1. MILITANTISMO UNIVERSITÁRIO E ENGAJAMENTO POLÍTICOOs leitores ocasionais deste testemunho perceberão imediatamente que meu militantismo universitário, entre 1960 e fins de 1963, e minhas atividades nos três primeiros anos após a instalação da Ditadura e antes de deixar o Brasil, foi um engajamento intelectual fundado em ideias humanistas que minha juventude exacerbava. Não fui um combatente no sentido de guerreiro, não participei de resistência armada, a ideia mesmo de cometer um ato terrorista nunca me veio ao espírito, impossível representar-me empunhando uma arma qualquer. Nunca erigi a brutalidade e a violência como necessárias à ação política, mesmo quando ela parecia justificada na medida em que respondia às violências cometidas pela força militar. Sem dúvida, formações reativas, no sentido freudiano do termo, transformaram em seus contrários as pulsões violentas, que, como todo o ser humano, trago dentro de mim. Sem dúvida, outras explicações, interpretações, notadamente hermenêuticas – penso em minha educação protestante- devem ser levadas em conta para entender meu posicionamento político. Sem falar da memória, feita para esquecermos, em todo o caso que pode mostrar-se lacunar, modificar-se, reconstituir-se e assim alterar reminiscências, pensamentos, acontecimentos, sensações… Isto é o que se passa, por exemplo, na autobiografia, gênero literário muito difícil e arriscado, frequentemente transformado em autoglorificação ou em hagiografia de si mesmo. Mais ainda, impossível negligenciarmos o contexto histórico, social, cultural e político da época que, retrospectivamente, queremos entender. E, no que me diz respeito, devo levar também em conta meus instrumentos de compreensão atuais e os conceitos que utilizo marcados pela trajetória que percorri depois de minha longa psicanálise pessoal na França e de minha formação pós-universitária neste país, em psiquiatria e psicanálise. Donde uma postura que me conduz a desconfiar dos sistemas, das ideologias, dos que pensam haver encontrado a verdade, dos que desconhecem o emprego do condicional, ou que confundem conjectura e realidade. Alguns perderam a vida na época da Ditadura, após um engajamento total, radical. Miguel Benasayag, ex – revolucionário e guerrilheiro argentino, agora psicanalista instalado em Paris, contou a sua experiência de guerrilheiro e falou de uma “estrutura do engajamento”. Ele disse que no engajamento, que seja político, científico, artístico ou amoroso, a pessoa não pode se poupar. Isto não significa que a pessoa deva morrer, mas, no engajamento total não existe nenhuma garantia, a pessoa deve estar preparada para o que der e vier, sem saber como as coisas vão se terminar. No caso do engajamento político radical, matar, morrer, praticar terrorismo, combater, torturar, mostrar-se impiedoso são possibilidades que o militante deve assumir completamente. Tal não foi o meu caso. Eu pensava que a pedagogia, a insistência, os debates, a convicção produziriam mudanças nas mentalidades e que uma transição política pacífica resultaria deste processo de “conscientização”, que eu imaginava longo. Eu não era o único a pensar assim: no fundo, o que era o projeto educativo de Paulo Freire? Por que tantos universitários pernambucanos engajaram-se no processo de alfabetização-conscientização a partir do método que ele inventou? Agora, quarenta anos depois, a questão que me vem à consciência é: quem de Paulo Freire ou dos combatentes armados tinha razão? Meu engajamento intelectual naquela época correspondia, em todo o caso, à minha personalidade, à minha educação marcada por uma concepção religiosa (protestante) austera, donde tirei uma concepção política humanista, exatamente oposta àquela segundo a qual os fins justificam os meios. O general Olímpio Mourão Filho, chefe da 4ª Região Militar em Minas Gerais, divulgou uma proclamação contra João Goulart e a “ameaça comunista” que ele representava. “E precipitou a marcha de suas tropas em direção ao Rio de Janeiro, recebendo a adesão da maioria dos comandos militares”, li recentemente numa cronologia desses acontecimentos que foi publicada pela Folha de São Paulo. Quase ao mesmo tempo, tropas do Quarto Exército ocuparam os principais centros estratégicos de Recife e cercaram o Palácio do Governo. Boatos corriam sobre Arraes, que estaria preso, apesar das afirmações do General Justino Alves, comandante do