Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Março de 1999 - Vol.4 - Nş 3 "O que é científico?" (III) Quero seduzir você a jogar um
jogo de palavras chamado filosofia. Você não se interessa
por filosofia, nunca estudou filosofia, nada sabe sobre os filósofos.
Filosofia, coisa chata e complicada. Compreendo. Mas as suas alegações
simplesmente significam que você não tem condições
para ser um professor de filosofia. Professores de filosofia têm
de dominar uma tradição. Mas note: o homem que inventou o alfabeto
era analfabeto. O primeiro filósofo começou a filosofar
não tinha atrás de si uma bibliografia filosófica.
Jorge Luis Borges, quando seus alunos lhe pediam uma bibliografia,
respondia: " Não é preciso bibliografia. Afinal
Shakespeare desconhecia completamente a bibliografia shakespeareana."
Excesso de informações perturba o pensamento. "Quem
acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare" : assim dia o Manoel de Barros. ( É
poeta-criança. Criança brinca com brinquedos; poeta
brinca com palavras. Essa afirmação do poeta não
é científica. Não foi produzida por um método.
Ela é mágica. Quebra feitiços. Faz voar idéias
plantadas.) Frequentemente os professores de filosofia pensam tanto
o pensamento de outros que acabam por não ter pensamentos
próprios. Comecemos, então, por compreender
que o filosofar não é conhecimento de uma tradição
de pensamento. O filosofar é um jeito de fazer dançar
as idéias. Mudo minha pergunta inicial: " Vamos dançar?" Muitas são as danças:
minueto, marcha, lambada, bolero, samba, tango... As danças,
todas elas, se parecem com os jogos. Futebol, tênis, frescobol,
volibol, xadrez, dama, buraco,mau-mau, poquer, truco: todos são
jogos. Jogos têm têm regras fixas e precisas. No jogo
existe uma "dança" entre a liberdade e a regra
fixa. A beleza do futebol está precisamente nisso: a brincadeira
da liberdade do jogador dentro de um quadro de regras fixas. Um jogo, como a dança, depende
de duas coisas precisamente definidas. As "entidades"
do xadrez são as peças: peão, dama, bispo...
As regras são os movimentos possíveis das peças.
As entidades da valsa são um homem, uma mulher, um ritmo.
Os movimentos do homem e da mulher são definidos. Eles devem
formar um par: dançar quase abraçados. É o
par que deve se mover segundo o ritmo da valsa. As marchas não
exigem pares. Cada um pode dançar sozinho, como nos bailes
de carnaval. Mas o corpo deve se mover num ritmo binário.
Já a dança flamenca é outra coisa. Pode ser
dançada por uma única dançarina ou por um par
- sendo que homem e mulher não ficam abraçados e executam
evoluções por conta própria . Sem que disso nos apercebamos, ao
falar estamos fazendo jogos de palavras. Numa outra crônica,
muito antiga, descrevi dois jogos constantemente jogados por casais:
o tênis e o frescobol. O objetivo do jogo de palavras "tênis"
é tirar o outro da jogada. Fim rápido. Ejaculação
precoce. O objetivo do jogo de palavras "frescobol" é
manter o outro na jogada. Fim adiado. Vai e vem prolongado. O bom
não é a chegada; é a travessia. Há uma
infinidade de jogos, todos eles com regras precisas e fixas. A piada é um jogo cujo objetivo
é produzir o riso. Sua estrutura é fixa. Consta de
um discurso que cria uma expectava, um suspense, que é repentinamente
interrompido por uma rasteira seguida de um fim inesperado. Nesse
momento acontece o riso. A lamentação é um
outro jogo. Consta de um relato de sofrimentos por que a pessoa
passou, cujo objetivo é provocar sentimentos de admiração
em quem ouve o relato. Mas isso nunca acontece porque a outra pessoa,
ao término do relato da primeira, diz sempre: " Mas
isso não é nada!" - começando a seguir
o relato dos seus próprios sofrimentos. Contou-me uma paciente
que, em certa região do Brasil, esse é o jogo predileto
das mulheres pobres, cujo objetivo é ter a glória
de ser aquela que "sofreu mais." Há uma infinidade de jogos
de palavras: a poesia, a sedução, as brigas de casais,
os discursos dos políticos, a reza, a psicanálise,
os comerciais, a aula ( Sim! a aula! Os professores deveriam parar
para pensar no jogo que estão obrigando seus alunos a jogar!
