A Coluna de História da Psiquiatria publica o discurso de posse do Professor Irismar Reis de Oliveira na Academia Baiana de Medicina. Extraímos dele os aspectos relativos à homenagem ao patrono da Cadeira 49 daquela academia, o professor Álvaro Rubim de Pinho. Nossos parabéns ao novo acadêmico.
Há 17 anos, tive o privilégio de suceder o Professor Álvaro Rubim de Pinho, mediante concurso, ao assumir a cadeira de Professor Titular de Psiquiatria do então Departamento de Neuropsiquiatria, hoje Departamento de Neurociências e Saúde Mental, da Universidade Federal da Bahia. Agora, mais uma vez, a boa sorte me toca, ao ter a honra de ocupar a cadeira desta egrégia Academia que tem como patrono este grande e saudoso homem. Aqui me encontro para falar sobre o Professor Álvaro Rubim de Pinho, e não poderia me furtar de contextualizar, relatando dois momentos muito especiais que envolveram minha convivência com ele, para mim afetivamente muito significantes.
O primeiro momento foi quando, no início de 1983, por um curto período de 4 meses, estagiei na enfermaria 3B do HUPES, à época por ele chefiada. Eu havia tomado uma decisão que mudaria o rumo de minha vida, ao trocar a cardiologia (após dois anos de residência no IBIT-Hospital do Tórax e mais 2 anos de prática) pela psiquiatria, na qual eu dava os primeiros e incertos passos. Ter escutado o Professor Rubim, como era carinhosamente chamado, com seu discurso erudito, em uma voz pausada, tranquila, clara e firme, naqueles 4 meses de convivência, deu-me a certeza de que a psiquiatria seria meu novo caminho a ser trilhado. Quando lhe anunciei o projeto de ir à França estudar psiquiatria com o Professor Pierre Pichot, à época presidente da Associação Mundial de Psiquiatria, ele não hesitou em receber-me carinhosamente em seu apartamento no Largo da Vitória, e entregar-me uma carta elogiosa, redigida em francês, que sem dúvida abriu-me as portas para uma nova vida em Paris, onde permaneci por 5 anos, e que mudaria permanentemente o rumo de minha trajetória em termos pessoais e profissionais.
O segundo momento acima mencionado que envolveu minha convivência com o Professor Rubim, para mim também muito significativo, ocorreu após meu retorno da França. No início dos anos 90, o psiquiatra carioca Mallat-Tostes publicara um trabalho sugerindo que a combinação de dois medicamentos, a carbamazepina e a buspirona, reduziria o impulso para o uso de álcool em pessoas dependentes. A ideia era interessante e precisaria ser testada. Decidi fazer as primeiras observações em um estudo piloto que nos conduziria à realização do ensaio clínico que poderia trazer uma resposta mais consistente. Com esse estudo, obtive resultados muito promissores que me levaram a uma apresentação no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Minha surpresa foi que, no dia anterior à apresentação desse trabalho, fui convidado para um almoço por um dirigente de associação representativa nacional no campo de álcool e drogas, no qual fui ostensivamente solicitado a não apresentá-lo. Diante de minha natural reação de perplexidade e afirmação de que o trabalho seria, sim, apresentado como previsto, fui ameaçado de ter uma equipe de especialistas da área de álcool e drogas, com conhecimentos de estatística e metodologia, cujo objetivo era questionar publicamente os dados. Na primeira metade dos anos 90, era um “pecado”, naquele estado do Sul do Brasil, falar-se em tratamento farmacológico, ou seja, não -psicanalítico ou psicodinâmico, da dependência ao álcool. Desnecessário dizer o quão ansioso fiquei. O clima, como bem expressou um conhecido e competente especialista em álcool e drogas da época, foi posto claramente deste modo: “Eu não gostaria de estar na tua pele!” Por sorte, encontrei o Professor Rubim de Pinho e relatei o ocorrido. Ele me disse tranquilamente que lá estaria para me prestar seu apoio, fato que reduziu grandemente minha ansiedade. Ainda por outro golpe de boa sorte, naquela manhã eu recebera a carta de aceitação de nosso artigo referente a esses dados no Journal of Clinical Psychiatry, um dos jornais de psiquiatria mais importantes internacionalmente. O que mais me lembro daquele momento muito especial foi a presença calma e o olhar tranquilo do