Fernando Portela Câmara, MD PhD

 Psiquiatra, Biofísico Mat

Diretor Científico do Instituto Stokastos

http://institutostokastos.com.br/

 

É na infância que o cérebro e os padrões neurais são desenvolvidos, graças à capacidade do cérebro para remodelar suas conexões em resposta a experiências do indivíduo. Isto é o que comumente se chama de plasticidade cerebral.

Sabe-se agora que experiências vividas na tenra infância podem afetar o DNA dos neurônios. Um estudo recente encontrou que ratos que não recebiam cuidados de sua genitora nos primeiros dias após o nascimento, apresentavam deslocamento de vários genes nas células cerebrais. Surgiu daí a pergunta: será que algo semelhante poderia ocorrer no cérebro de bebês humanos, explicando assim – ao menos em parte – os transtornos neurológicos/psiquiátricos do desenvolvimento? Claro que entre ratos e humanos vai lá uma diferença muito grande, mas a pergunta é válida.

Alguns genes podem migrar de um ponto a outro do genoma, gerando mosaicos de células geneticamente variantes. É bem conhecido o efeito mutagênico de segmentos de DNA que “saltam” de uma região a outra e podem, nesse processo, inativar um gene ou alterar outros. Esses segmentos móveis peculiares são denominados “transposons”. Aqueles que fazem uma cópia de si mesmos para saltar para outra região do genoma, são chamados de “retrotransposons”. Isso também é verificado nas células cerebrais quando estas estão se dividindo, fato bem documentado em células do hipocampo de ratos.

Há algum tempo sabe-se que o meio ambiente pode influir no DNA das células, mas não se sabia se estas mudanças são aleatórias ou se certos tipos de alteração são mais frequentes que outras. Um grupo de pesquisadores (T.A. Bedrosian et al., Early life experience drives structural variation of neural genomes in mice, Science, doi:10.1126/science.aah3378, 2018) estudou o retrotransposon LINE-1 (L1) de células em estágio de divisão no hipocampo de ratos recém nascidos, em uma situação em que faltavam os cuidados maternos. O controle eram ratinhos que recebiam atenção da mãe (frequência de lambidas, entretenimento, descanso, etc.). Após duas semanas, os pesquisadores analisaram as células do hipocampo dos filhotes e observaram uma associação significativa com o número de cópias de L1. Na ausência de cuidados, as quantidades de cópias e de deslocamento de L1 eram muito mais altas, e, ao mesmo tempo, a atividade da metiltransferase sobre o sitio promotor da transcrição de L1 era baixa, sugerindo que a redução de metilações nessa região facilitaria a mobilização do retrotransposon.

Isso só evidencia que a separação entre genes e ambiente não é totalmente aleatória, mas que existem forças interativas que precisamos estudar mais a fundo. Entretatno, ainda é muito cedo para se questionar o modelo evolucionista padrão, e devemos ter cautela com o entusiasmo de uma “ciência epigenética”, que atualmente vem sendo tratada pelos mais exaltados como uma “ciência do explica tudo”, talvez um moment fécond de la paranóia coletiva. Pretende-se, inclusive, “explicar” as neuroses e a psicoterapia através da epigenética, como se motivações inconscientes ou a palavra na terapia tivesse o poder de modificar genes e afetar a síntese de metiltransferases e a transcrição de RNAs. Não precisaríamos mais da farmacologia, da biologia molecular ou da química, se tivéssemos esse poder.

Alterações genômicas de natureza epigenética são bem conhecidas e correlacionadas a alterações quantitativas, como síntese de uma dada proteína ou a regulação de uma dada via metabólica, e assim correlacionadas com variáveis quantificáveis como peso, variação morfológica, coloração etc. O reducionismo do “fator ambiente” a uma causa específica é temerário, pois o meio é extremamente complexo, multivariado, não sujeito a controle, e por tal pode ser uma causa para tudo, resvalando-se na falácia lógica. Em psiquiatria devemos examinar essas questões com muito discernimento. Não se perde com excesso de grano salis. Associar o subjetivismo psíquico e o manejo verbal do inconsciente a metilação de bases nitrogenadas no genoma é uma ingênua fantasia de causalidade. Metilases, purinas, pirimidinas, pentoses, ligações fosfodiester, histonas, são entes objetivos, especificados por critérios quantitativos e correlacionados a entes igualmente objetivos – quantificáveis – e específicos. Devemos ter cuidado com as metáforas, qeu não são entes científicos, e analogias só são cientificamente aceitáveis dentro dos critérios de isomofismo ou homomorfismo. Como disse Eric Kandel, é como visitar uma exposição de arte abstrata, onde somos levados a preencher os numerosos vazios conceituais dos objetos apresentados, com metáforas e projeções de nossos próprios desejos e crenças.

Similar Posts