Uma das características desse jogo é que o aluno é
obrigado a aceitar as "entidades" com que devem jogar
( disciplinas e currículos) e as "regras" do jogo
que a escola impõe. Com alguma frequência o professor
não quer jogar o jogo que a direção da escola
e as burocracias governamentais lhe impõem: mas é
obrigado a jogar, sob pena de perder o emprego. Nessa situação
só lhe resta um recurso: a burla. A burla é uma importante
possibilidade presente numa grande quantidade de jogos. Futebol,
por exemplo, está cheio de burlas. Já no volei as
burlas são praticamente impossíveis. Não há
formas de burlar no xadrez mas a graça do truco é,
precisamente, a burla. As aulas de português são um
jogo cujo objetivo é ensinar os alunos a jogar a jogo da
linguagem de acordo com as regras oficiais: usar as palavras certas
e a gramática certa. Nas aulas de português ensina-se
o jogo da linguagem sem burlas, como se ele fosse idêntico
ao jogo do xadrez. Mas a linguagem se parece mais com o truco. A
poesia e a literatura são a arte de burlar as regras da linguagem.
Para que? É só perguntar a um filósofo Zen
que ele vai dar a resposta... Filosofia é um jogo de linguagem,
um jeito de usar as palavras. Na filosofia a gente usa as palavras
para entender as palavras. Wittgenstein definiu esse jogo de palavras
chamado filosofia como "uma batalha contra o feitiço
da nossa inteligência por meio da linguagem". Frequentemente
as pessoas ficam emburrecidas em decorrência das palavras
que ficam grudadas na sua inteligência. Tenho notado, por
exemplo, que a palavra "Deus" ( vejam; eu disse "a
palavra" - não disse "Deus". Deus está
além das palavras.) é uma das palavras que mais se
agarram à inteligência, fazendo com que as pessoas
parem de pensar. Quem fica enfeitiçado, é
bem sabido, entra em transe, começa a dançar e não
para. Dizem que a madrastra da Branca de Neve dançou até
morrer. É fácil identificar a pessoa cuja inteligência
está enfeitiçada por uma palavra: ela só sabe
dançar uma dança só. E quem só sabe
jogar um jogo de linguagem fica burro. E chato. Porque a inteligência
acontece precisamente nos saltos entre danças diferentes. É preciso notar que o que enfeitiça
é sempre uma coisa "fascinante". "Fascinio"
- no Latim fascitatio - que dizer "encantamento mágico",
" feitiço". O símbolo mágico do objeto
fascinante: a maçã - coisa linda, deliciosa, desejável
- lugar do conhecimento. A ciência é coisa linda,
deliciosa, desejavel, lugar do conhecimento, eu não poderia
viver sem ela. Mas, como a maçã, ela tem um poder
enfeitiçante. À medida em que dá conhecimento
de um lado, ela retira conhecimento do outro. Volto ao Manoel de
Barros: "A ciência pode classificar e nomear os órgãos
de um sabiá mas não pode medir os seus encantos." Daí o poder enfeitiçante-
paralizante da fórmula "Isso não é científico"
. Meu amigo, aquele que invadiu meu escritório, viu paralisado
o canto do seu sabiá, quando essa fórmula lhe foi
pronunciada pelos feiticeiros da ciência. Veio em busca de
socorro. Queria as palavras para quebrar o feitiço. É o que comecei a fazer e irei fazendo. Porque amo muito a ciência. Quero que os pescadores coninuem a pescar e a preparar os peixes deliciosos que eles pescam no rio da realidade. Mas quero que os pescadores sejam capazes também de ouvir o canto do sabiá que nenhuma rede pode pegar. Por vezes o canto do sabiá é mais impostante que um peixe que se pesca. Ou, para quem não entende: por vezes um poema, uma sonata, uma quadro, são mais importantes para a vida e a alegria que artefatos de saber e tecnologia. Precisamos dos dois: do conhecimento e da beleza. Mas beleza não é científica. |
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