mestre, em sinal de claro apoio. No início de minha apresentação, o anúncio para a plateia de que aquele trabalho já havia sido aceito para publicação naquele conceituado jornal americano começou desarmando os críticos hostis. Os comentários tranquilos e eruditos do Professor Rubim de Pinho ao final de minha apresentação concluíram o desarme daquela que parecera para mim uma espécie de bomba-relógio prestes a explodir apenas algumas horas antes. Ao final, a batalha fora facilmente vencida, com os questionamentos confortavelmente respondidos. Desnecessário dizer o quanto esse evento aqui relatado me uniu ainda mais em gratidão e afeto ao querido Professor Rubim. Não foi surpresa portanto que no memorial que redigi anos mais tarde, quando de minha candidatura a sucedê-lo como professor titular, a primeira página informava que o memorial era a ele dedicado. O parágrafo que concluía o mesmo memorial dizia: “Atingir as metas aqui estabelecidas seria a melhor forma de preencher o vácuo deixado pelo Professor Álvaro Rubim de Pinho, prestando-lhe a devida homenagem.”
Assim, nesta nova homenagem que agora com muita honra lhe presto, cabe-me descrever sua trajetória de vida. Isto será feito em parte por ele próprio, em entrevista gravada cinco anos antes de seu falecimento.
VÍDEO 1: “Meu pai era médico baiano, nascido e formado na Bahia, e no começo do século foi para Manaus. Sou amazonense, o caçula dentre quatro irmãos, e o único que desejou ser médico. Ante essa iniciativa, o caminho estava traçado: deveria estudar na Bahia, onde tinha parentes. Aos 16 anos, viajei para Salvador, onde fiz o então curso complementar pré-médico. Eu nasci numa data muito fácil de gravar, 22/2/22, e cheguei a Salvador no dia em que completei 16 anos, isto é, 22/2/38. São umas coincidências. Exame vestibular em 1940 e formei-me em medicina na então Faculdade de Medicina da Bahia, em 1945. Minha vida de estudante foi muito marcada pela atividade associativa, poderia dizer, política. Foi a época contemporânea da guerra, dos anos 39 a 45. Fui líder estudantil, dirigente de associações diversas, e participante do movimento estudantil em nível nacional, do qual resultaria todo o poder de pressão popular, toda a coordenação do movimento de massa que conduziu o governo brasileiro, primeiro à declaração da guerra, depois à convocação de eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Minha vida de estudante então teve esta nota constante, pelo menos até a quarta série de medicina, inclusive. Terminada a quarta série, notei que sabia muito pouco de medicina, eu que tinha sido um bom estudante em Manaus e até fazer o exame vestibular. Eu tinha estudado em escola pública em Manaus e, na Bahia, sempre tinha sido, até o vestibular, o bom aluno, no sentido modelar. A atividade associativa me desviou bastante disso. Quando eu chegava à quinta série médica, decidi mudar de rumo. Afastei-me das associações estudantis, pelo menos da atividade mais intensa, da militância dos movimentos associativos, e, nessa oportunidade, passei para os hospitais.
Mas retornando a Salvador [vindo de São Paulo], fiquei trabalhando ainda para me sustentar, no Sanatório Bahia, de propriedade de Luiz Cerqueira, e que na época contava com um outro colaborador vindo de fora, um psiquiatra brilhante: Nelson Pires. A convivência com Nelson Pires e Luiz Cerqueira então correspondeu ao começo da minha formação psiquiátrica, embora ela tivesse então como meta ser neurologista. Quatro anos depois de formado, eu ainda prestei um concurso com competidor, e em que fui vitorioso, para neurologista do então Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários. Não tive outra formação de psiquiatra esse tempo todo, salvo a convivência com Nelson Pires, enquanto ele se preparava para o concurso de cátedra, de que resultou ser empossado Professor Catedrático na Faculdade da Bahia. Em 1954, portanto, cerca de 8 anos depois da minha formatura, ele me convidou para ser assistente de psiquiatria. Os lugares de assistente eram, pela legislação da época, de plena confiança dos professores. Fui assim direto, com a formação que eu tinha, mais de neurologista que de psiquiatra, para a psiquiatria, e já com uma condição, que era a de participar do ensino.