IV Exército, explicando que os militares saíram às ruas para defender as liberdades democráticas. Alvoroço danado, corre-corre, reuniões em toda a parte. Havia como um sentimento de incredulidade, de estupefação, de desnorteamento entre os colegas universitários. Alguns falavam de mobilização, da necessidade de resistir, outros procuravam tranquilizar-se e afirmavam que um golpe era impossível, que se fosse o caso poderíamos contar com os “Grupos dos Onze” de Brizola, as “Ligas Camponesas” de Francisco Julião, a potência do Terceiro Exército do RGS, o maior do Brasil, que defendeu a legalidade constitucional e permitiu a João Goulart de acender à presidência da República, quando da renúncia de Jânio Quadros. Havia também os sargentos, os marinheiros, os quais, em caso de Golpe, desobedeceriam às ordens dos superiores, juntar-se-iam às outras forças mencionadas e impediriam a sua concretização. Neste 31 de Março de 1964, há quatro meses que eu interrompera minhas atividades políticas « oficiais », começadas em 1960 e terminadas em novembro de 1963: duas vezes representante de turma (em 1960 e 1961), presidente do Diretório acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco em 1962, candidato à presidência da União dos Estudantes de Pernambuco em 1963. A política tornara-se quase o meu único centro de interesse e meus estudos de medicina passaram ao segundo plano. Eu passei as férias estudando, pois havia deixado duas matérias para a segunda época, como dizíamos, e ainda estava decepcionado, desapontado por haver « perdido » as eleições para a presidência da União dos Estudantes de Pernambuco, onde fui o candidato que representou « as forças estudantis de esquerda ». Meu adversário, José Tinoco Machado de Albuquerque, era um colega de turma (estávamos no quinto ano de medicina), e representou « as forças de direita », cujo líder era Marco Antônio Maciel, futuro senador. Dois estudantes da mesma turma disputando a presidência da UEP constituía uma situação inédita. Mas, como entender que, havendo obtido a maioria dos votos eu tivesse perdido as eleições? Que, tendo obtido na Faculdade de medicina, na «nossa » Faculdade, cerca de 130 votos a mais do que o meu colega, só me atribuíssem 57% dos sufrágios? E que os 19 votos obtidos na Escola da Administração por José Tinoco, se transformassem em 95% na apuração final? Não me conformava que os estatutos eleitorais tivessem sido modificados antes das eleições, que o escrutínio deixasse de ser direto e se tornasse proporcional, que os 600 alunos da Faculdade de Medicina « valessem » tanto quanto os 20 alunos da Escola de Administração!!! Após esta decepção, meu contacto político limitou-se a encontros com os amigos mais próximos, especialmente da Associação Cristã Acadêmica, que era um clube de reflexão para universitários das Igrejas reformadas, alguns participantes sendo membros da Ação Popular. Desde o terceiro ano de medicina que eu comecei a frequentar as reuniões organizadas pela A.C.A. (Associação Cristã Acadêmica), onde era questão de exegese de textos bíblicos, de estudos de teólogos protestantes, de encontros com pastores e intelectuais, alguns vindo do Sul do Brasil, outros dos EEUU, um terceiro da França para dar uma série de conferências no Brasil. Foi do pastor presbiteriano, de retorno dos Estados Unidos, que ouvi pela primeira vez a misteriosa palavra, ESCATOLOGIA! Ele explicou-nos: « a escatologia concerne as doutrinas religiosas que tratam da questão do fim dos tempos ».O Pastor francês André Dumas abordou o problema do engajamento político como expressão concreta da fé religiosa. Mais ainda, as contribuições da psicanálise eram objeto de discussões, bem como o existencialismo sartriano e os trabalhos de Albert Camus, escritor, teatrólogo e filósofo francês, Prêmio Nobel de literatura. Albert Camus, « escritor engajado, cujas obras desenvolvem um conjunto de reflexões convergentes sobre a condição humana, ancoradas no engajamento político”. Sem Deus, o mundo é absurdo », (Dictionnaire de la Philosophie, Hatier, Paris). 