Fernando Portela Câmara, MD, PhD

Fundador do Instituto Stokastos

 

Resumo. Comentários sobre a nova Classificação Estatística Internacional de Doenças da OMS, CID-11.

Summary. Comments on the new WHO International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems, ICD-11.

 

Uma classificação internacional de doenças é antes de tudo um instrumento necessário para se avaliar o estado de bem estar de uma população ou de um país. As estatísticas de saúde são um indicador muito mais adequado e seguro para esse propósito do que os indicadores econômicos. Com essa ferramenta traçamos a condição modais de saúde, traumatismos e mortalidade nas diferentes fases de vidas das pessoas.

Estatísticas de saúde são hoje a base para a tomada de decisões com relação a planejamento e políticas de saúde (p. ex., SUS e saúde complementar), com base na prevalência de doenças e casas de mortalidade. É também o instrumento que ajuda a decidir as prioridades para pesquisa e prevenção, e também onde investir recursos, cada vez mais escassos.

Uma classificação internacional de doenças deve proporcionar uniformidade da linguagem e dos critérios, bem como uma codificação padronizada de fácil uso. No mundo atual, uma classificação deve ser precisa, simples e adaptada para coleta e análise automatizada de grandes volumes de dados (Big Data).

A 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Conexos de Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), conhecida entre nós como CID-11, está agora disponível na Internet para visualização e consulta (https://icd.who.int/browse11/l-m/en). Ela substituirá a anterior, que vigora desde 1990, e será apresentada na Assembléia Geral de Saúde no ano que vem (2019). A novidade é que ela vem em versão eletrônica com entradas que podem ser facilmente usadas diretamente no computador e smartphone, aumentando a acessibilidade da CID-11 mesmo em lugares com poucos recursos. Espera-se que essa facilidade e simplicidade do uso permitam que a coleta de dados seja ampliada.  Os países terão tempo para e adaptarem e por isso a CID-11 entrará em vigor somente em 2022.

Mudanças, acréscimos e novidades foram realizados nessa nova classificação. Por exemplo, os AVCs, que há seis décadas estavam no capitulo das doenças circulatórias, mudou agora para o capítulo de doenças neurológicas. Outra novidade foi a inclusão da medicina tradicional para se registrar dados epidemiológicos sobre transtornos descritos na medicina chinesa que ainda hoje é de uso comum na China, Japão, Coréia e outras partes do mundo.

No âmbito da psiquiatria tivemos algumas mudanças importantes. Os problemas de saúde mental estão no capítulo 6 sob o título “Transtornos mentais, comportamentais e do neurodesenvolvimento”, assim conceituado: “Síndromes caracterizadas por distúrbios clinicamente significativos na cognição, regulação emocional ou comportamento de um indivíduo, que refletem uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental e comportamental. Esses distúrbios geralmente estão associados a sofrimento ou prejuízo nas áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais, ocupacionais ou outras áreas importantes de funcionamento.”

Não houve muitas mudanças nesse capítulo. Foram excluídos a reação de estresse agudo e o luto não complicado; simplificou-se a classificação do transtorno de estresse pó-traumático, o que esperamos dar maior visibilidade a este diagnóstico; e o transtorno de conduta sexual compulsiva foi reclassificado como transtorno de impulso sexual excessivo.

Duas novidades aparecem no campo das condutas de adição: o transtorno de acumulação e o transtorno de videogames (gaming disorder – 6C51). Este último já começa a ganhar a mídia pelo interesse que desperta na população e foi assim caracterizado:

“Padrão de comportamento persistente ou recorrente de jogos (‘jogos digitais’ ou ‘videogames’), que pode ser online (ou seja, pela Internet) ou offline, manifestado por:

1) controle prejudicado sobre jogos (início, frequência, intensidade, duração, término, contexto);

2) prioridade crescente dada ao jogo, na medida em que o jogo tem precedência sobre outros interesses da vida e atividades diárias;

3) continuação ou escalada de jogos, apesar da ocorrência de consequências negativas.

O padrão de comportamento é suficientemente grave para resultar em prejuízo significativo em áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais, ocupacionais ou outras áreas importantes de funcionamento. O padrão de comportamento do jogo pode ser contínuo ou episódico e recorrente. O comportamento de jogo e outras características são normalmente evidentes durante um período de pelo menos 12 meses para que um diagnóstico seja atribuído, embora a duração necessária possa ser encurtada se todos os requisitos de diagnóstico forem cumpridos e os sintomas forem severos.”

O capítulo dos transtornos mentais simplificou os códigos das doenças mentais com o intuito de tornar mais fácil o sistema para os que trabalham na atenção primária. A OMS levou em consideração a escassez de psiquiatras em muitas regiões – cerca de nove em dez pessoas que precisam de assistência psiquiátrica não a recebe.

Duas outras condições, até então classificadas dentro dos transtornos mentais e do comportamento, foram removidos dessa categoria e ganharam capítulos próprios. São eles o “transtorno do sono-vigília” (capítulo 7) e as “condições relativas à saúde sexual” (capítulo 17). As disfunções sexuais e a incongruência de gênero fazem agora parte deste novo capítulo, não mais sendo consideradas como distúrbios mentais.

Em minha opinião, com a criação de um capítulo sobre saúde sexual, a CID-11 iniciou um revolução. A saúde, tradicionalmente dividida em física e mental, agora é tripartite, ou seja, temos agora, segundo a OMS, três modalidades de saúde: física, mental e sexual. A tradicional separação do humano em corpo e alma, agora se torna corpo, alma e sexualidade. Além da separação tradicional de corpo e mente, temos agora a sexualidade separada de corpo e mente. Prossegue a tradição que começou com Kant fragmentando o conhecimento em áreas que não necessariamente dialogam entre si. Não sei se os filósofos já perceberam isso, mas suscitará bons e esclarecedores debates.

O novo capítulo “Condições relacionadas á saúde sexual” recebe condições antes incluídas no capitulo das doenças mentais. Por exemplo, a incongruência de gênero está agora alocada nesse capítulo, isto é, não é mais um transtorno mental e do comportamento, mas um transtorno da saúde sexual. Com isso, elimina-se a associação dessa condição com transtorno mental, que tanto estigmatizava as pessoas transgêneros.

São mudanças que parecem iniciar a recondução da psiquiatria de volta às suas bases empíricas. A psiquiatria torna-se mais psiquiatria.

Similar Posts