-lo, reencontra sua cultura e a reafirma, constatando que não a perdeu, pois ela se entrelaça com as demais culturas do mundo.
Muitos são os exílios, descobre Rahimi. Somos exilados do útero, do Éden, da infância. Mas se dá conta de que há uma dimensão libertadora no exílio. Além de fonte de sofrimento e rompimentos irreparáveis, ele é também o desejo e a necessidade de partir, o partir para não morrer. Diz ele: “Minha mãe (no parto) suplicava-me para partir, não para se livrar de mim, mas para não morrer de dor, ou para não me deixar nela perecer” (p. 63).
Mas Rahimi transcende o tema do exílio, na medida em que se embrenha no mistério das letras e das palavras, no oficio do escritor, em sua tarefa de captar a vida fugidia que escapa pelos dedos, pelos dentes, pelos braços e fixá-la em letras, palavras, escrita, texto, literatura, vencendo com isso o esquecimento, a morte, o vazio. Talvez seja essa extraordinária façanha do escritor que explique o porquê da conotação misteriosa e mágica que acompanha as letras e a palavra escrita, algo que as aproxima do sagrado, do divino, da palavra dos deuses.
Embora fiel a sua cultura e sua língua, ainda assim Rahimi as subverte ao transformar a caligrafia em calimorfia. Explica: “a calimorfia desnuda a letra, ou mais precisamente, desveste a língua, minha língua, o persa. As letras não são mais ali signos gráficos abstratos para embelezar, ornar e sublimar a palavra de uma verdade divina; ela ´naturaliza´ o arbitrário das letras e palavras. Ela busca humanizar o sagrado, e recusa-se a sacralizar o humano”. (p.144).
As calimorfias de Rahimi, onde as letras se antropomorfizam, se transformam em corpos humanos, especialmente em corpos de mulher, da mãe e da amante, terminam por ser consideradas pelos críticos como produções de artes gráficas, passiveis de serem colocadas no mercado de arte. Escrever, filmar, desenhar – formas de Rahimi lidar com o exilio, de transformar a desordem interna por ele provocada numa ordem estética.
Da leitura de “A balada do cálamo” se desprendem duas importantes constatações. Ao pinçar textos literários e místicos das mais diversas épocas e proveniências, Rahimi propõe uma “tessitura de diferentes artes, a mestiçagem de diferentes culturas, de diferentes religiões, de diferentes línguas” (p.103). Dessa forma posiciona-se contra a ideologia delirante da raça pura, que tanta destruição já causou. Por outro lado, ao expor a antiga e grande riqueza cultural do islã, corrige a falsa imagem alimentada pela mídia, que o reduz ao fanatismo religioso bárbaro e selvagem do terrorismo político.
(*) Publicado no suplemento “EU&FS” do jornal “Valor Econômico” em 27/07/2018