2. INTERCÂMBIO DE MENSAGENS COM AFFONSO BARROS DE ALMEIDA (Primeira parte)Affonso: Comecei o meu estágio no Serviço de Daumézon em 1965. Lembro que fomos discípulos do Mestre Lucena, em cujo Serviço de Psiquiatria do Hospital Pedro II, nos anos 60, iniciamos no “métier”, na condição de estagiários.Você precisa, como autor do artigo, se identificar profissionalmente. Bom, eis algumas parcas observações após a primeira leitura do seu importante e excelente artigo. Fraternal abraço.Affonso.29/06/07 Affonso, Caríssimo amigo Eliezer, A tese de Lucena preparada, em parte, no Serviço de Daumézon, versou sobre “o campo da consciência após o choque insulínico”. Não sei se o título foi exatamente esse, mas o tema abordado, foi. O José Otávio não fez nenhuma estadia na França, mas ele participou de Congressos Internacionais na Europa, inclusive em Paris. Conta-se que falava bem francês e que conhecia muito bem os trabalhos de Henri Ey e de Georges Daumézon, além dos trabalhos dos psiquiatras franceses que antecederam e influenciaram os dois. Eu tive o privilégio de “preparar a sua cama” no Serviço de Georges Daumezon, que soube, por meu intermédio, da simpatia do Mestre Lucena por você e com quem cheguei a conversar algumas vezes sobre ele, quando o Mestre Daumezon me transmitiu possuir admiração e deferência por Lucena. Assim, na verdade, quem lhe abriu as portas do Henri Rousselle foi o professor José Lucena, eu fui, apenas, intermediário. Esse fato foi mais um, dentre outros, que desagradou Zé Lins, o qual, não sabendo nada de psiquiatria, dizia-se discípulo do Mestre Lucena. Na verdade, antes de se interessar pela psicanálise, José Lins foi gastrenterologista, tendo “migrado” do Serviço de Arnaldo Marques para a Clínica Psiquiátrica do Pedro II, apoiado por Galdino Loreto, onde atuou como “psicoterapeuta” do grupo coordenado por Galdino e que tinha como clientes estudantes de medicina e de outros cursos, dentre eles, eu, Carlos Nicéas, Zuleika Portela, Paulo Gustavo Viana Lira, Lygia Câmara, Fernando Rocha, Cristina Jucá, Ana Belo, etc.Você está me tornando nostálgico. Lembras que eu fui o único brasileiro da “confraria” a te receber em Orly? Lembra quem estava comigo e para onde tu fostes levado? Fraternal abraço, Affonso. 29/09/07 Oi Eliezer, Hoje no Recife existem, pelo menos, três “Grupos de Instituições e de Psicanalistas”: Os Freudianos, os Lacanianos e os Carusianos. O casal Lins de Almeida, quando chegou no Recife (1969/1970), apresentou-se como “detentor” do saber psicanalítico. Na verdade, o interesse, sobretudo do José Lins, era “mercadológico” e não doutrinário. Ele, o José Lins, apresentou-se na época, com o apoio dos cariocas, como “analista didata!!!. Você já se perguntou porquê o “Comitê Catholique Contre La Faim et pour le Développement” deu apoio a esse projeto? Eu já. mas ainda não tenho resposta! Como você sabe, voltei de Paris para Recife após o Zé Lins e não foi fácil me fazer reconhecer. Mesmo assim “briguei” pela criação do nosso ” núcleo de Psicanálise”. Ivanise Ribeiro hoje Presidente da “Sociedade”, nunca foi aceita pelo “grupo” do Zé Lins, embora tenha sido uma das suas pioneiras. Muitos dos membros dos três “Grupos” se “iniciaram” comigo, o que me deixa muito a vontade… … …! Aguardando a sua réplica, fraternal abraço do amigo Affonso. |
Oi Affonso,
Você tem razão ao falar de História oficial para designar os revisionistas que reescrevem os fatos passados, mesmo quando eles são baseados não somente em palavras proferidas por testemunhas auditivas e oculares, mas que recusam até os arquivos conservados, como os filmes que mostram a realidade dos acontecimentos. Assim, aqui na França, como em outros lugares, ‘’historiadores’’políticos de extrema-direita, saudosistas hitlerianos, chegam a negar até mesmo a existência dos Campos de concentração nazistas, por conseguinte o próprio genocídio dos judeus.
No que diz respeitro à história da Sociedade de Psicanálise de Recife, guardadas todas as proporções, percebemos, por razões diversas que deveriam ser esclarecidas, a mesma tendência negacionista : recusar, deformar, esquecer digamos ‘’pequenos detalhes’’, como a sua participação na criação do ‘’Núcleo de Psicanálise’’ ou quando não me informaram sobre o acordo passado com o Comité.
Em recente trabalho que li na internete sobre a ‘’História da Psicanálise Brasileira’’, os autores não somente privilegiam a corrente lacaniana, deixando apenas migalhas aos freudianos, mas dizem bobagens em certas ocasiões, mostrando-se tendenciosos em todas as circunstâncias. Por exemplo, escreveram que as primeiras traduções das Obras Completas de Freud em português (editora Delta), foram muito boas e causa de admiração para os analistas brasileiros.
