Sérgio Telles
A saga de Cristiano Ronaldo, semelhante a de tantos outros astros dos esportes, é bem conhecida: uma família muito pobre, o pai de quem tinha vergonha e que morreu cedo como alcoólatra, a mãe simples que escreveu uma autobiografia indiscreta, na qual confessa ter planejado abortar o rebento que viria ser o fenômeno futebolístico que vive no centro das atenções do público.
Não espanta, pois, a polêmica que hoje ocorre em Portugal sobre a paternidade de seus quatro filhos. (http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2018/01/15/por-que-paternidade-de-cristiano-ronaldo-provoca-controversia-em-portugal.htm )
Comenta-se que os três primeiros nasceram nos Estados Unidos por inseminação artificial e uso de barriga de aluguel e, apenas o último, nasceu de sua atual namorada. Logo depois do nascimento, os três primeiros filhos foram entregues à sua mãe para criá-los. As notícias afirmam que Cristianinho, o filho mais velho agora com 7 anos, insiste em saber quem é sua mãe e lhe é dito que ela morreu ou que está viajando. Indagado sobre os eventuais efeitos danosos dessa situação para o filho, Cristiano Ronaldo diz não ver nada demais, muita gente vive sem nenhum dos pais, seu filho tem um pai e a avó, é o suficiente.
Não saberia dizer quanto de fake news haveria nessas notícias publicadas em muitos sites, muitos deles de jornais e revistas bem estabelecidos.
Mas, para nossos objetivos, isso é irrelevante. Uma história como essa poderia perfeitamente ser relatada num consultório de psicanálise. Se um paciente me contasse algo semelhante, mesmo reconhecendo que muito ainda precisaria ouvir para entender sua vida psíquica, esses dados já seriam bem reveladores e me permitiriam levantar algumas hipóteses.
Em primeiro lugar, faria mais uma vez a constatação de como os processos de reprodução humana sofreram grandes modificações em função da tecnociência e das mudanças da moral social, hoje aberta a famílias e casais compostos de gêneros os mais variados. Isso faz com que os papeis convencionais de pai e mãe sejam reconsiderados.
Dentro desse contexto, pensaria como a paternidade ocupa um lugar importante na problemática desse hipotético paciente, pois é evidente que “ser pai” lhe é uma questão prioritária. Usando dos recursos financeiros que dispõe, providencia uma doadora de óvulo, que ele fecunda com seu próprio sêmen e contrata uma segunda mulher para gestar o óvulo fecundado. No devido tempo a criança nasce e é entregue a sua mãe, que deve cuidar dela como cuidou dos próprios filhos, ou seja, dele mesmo. Ao ser indagado sobre como o filho viveria isso, o hipotético paciente indiretamente diz que o papel da mãe é irrelevante, basta para a criança ter o pai.
Desta maneira, parece mostrar desprezo pelo papel da mãe e uma supervalorização, para não dizer uma onipotência, do papel do pai. Essa situação me faria pensar ao mito de Zeus, que alegava ter gerado sozinho Atenas, sem o concurso de uma mãe, o que alguns apontam como a fraude fundadora do patriarcado, pois, nessa narrativa Zeus, o princípio masculino, usurpa o papel de Métis, o princípio feminino, que, engolida por ele (Zeus) e aprisionada no corpo dele, ali gestara a filha de ambos, Atenas.
Essa peculiar visão da paternidade e da maternidade refletiriam a história do paciente? Sabemos que seu pai era um homem fraco e fracassado, alcoólatra, irresponsável, incapaz de prover e cuidar da família. A valorização excessiva da figura paterna poderia ser uma maneira de reparar, consertar a imagem destruída de seu pai, forjando uma nova, construindo a imagem de um pai e onipotente, com a qual se identifica. Ele mesmo não será um pai humilhado para seu filho. Pelo contrário, será um deus onipotente, ideia fantasiosa que a realidade ajuda a manter, na medida em que com sua própria força e talento conseguiu fama e riqueza, superando em muito suas circunstâncias iniciais.
Acontece que dessa forma, como vimos, elimina a mãe, tornando-a supérflua, desnecessária. Como correlacionar esse dado com a história familiar do paciente, tendo em vista a forma amorosa como descreve sua relação com a mãe? Pois não diz ele que ela será a melhor mãe para seus filhos? Como conciliar isso com o desprezo evidenciado com as mães biológicas, meras fornecedoras do óvulo e da barriga a serem descartas? Ao que parece, estamos diante de uma cisão, da expressão de sua ambivalência frente a sua mãe, ora vista como uma mulher má que queria abortá-lo, contra a qual volta seu ódio e desprezo, rejeitando-a e abandonando-a, ora como uma mãe idealizada, fonte de desvelo e cuidados. Por outro lado, ele “dá filhos à mãe”, como fazem os maridos com suas mulheres. Poderia ser essa uma expressão do desejo incestuoso de ter filhos com a mãe.
Entretanto, foi tudo diferente com o último filho. O paciente engravidou uma namorada, que pariu a criança e assumiu a maternidade. Sua mãe está ausente no episódio, assim como não aparece a necessidade de criar uma imagem ideal de um pai que gera um filho sozinho. Isso indica uma significativa mudança em sua vida psíquica. Ele agora não está mais tão preso às ligações infantis com o pai e a mãe. Pode romper com a endogamia e estabelecer uma relação exogâmica, ou seja, não incestuosa com uma mulher que ama.
Esse fato seria indício de que, apesar dos traumas e conflitos presentes, o paciente mostra reservas internas que autorizam uma visão esperançosa e otimista do trabalho analítico a ser feito.