O assunto controverso da filiação dos psicanalistas – que de uma certa forma suscitei ao tornar público aspectos do percurso de alguns colegas pernambucanos que fizeram análise pessoal e supervisões em Paris- deu lugar a debates acalorados entre colegas que participavam do fórum da Lista de psiquiatras de Psychiatry on line. Assim, o próprio termo empregado para designar o percurso de um psicanalista e os vínculos que ele tem ou teve com determinadas sociedades psicanalíticas, deu lugar a discussões etimológicas e semânticas diversas. Eu mesmo falei de genealogia, outros falaram de pedigree, etc.
Precisemos esses termos.
Genealogia, diz o dicionário francês LE ROBERT, é uma sequência de antepassados que estabelece uma filiação. Podemos assim estabelecer a genealogia de um indivíduo, de uma família, sua árvore genealógica, por exemplo. Contudo, o inconveniente deste termo é que ele é muito vasto, podendo evocar outros conceitos: ascendência, descendência, família, filiação, linhagem, raça. Assim, podemos falar de genealogia a propósito de um animal de raça.
Mas genealogia tem um segundo sentido: o da ciência que tem por objeto a pesquisa das filiações, por exemplopsicanalíticas, como as que o nosso historiador, Walmor Piccinini, está fazendo.
Quanto ao termo « pedigree », LE ROBERT nos diz que se trata de uma palavra inglesa derivada do francês antigo « pied de grue », pé de grua, ave pernalta. O dicionário precisa que pedigree se refere ao fato de que a pata da grua deixa uma marca de três traços… A definição de pedigree é « o estabelecimento do livro genealógico de um animal de pura raça ». Por conseguinte, este termo não convém quando falamos de genealogia humana.
Desta forma, decidi empregar o conceito de filiação, que comporta várias significações, segundo o dicionário LE ROBERT. Retenho apenas duas: « Laço de parentesco unindo a criança a seu pai ou a sua mãe » (filiação paternal e maternal); o segundo sentido é o de ligação, de junção, de vinculação, que encontramos no francês liaison e no inglês link. Falar de minha filiação com uma sociedade de psicanálise freudiana é falar de meus vínculos com essa sociedade. Lembro-me que Wladimir Granoff, psicanalista francês da APF, que desempenhou um papel relevante na história da psicanálise na França, escreveu um livro intitulado Filiations, onde ele examina essa questão do ponto de vista psicanalítico.
Senti então a necessidade de rememorar os trajetos científicos de vários colegas e amigos pernambucanos que se formaram em Paris, onde com eles convivi durante anos. Donde as informações que vou dar aos leitores, após muita hesitação e questionamentos pessoais, porém tomando a extrema precaução de não falar de nenhum aspecto da intimidade das pessoas podendo causar-lhes um prejuízo qualquer.
Tendo sobrepujado esses escrúpulos, pensei que tais informações poderiam até serem úteis futuros historiadores da psiquiatria e da psicanálise no Brasil. Mais ainda, convenci-me que não havia nenhum inconveniente que os leitores soubessem que eu fui analisado por uma tal, que meus supervisores foram tais e tais, etc. No Maximo, os leitores poderiam reagir com desinteresse ou mesmo indiferença. Eu pensei, igualmente, que os usuários da psiquiatria e da psicanálise deveriam saber, em nome do principio de transparência, a quem eles pediam ajuda. Enfim, ao citar os nomes dos analistas e supervisores dos colegas e os meus, faço isto porque todos eles, sem exceção, foram ou são psicanalistas de valor que marcaram a psicanálise francesa pelos seus escritos e pelas atividades nas associações às quais pertenciam.
Foi na primeira metade da década de 1960 que vários psicólogos e psiquiatrias pernambucanos decidiram de estudar, fazer análise e supervisões em Paris. Este movimento cresceu muito a partir de 1964, ano do Golpe militar no Brasil.
Tudo começou com José Lins de Almeida e sua esposa, a psicóloga Lucia Almeida, e com um padre muito aberto à psicanálise e que dava assistência espiritual aos pacientes internados no serviço do Professor José Lucena, catedrático de Psiquiatria da Faculdade de medicina da Universidade Federal de Pernambuco. O padre- esquecio seu nome, mas vou obtê-lo, sem dúvida- tinha feito uma estadia em Paris e conhecia os responsáveis do Comité Catholique Contre la Faim et Pour le Développement, uma organização católica cuja finalidade era de ajudar, por meio de projetos diversos, os países em desenvolvimento. Entre as diversas modalidades de ajuda, o Comité financiava bolsas de estudos, segundo critérios que não se pode examinar agora. Foi assim que José Lins e Lucia obtiveram bolsas do Comité e vieram estudar em Paris, dois anos depois foi a vez de Carlos Augusto Nicéas, mais tarde de Ivone Lins (foi para a Bélgica, em Louvain, depois para Paris), Affonso Barros de Almeida, de Edilnete Sampaio, do autor deste trabalho, de Paulo de Queiroz Siqueira, de Mário Lyra Romangueira, de Fernando de Barros Coutinho, de Jurandyr Freire Costa, de Abílio Guerra. Muitos deles, talvez quase todos, vieram com bolsas do Comité Catholique. A minha foi de um ano, depois encontrei empregos e por aqui fiquei.