Em 1955, prestei concurso para livre-docente de psiquiatria. A tese que escrevi então foi sobre “O diagnóstico da psicose maníaco-depressiva: ensaio e sistematização.” É muito curioso para mim observar hoje que alguns dos conceitos, ou pelo menos a sistemática que eu não diria que adotei, mas que ressaltava, saia de meu material de então, permitiria uma plena adaptação à atual apresentação das psicoses afetivas, visto que aquilo que depois se falaria como transtornos bipolares, naquele tempo, sem esse nome, eu separei bastante nitidamente dos casos de exclusiva mania e dos casos de exclusiva depressão. E estudei também, em capítulo próprio, os problemas do diagnóstico diferencial, inclusive com aquilo de que nós falaríamos como transtornos delirantes. Uma outra referência nessa tese está incluída sobre os aspectos culturais que ressaltavam da sintomatologia de alguns pacientes. Essa foi a minha experiência da época na assistência de psiquiatria até 1959.”
Senhores e senhoras, vejamos então, resumidamente, as principais conquistas de nosso homenageado e os anos em que ocorreram:
Em 1945, o Professor Rubim forma-se em Medicina.
Entre 1954 e 1956, torna-se Professor Adjunto de Clínica Psiquiátrica, período no qual obtém também sua Livre Docência.
Em 1966, conquista o título de Professor Catedrático.
Em 1968, é eleito Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Em 1987, é escolhido Presidente desta egrégia Academia, na qual ocupará a cadeira de número 17; nesse mesmo ano se aposenta da Universidade Federal da Bahia, como Professor Titular.
Em 1993, um ano antes de seu precoce falecimento, o Professor Rubim de Pinho é homenageado com o merecido título de Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Bahia.
Convido-os agora, senhores e senhoras, a voltar um pouco no tempo e ver como ele próprio, elegantemente, descreve seu concurso para a cátedra, ocorrida em 1966.
VÍDEO 2: “Meu concurso teve aspectos um tanto sensacionais. De minha atividade política, nos anos 40, de quando estudante, depois da atividade associativa de médico, resultara uma fama de comunista, de esquerdista militante. Em verdade, eu tinha sido membro do Partido Comunista Brasileiro, quando estudante. Não mais depois. Mas nos anos 60, eu tive a oportunidade de prestar concurso sob a discriminação e o peso que decorriam desta condição. Eu vinha de dois anos difíceis. Foi um tanto imprevistamente que consegui ser admitido como candidato ao concurso, graças a um reitor de grande superioridade, no gesto do Reitor Miguel Calmon, que enfrentou as determinações militares que eram no sentido de que não me fosse permitido prestar concurso. Embora tendo competidor, em 1965, eu prestei meu concurso e ganhei. Venci o concurso e, apesar dos óbices que houve no regime militar, fui nomeado. Talvez, as coisas se tenham suavizado, as dificuldades tenham diminuído, por causa de uma sorte. Foi um momento histórico. O relatório do concurso chegou a ser enviado para Brasília, mas nesse meio tempo, depois do meu concurso e antes da posse, entravam em vigência a Lei do Estatuto do Magistério pela qual a nomeação deixava de ser feita pelo presidente da república e passava a ser de autonomia do reitor da universidade. Aquele mesmo reitor que eu citei me nomeou sem dificuldades maiores.
Minha tese para o concurso de cátedra é “As funções cognitivas nos epilépticos.” Vai nisso a lembrança do neurologista. Essa minha tese é uma tese um tanto fria, muito mais de números, uma correlação entre os resultados da escala Wechsler-Bellevue, com exame clínico, história pessoal e eletroencefalograma. Mas, na época, teve um valor que eu julgo apreciável.”