Ora, Dona Elza Ribeiro Hawelka (psicanalista brasileira trabalhando em Paris), deu-me de presente dois volumes dessa edição, traduzidos por pessoas cuja língua materna não era o português.Ela escreveu com um lápis muitas observações e mostrou os frequentes erros gramaticais que aparecem em vários artigos dos dois volumes. Ela quis mostrar ainda que se trata de uma tradução do espanhol e não do original alemão. E citou exemplos para provar isso: ela consultou a edição espanhola e comparou com a portuguesa. Resultado, encontrou os mesmos erros, as mesmas lacunas nas duas traduções, exatamente nos mesmo lugares e passagens, provando assim que se tratava de uma tradução da tradução espanhola!!
Ainda sobre a criação do Núcleo de Recife: eu não sabia que Daniel Lagache tinha desempenhado o papel que você lembrou. Sei que Daniel Widlöcher e Serge Lebovici (respectivamente secretário e presidente da IPA na época) estiveram em Recife e acho que foram eles que reconheceram oficialmente a sociedade recifense de psicanálise. Questão: Lucia Lins não fez uma supervisão com Lagache ?
Outra coisa : fiquei decepcionado com Ivanise, a qual, em sua casa, disse estar interessada em fazer um trabalho sobre a história da psicanálise pernambucana e fingiu mostrar-se interessada quando eu lhe disse haver escrito um artigo à pedido de Georges Dumézon :‘’A penetração dos conceitos psicanalíticos na semiologia psiquiátrica no Brasil’’. Trocamos nossos endereços, escrevi duas vezes a Ivanise, que nunca me respondeu !!!
Eu também não entendo porque você nunca me respondeu sobre a possibilidade de conversarmos pelo MSN, o que faço com amigos e familiares pelo Brasil afora. É facílimo, prático e gratuito!!
Abraços e lembranças a Rosana.
Seu amigo Eliezer
3. QUANDO O PSICANALISTA FAZ UM PREÇO SEM RECIBO
Cláudio Duque e demais colegas
Inteiramente de acordo com C.D.: « Quando o psicanalista faz um preço sem recibo está convidando o analisando a um conluio para fraudar o fisco (…), sinaliza que ele também frauda (…) em conseqüência, perde na qualidade da relação [pois] o conluio interfere na análise».
Donde a questão que coloco: como entender que um analista, por definição possuidor de uma experiência psicanalítica pessoal, possa infringir a moral, a lei? E isto num momento de sua história em que alguns cedem à propensão de escrever em letras maiúsculas a palavra Lei, transformado-a numa sorte de transcendência?
Ora, como diz Jean Laplanche, a lei pode se referir não somente à pulsão, com o seu caráter destruidor e anárquico, mas também a certa ordenação, regulação da pulsão.
Desta forma, será que o psicanalista que infringe a moral não teria fracassado na ordenação de suas forças pulsionais? Ou então, não teria fracassado na introjeção da fonte transcendental da lei?
No
Assim, poderíamos dizer que um analista que frauda o fisco, tornando o analisando cúmplice de seu ato ilegal, nega a própria castração, adota uma posição paranoica consistindo em desafiar a lei, movido pelo fantasma inquietante de uma onipotência quase divina.
Puras especulações de um analista que trabalhou dezenas de anos com crianças e adultos num centro onde os tratamentos eram inteiramente pagos pela Segurança social francesa: os resultados obtidos eram tão bons como quando eu trabalhava no gabinete médico privado
Abraços
Eliezer de Hollanda
4. ESQUIZOFRENIA, DISTÚRBIOS BIPOLARES: UM GENE COMUM
Referência: Sophie Viguier-Vinson, Sciences Humaines, Janeiro 2018, N° 299.
Qual é a relação entre a doença bipolar, que se caracteriza por distúrbios do humor, e a esquizofrenia que se aparenta a uma forma de psicose conduzindo a uma perda de contacto com a realidade? Uma variante do gene SNAP25 presente no cromossomo 20, comum nos pacientes sofrendo de uma dessas doenças psíquicas. Esta é a recente descoberta das equipes do CEA-Neurospin, do Instituto Mondor de pesquisa biomédica (Inserm) e dos hospitais universitários Henri-Mondor AP-HP, graças ao cruzamento do enfoque genético, das imagens e da observação dos tecidos cerebrais. A consequência desta especificidade: a transformação radical do tratamento da informação entre as regiões cerebrais implicadas na gestão das emoções, uma conectividade funcional pré-frontal alterada, e uma amígdala mais volumosa. Esta descoberta deveria permitir uma melhor identificação das pessoas vulneráveis e igualmente de adaptar tratamentos preventivos e melhorar as respostas terapêuticas.