Assim, José Lins de Almeida fez supervisão (e análise?) com Jean Clavreuil, conceituado psicanalista que deixou o movimento lacaniano, após a morte de seu fundador, por questões de desacordo com os processos de formação então vigentes naquela escola. José Lins e sua esposa, Lucia, desempenharam um papel saliente, aconselhando os recém-chegados, ajudando-os a estabelecer contatos, hospedando alguns no apartamento que alugaram em Paris, reunindo a colônia pernambucana para festinhas, onde não faltavam músicas e comidas brasileiras.
Lucia Lins foi analisada por Dona Elza Ribeiro Hawelka, da APF (Associação Psicanalítica da França), afiliada à IPA. Penso que ela teve como supervisor Didier Anzieu, filósofo e psicólogo que se tornou um dos grandes analistas da APF. O casal retornou para Recife em 1968, onde começou a organizar o núcleo do que viria a ser a Escola Psicanalítica de Recife.
Lucia faleceu na Salpetrière, dois ou três anos após haver voltado para Recife. José Lins, que conhecia muito bem Daniel Widlöcher, professor de Psiquiatria na Salpetrière, pediu-lhe ajuda, donde sua rápida hospitalização no serviço de neurologia desse hospital. Visitei- a dois ou dias antes da operação, mas todos os seus colegas conheciam a gravíssima realidade do quadro clinico, que lhe deixava poucas esperanças. Fomos quase todos ao seu enterro num cemitério da cidade. Foi o drama principal sofrido pela colônia pernambucana em Paris.
Carlos Augusto Nicéas: foi meu colega de turma e meu padrinho de casamento, vive no Rio, onde exerce a psicanálise. Foi analisado por D. Elza Ribeiro Hawelka (de quem tracei uma história na coluna France-Psy da Psychiatry online) e por Daniel Lagache, grande psicanalista francês, ex-professor na Sorbonne, amigo e depois adversário de Lacan.
Affonso Barros de Almeida, velho amigo, colega de turma, analisado por D. Elza Ribeiro Hawelka. Ele foi residente estrangeiro no Hospital Henri Rousselle, anexo de Saint Anne. Seguimos juntos os seminários de Henri Ey, as apresentações de casos de Lacan, etc. Affonso voltou para Recife em 1970. Ele muito me ajudou quando de minha chegada em Paris.
Quanto a mim, cheguei em Paris em 1967, forçado pela Ditadura. Durante vários anos, fiz análise e trabalhei no hospital psiquiátrico Henri Rousselle, dirigido por Georges Daumézon, um dos fundadores da política de Setor psiquiátrico da França. Fiquei cerca de seis anos nesse serviço e leste longo engajamento me permitiu obter o reconhecimento de meu diploma médico e a minha inscrição no Conselho da Ordem dos Médicos da França. Pude assim trabalhar com os mesmos direitos e deveres de qualquer médico francês, beneficiando das mesmas prerrogativas e salários. Passei dez anos com consultório em Orléans e trabalhei trinta anos numa associação: o Centro-Médico-Psicopedagógico de Orléans, como psiquiatra responsável de uma equipe pluridisciplinar (psiquiatra, psicólogo, educador, assistente social, ortofonista
Minha filiação psicanalítica: análises com Dona Elza Ribeiro Hawelka e Pierre Fédida, ambos da APF. Supervisões de análises de adultos: Daniel Widlöcher e Pierre Fédida; análises de criança: Pierre Bourdier, da SociétéPsychanalytique de France.
Ivone Lins veio primeiro para Louvain, na Bélgica, onde seguiu cursos na Universidade e começou uma análise. Depois, em Paris, continuou sua análise e frequentou seminários e cursos, trabalhando igualmente em centros para crianças. Voltou para Recife anos mais tarde, em seguida foi morar no Rio onde casou com Rogério Luz. Os dois voltaram à Paris em meados de 1980, ficaram uns três anos e trabalharam muito sobre a obra de Winnicott. Ivone fez uma memória com Didier Anzieu durante esse período, onde analisou minuciosamente a relação mãe-criança. De volta para o Rio, instalaram-se como analistas e animaram um grupo de estudos sobre D.D. Winnicott.