Sérgio Telles
psicanalista e escritor
Muitos consideram o cinema uma forma de “passar o tempo”, no sentido de esquecê-lo, escapar de sua incessante voracidade. Na verdade, não só o cinema, mas toda a indústria do entretenimento gira em torno desse pressuposto – criar novos passatempos que nos ajude a levar a vida, como se tivéssemos à nossa disposição todo o tempo do mundo e pudéssemos desperdiçá-lo descuidadamente, como se ele não fosse irreversível e finito, dando-se de forma única e singular para cada um, ora sendo largo e generoso, permitindo que a vida se estenda por muitas décadas, ora mesquinho e avaro, ceifando-a cedo demais. Uma das funções do entretenimento, do passatempo é justamente essa, afastar a percepção sempre angustiante que somos mortais e que a qualquer instante e de forma nunca sabida de antemão, nosso tempo se esgota.
A videoinstalação “The Clock”, de Christian Marclay, é o contrário do passatempo tal como descrito acima. É uma obra-prima que mostra o tempo como o eixo central de nossas vidas.
Trazida para São Paulo para a inauguração do Instituto Moreira Sales (setembro 2017), “The Clock” recebeu o Prêmio Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2011 e tem-se apresentado em várias cidades mundo afora. É uma colagem de incontáveis cenas de filmes e televisão nas quais aparece a hora do dia, que é sincronizada com o tempo real da exposição, de modo que a instalação, em si, se transforma num inusitado e surreal relógio, que proporciona ao expectador uma peculiar percepção do tempo, fazendo-o refletir sobre essa decisiva e implacável dimensão da nossa realidade. Vemos a sucessão de 1440 minutos ilustrados com diferentes cenas centradas num relógio que os demais personagens consultam compulsivamente, angustiadamente, à espera de algo que está por acontecer.
A estrutura da obra – colagem de 1440 cenas diferentes com um relógio marcando a hora – necessariamente impossibilita uma estrutura narrativa com começo, meio e fim. Há um desconhecimento das situações anteriores às que o expectador está vendo, ou seja, o passado, bem como o que ocorrerá em seguida à cena, ou seja, o futuro. O espectador fica presos a um eterno presente, num clima de expectativa e apreensão, num suspense em relação ao enigmático porvir.
A obra nos proporciona uma experiência que dificilmente temos na vida real, pois não é fácil habitar o puro presente, com sua áspera e evanescente novidade. Logo nos refugiamos no conhecido e confortável passado ou num futuro imaginado, ilusoriamente moldado de acordo com nosso desejo, o que faz com que fique oculta sua face desconhecida, portanto ameaçadora.
No espaço de um minuto, vemos uma quantidade imensa de imagens retratando fragmentos de filmes com pessoas, personagens, coisas, objetos. Por serem de diferentes épocas, tais imagens evocam tempos diversos, com seus usos e costumes, seus objetos, carros, a moda, as roupas, os penteados, os atores em diferentes idades.
Essa superposição vertiginosa de tempos, por sua vez, evoca no expectador experiências pessoais ligadas aquelas imagens, fazendo-o reencontrar seu próprio tempo passado pessoal.
Assim, ao mesmo tempo que “The Clock” aprisiona o expectador num tempo presente, paradoxalmente o empurra para o passado coletivo e pessoal, reavivando suas memórias.
Sabemos como o tempo existencial pode ser bem diferente do tempo do relógio. Às vezes o tempo não passa, temos a sensação do tempo parado, minutos que parecem horas, ocupadas pelo tédio, o aborrecimento. Um segundo pode parecer séculos. Ou o tempo passa rápido demais, uma hora se esvai em instantes; em retrospectiva, décadas se dissolvem como se nunca tivessem existido.
Essa questão também se impõe na apreciação de “The Clock”. A instalação acontece numa sala de projeção com sofás e os espectadores ficam ali o tempo que julgam necessário. É interessante como se tem a sensação de que o tempo passa de forma diferente, como se ele estivesse expandido ao máximo. Em poucos minutos, tem-se a impressão de que muito mais tempo já passou, dado a abundância de imagens mostradas.
“The Clock” é ainda uma evidência de como vivemos numa cultura rendida à imagem visual, tributária do cinema e da televisão.