Sérgio Telles

 

Há um mês e meio, foi noticiado o suicídio, aos 29 anos, de Victor Heringer, festejado escritor.

O suicídio é sempre chocante, desde que nos obriga a encarar o poder da pulsão de morte presente em todos nós, constatar sua capacidade de destruição voltada para aquilo que supostamente mais deveríamos preservar e zelar, a própria vida. O choque fica maior quando o suicida é jovem, alguém no início de uma vida que poderia ser rica e produtiva.

Até então nada lera de Heringer. Ao saber do ocorrido, me senti inclinado a procurar seu último e elogiado livro, “O amor dos homens avulsos” (Companhia das Letras, 2016) e o li procurando detectar nas entrelinhas indícios da melancolia e autodestrutividade que o aniquilariam em seguida. Um pouco como fizera antes ao ler David Foster Wallace, especialmente seu livro “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, no qual é impossível não perceber pelo menos dois contos – “O suicídio como uma espécie de presente” e “A pessoa deprimida” – como claros indícios de suas ideias suicidas.

Não é a melhor maneira de ler um livro. O fantasma do autor assombra o texto, o leitor fica tentando encontrá-lo nos desvãos dos parágrafos. Tal perspectiva fortalece a permanente e usual confusão feita pelo leitor entre autor e personagem/narrador, confusão reforçada pela moda atual das “autoficções”, nas quais há uma deliberada indiscriminação entre o ficcional e o biográfico, na qual a nudez do autor mal se cobre com trapos ou tropos imaginários.

“O amor dos homens avulsos” tem valores inegáveis. Vê-se que Heringer tem um projeto autoral. Se esforça para criar uma moldura convincente que pretende abranger a realidade histórica econômico-social do pais na qual circulam seus personagens e, mais importante, revela um talentoso manejo da linguagem, criando figuras inesperadas e originais, fortes e certeiras, como as que abrem o livro: “No começo, nosso planeta era quente, amarelento e tinha cheiro de cerveja podre. O chão era sujo de uma lama fervente e pegajosa. Os subúrbios do Rio forma a primeira coisa aparecer no mundo, antes mesmo dos vulcões e dos cachalotes, antes de Portugal invadir, antes de Getúlio Vargas mandar construir casas populares. O bairro do Queím, onde nasci e cresci, é um deles. Aconchegado entre o Engenho Novo e Andaraí, foi feito daquela argila primordial, que se aglutinou em diversos formatos: cães soltos, moscas e morros, uma estação de trem, amendoeiras e barracos e sobrados, botecos e arsenais de guerra, armarinhos e bancas de jogo do bicho e um terreno enorme reservado para o cemitério. Mas tudo ainda estava vazio: faltava gente”.

Assim Heringer inicia a cosmogonia do universo que está a criar e povoar com seus personagens.

A ação se passa nos anos 70 e no presente, o texto se organiza como um intricado labirinto de idas e vindas em que Camilo criança ou adolescente se reveza em cena com o Camilo maduro, de meia idade. Para fins de análise, a história está aqui resumida a uma linearidade cronológica e os que pretendem ler o livro, caso queiram fazer suas próprias descobertas no texto de Heringer, devem interromper essa leitura agora e retomá-la somente ao concluir o livro, pois o que se segue está minado com spoilers.

Condizente com o meio distópico em que vive, Camilo – que tem uma única irmã – é, como diz no texto, um aleijado – tem uma perna atrofiada e precisa de muleta para se locomover. Mora num subúrbio infecto do Rio, mas é o rico da turma; sua casa – que tem piscina – é uma ilha de prosperidade na pobreza generalizada em que os vizinhos vegetam. Talvez por isso, ele e a irmã pouco saem à rua. A família não poderia ser mais disfuncional. O pai é um médico alcoólatra que dava assistência aos presos torturados da ditadura, a mãe uma mulher enlouquecida, obsessivamente limpando e polindo “ovinhos de porcelana”, falsos Fabergés. Abandonados pelos pais, as únicas figuras cuidadoras amáveis são as empregadas negras Maria Ainá e Paulina. Em algum momento, quando Camilo está ingressando na adolescência, de forma inesperada, o pai traz para casa um menino, Cosme, um pouco mais velho que Camilo, supostamente filho de um dos presos assassinados pela ditadura. A chegada de Cosme muda por completo a vida de Camilo, pois os dois se apaixonam perdidamente e vivem um breve caso amoroso por duas semanas, até ser ele assassinado por Adriano, marido de Paulina, que os flagrou fazendo sexo. Um crime homofóbico que marca para sempre Camilo, impossibilitado de fazer o luto por tal perda. Anos depois, já maduro, descobre Renato, o neto do assassino, um menino de dez anos, com quem passa a ter um relacionamento peculiar.

Se não me perdi nos meandros das alternâncias de tempos narrativos, é o que entendi do enredo, que, junto com a construção dos personagens, me pareceu levantar algumas questões. Por exemplo, o uso da ditadura e seus recorrentes avatares como elemento narrativo poderia ser melhor explorado. Da maneira como está, parece forçado, supérfluo, gratuito. A história em nada se alteraria caso esse elemento fosse suprimido. Mães loucas e pais irresponsáveis pululam por aí, sem nenhuma vinculação com regimes autoritários. Ser ou não filho de um torturado não tem relevância alguma nos desdobramentos do personagem Cosme.  No que diz respeito à relação de Cosme com Camilo, parece inverossímil que nos anos 70, nos subúrbios cariocas, uma gangue de adolescentes da periferia aceitasse de bom grado, sem rejeição, um casal homossexual entre eles.