Senhores e senhoras, minhas confreiras e meus confrades, segundo informa Walmor Piccinini, psiquiatra e historiador da psiquiatria brasileira, Rubim foi mentor e formador de sucessivas gerações de psiquiatras baianos; como homem político foi ativo participante na liderança da política médica em nível regional e nacional; como pesquisador, seguiu a trilha aberta por Nina Rodrigues, ao defender que os psiquiatras se interessassem pelas crenças, crendices e o imaginário popular. Seu trabalho envolvendo psiquiatria transcultural é reconhecido no Brasil e internacionalmente. Rubim se interessou por manifestações características do Norte e Nordeste, mais especificamente da Bahia, envolvendo conceitos como caruara – antes estudada por Nina Rodrigues – e outros como quebranto, olhado, banzo e calundu.
O Professor Álvaro Rubim de Pinho é uma unanimidade e encontra-se no mesmo patamar de outros grandes mestres da psiquiatria brasileira, aqueles de quem recordamos e nos quais nos inspiramos. Isto porque o que fez, o fez com profundidade e competência. Suas áreas de atuação englobaram psiquiatria clínica, psiquiatria forense, neuropsiquiatria e história da psiquiatria. Por outro lado, sua profunda imersão e produção na psiquiatria transcultural foi o que mais o destacou e o diferenciou, em função de sua grande originalidade. Como assinala o Professor Dalgalarrondo, titular de psicopatologia da Unicamp: “Uma obra densa, original, consistente, de um mestre que foi grande porque estudou com paixão e arte o sofrimento mental de seu povo, nas sutilezas e riquezas culturais que muitos insistem em não enxergar.”
O Professor Álvaro Rubim de Pinho, um intelectual que gozava da amizade do escritor Jorge Amado, foi sem dúvida um homem à frente de seu tempo. Observem esta constatação escutando a mensagem que ele deixa para as próximas gerações de psiquiatras brasileiros.
VÍDEO 3: “Não sei que mensagem útil eu poderia propor. Posso entretanto pensar alto aqui, dizendo que todos nós, dos que já viveram mais e dos que estão começando, temos que nos adaptar, cada um a sua época, e saber também, ter a noção de que é sempre limitado, é sempre relativo o conhecimento que a gente tem. Eu vivi a era do eletrochoque e da malário-terapia como sendo grandes momentos. Eu vivi a chegada dos neurolépticos. Eu vivi a chegada dos antidepressivos. Eu vi o declínio de determinados tratamentos, inclusive de determinados medicamentos. Vi a ascensão da psicanálise e a estabilização ou adaptação da psicanálise a novos momentos. Eu acho que a minha mensagem, ela deve ser orientar no sentido de reconhecer sempre como válido o esforço no sentido de uma atitude crítica. É diferente o que o conhecimento médico e psiquiátrico nos apresenta de definitivo e nós não podemos nunca avaliar até quando irá aquela verdade e aquilo que já cabe pensar que é criticável desde o começo. Mas se nós pudermos, em qualquer momento, estar realmente adaptados àquele momento histórico, e se nós pudermos, doutra parte, prestar serviços aos nossos clientes, aos nossos doentes, nós estaremos bem. Eu acho que esta é a grande mensagem. Nós precisamos evitar realmente que se consuma aquilo que já se tem falado: os médicos antigos tinham pouco com o que curar e, às vezes, curavam mais. Não tenhamos dúvida de que hoje nós temos muito com o que curar mas, às vezes, curamos menos. Isto não exclui o reconhecimento de que nós, exatamente, progredimos muito, mas os novos progressos poderão limitar muito a veracidade, o cunho de aquisição definitiva daquilo que está hoje conosco. Fundamentalmente, para o médico, para o psiquiatra, não se afastar do conhecimento do novo e não esquecer, nem omitir na sua elaboração das decisões o conhecimento antigo.”
Meus confrades, minhas confreiras, senhores e senhoras. Neste momento solene e de profunda emoção, quem me dera poder merecer a honra de estar à altura desse homem a quem agora homenageio! Consola-me saber que, como o professor titular que o sucedeu, fiz o melhor que pude para continuar suas realizações. Agora, como membro titular deste egrégio sodalício, quando ocupo a cadeira que tem seu nome, resta-me ainda, humildemente, mantê-lo como inspiradora lembrança.
Muito ainda há a ser feito.