A própria constituição do personagem Camilo não é muito congruente. Com exceção do breve e trágico interlúdio amoroso, ele transborda amargura e descontentamento, maldizendo a vida, a sociedade, a humanidade, o que se agrava com a perda de Cosme. Em que mesmo teria se transformado na vida adulta? O encontro com Renato, abandonado menino de rua e neto de Adriano, assassino de Cauim, é um acontecimento decisivo para Camilo e, de maneira nebulosa, dá alguma indicação. Camilo se apega a Renato de forma ambígua, pois junto com os cuidados com o menino de rua e a lembrança do avô assassino, tonalidades eróticas são insinuadas: “(Renato) Se entregou sem muitos porquês, como essas meninas pobres que, mesmo com muita honra e amor-próprio, se dão mais fácil aos homens (coisa que minha irmã, por exemplo, nunca faria. Papai tinha dinheiro. O dinheiro compra porquês e compra pudores)” – p. 60; “O Renato vem e me dá um beijo na bochecha, a boca entreaberta. As laterais de meu pescoço, subindo até as orelhas, se agudizam” – p.127. Na parte final do livro, Camilo se comporta como um “pai” adotivo exemplar de Renato, cercando-o de mil cuidados. Mesmo que Heringer visasse mostrar uma transgressiva versão de uma relação do tipo pai-filho, no qual o tabu do incesto é rompido, não é convincente a improvável mudança do perfil até então mantido pelo personagem.

O livro padece ainda de algumas modernices. Desde que Sebald inseriu algumas fotos em seus textos, vários outros escritores têm feito o mesmo, com discutíveis resultados. Se em Sebald elas são evanescentes, evocativas, recursos visuais do entrecho narrativo literário, aqui elas são desnecessárias, dispensáveis, mero modismo. O mesmo ocorre com os desenhos infantis que surgem no meio do texto, como o recorrente “sol” cuja função não se consegue atinar. Este leitor também não entende o porquê da peculiar numeração dos capítulos, que não têm a sequência habitual. Vai normalmente até o capitulo 60 e, entrando em ritmo regressivo, volta para o 59, terminando no capitulo 34. A própria disposição do texto sofre uma mudança: os capítulos se sucedem sem intervalos até o final do capitulo 58, quando há um página em branco, marcando de forma clara uma divisão do livro, que ganha um subtítulo – “Um sol dentro de casa” (acompanhado pelo nosso já conhecido desenho de “sol”).  Supondo que o autor tenha tido algum propósito com essa disposição do material, ele não fica evidente para o leitor, pelo menos para esse que vos escreve. Agradeço a quem, tendo desvendado o enigma, tenha a gentileza de me iluminar.

Camilo é o rico, cuja casa com piscina está incrustada num bairro pobre da periferia. Essa poderia ser uma metáfora que ilustra bem um dos dilemas do escritor de classe média ao tentar escrever sobre o Brasil de hoje. A escandalosa situação econômico-social do país faz com que tais escritores não se sintam à vontade para abordar sua própria realidade, aquela que efetivamente conhecem. Por culpa, por se sentirem privilegiados, obrigam-se a falar de algo que não conhecem bem, como subúrbios e favelas, pobrezas e misérias. Não que Heringer se enquadre nessa categoria, mas nunca é demais lembrar que a denúncia social na obra de arte é um tema complicado, pode sempre derrapar para a rasa panfletagem política. É  necessário que o autor de classe média esteja atento para  não errar a mão e insistir em estereótipos que só interessa aos já convertidos, distanciando-se da liberdade própria da literatura e se deixando aprisionar pelas cadeias programáticas da ideologia.

Embora descrendo mundos ficcionais muito diversos, “O amor dos homens avulsos” me fez pensar em “Berkeley em Bellagio” de João Gilberto Noll, no que ambos livros incidem numa provocação crítica aos costumes e à sociedade, apoiando-se numa sexualidade desafiadoramente não sacramentada, muito embora a homossexualidade hoje em dia mal se preste a tal papel, ansiosa que está por alcançar foros de legitimidade, pleiteando ao estado a formalização de procedimentos como o casamento, a constituição de família e o exercício de papeis paternais e maternais.

Mas é verdade que a sexualidade (no caso, homossexualidade) especialmente em “Berkeley em Bellagio” não está totalmente domada e normatizada. Resta-lhe uma conotação “maldita”, transgressora. Autores como Sade, Miller, Bataille defendem a sexualidade como uma dimensão legitima do humano a ser explorada plenamente, ainda que para tanto seja necessário romper o cordão sanitário que cerca suas facetas menos domesticadas. Esses autores simplesmente ignoram o cordão sanitário estabelecido pela moralidade pública e vão desbravar os proibidos paraísos sensuais, enquanto Noll, numa atitude de provocação adolescente, fica desafiando o cordão sanitário, ou seja, continua submetido à autoridade.

Em Bataille, a sexualidade, ainda que sempre próxima da animalidade e da brutalidade feroz, é vista como imprescindível parte vital, que não pode ou deve ser rejeitada, porta do orgiástico e transcendência de limites. Em Noll, a sexualidade não está ao lado da vida, está mais próxima da morbidez, da degradação, do doentio, da decadência, da morte. Heringer parece seguir trilha semelhante.

Que a literatura choque, incomode, não surpreende. Está em sua essência o romper limites, o expressar o que a cultura não pode exprimir num determinado momento histórico. Em assim fazendo, amplia os horizontes do pensável, afasta os monstros que medram na escuridão, no não falado, não representado, não simbolizado. Escritores que se apoiam fortemente na sexualidade na construção de sua obra – e que tantas vezes são vistos como meros pornógrafos – estão a expor as matrizes primárias de nossos desejos sexuais e agressivos, que dançam ferozmente sobre o tênue fio que separa a vida e a morte.

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