Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Fevereiro de 1999 - Vol.4 - Nš 2 "O que é científico?"(II) "Não há dúvidas de que a memória é o estômago da mente. Da mesma forma como o alimento é trazido à boca pela ruminação, assim as coisas são trazidas da memória pela lembrança." Santo Agostinho, autor dessa afirmação (capítulo 14 do livro 10 das Confissões ) percebeu com clareza as relações de analogia existentes entre o ato de pensar e o ato de comer. Nietzsche se deu conta da mesma analogia e afirmou que "a mente é um estômago". Quem entende como funciona o estômago entende como funciona a cabeça. Analogia é um dos mais importantes artifícios do pensamento. Octávio Paz, no seu livro Los hijos del limo, afirma que " a analogia torna o mundo habitável" . Ela " é o reino da palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimi-las, reconcilia as diferenças e oposições." A analogia nos permite caminhar do conhecido para o desconhecido. É assim: eu conheço A mas nada sei sobre B.Sei, entretanto, que B é análogo a A. Assim, posso concluir, logicamente, que B deve é parecido com A. A analogia entre o estômago e a mente nos permite
saltar daquilo que sabemos sobre o estômago para o que não
sabemos acerca da mente. Em grande medida é graças
às analogias que o conhecimento avança e que o ensino
acontece. Quando a ciência usa as palavras "onda"
e "partícula" ela está se valendo de analogias
tiradas do mundo visível para dizer o universo naquilo que
ele tem de invisível. Um bom professor tem de ser um mestre
de analogias. Uma boa analogia é um "flash" de
luz. O estômago é órgão processador
de alimentos. Os alimentos são objetos exteriores, estranhos
ao corpo. Ele os transforma em objetos interiores, semelhantes ao
corpo. É isso que torna possível a assimilação.
"Assimilar" significa, precisamente, tornar semelhante
( de assimilare, "ad" + "similis"). A mente é um processador de informações.
Informações são objetos exteriores, estranhos
à mente. A mente os transforma em objetos interiores, isto
é, pensáveis. Pelo pensamento as informações
são assimiladas, tornam-se da mesma substância da mente.
O pensamento estranho se torna pensamento compreendido. Entre todos os estômagos, os humanos são os
mais extraordinários, dada a sua versalitilidade. Eles têm
uma capacidade inigualável para digerir os mais diferentes
tipos de comida: leite, café, pão, manteiga, nabo,
cenoura, giló, mandioca, alface, repolho, ovo, trigo, milho,
banana, côco, pequi, azeite, carne, pimenta, vinho, whisky,
coca-cola, etc. Por vezes essa versatilidade do estômago é
submetida a restrições. Alguns, por doença,
deixam de comer torresmo e comidas gordurosas. Outros, por pobreza,
acostumam-se a uma dieta de batatas, como na famosa tela de van
Gogh. Outros, ainda, por religião, adotam um cardápio
vegetariano. Há estômagos que só conseguem digerir
um tipo de comida. É o caso dos tigres. Seus estômagos
só digerem carne. Eles só reconhecem carne como alimento.
Se, num zoológico, o tratador dos tigres, vegetariano convicto,
tentar converter os tigres às suas convicções
alimentares, submetendo-os a uma dieta de nabos e cenouras, é
certo que os tigres morrerão. Diante dos legumes os tigres
dirão: " Isso não é comida!" Os estômagos das vacas só digerem capim, com
resultados magníficos para os seres humanos. É difícil
pensar a vida humana sem a presença dos produtos que resultam
dos processamentos digestivos dos estômagos das vacas sobre
o capim. Sem as vacas não teríamos leite, café
com leite, mingau, queijos (quantos!), filé à parmegiana,
morango com leite condensado, sorvetes de variados tipos, cremes,
pudins, sabonetes. Os estômagos das vacas, com sua modesta
dieta de capim, são dignos dos maiores elogios. A mente é um estômago. Há muitos tipos
de mente-estômago. Alguns se parecem com os estômagos
humanos e processam os mais variados tipos de informações.
Leonardo da Vinci é um exemplo extraordinário desse
estômago omnívoro, capaz de digerir poesia, música,
arquitetura, urbanismo, pintura, engenharia, ciência, criptografia,
filosofia. Outros estômagos se especializaram e só
são capazes de digerir um tipo de alimento. O que vou dizer agora, digo-o com o maior respeito, sem
nenhuma intenção irônica. Estou apenas me valendo
de uma analogia: é assim que o meu pensamento funciona. As
possíveis queixas, que sejam feitas a Deus Todo Poderoso,
pois foi ele, ou força análoga, que me deu o processador
de pensamentos que tenho. A ciência é um dos nossos
estômagos possíveis. Não é o nosso estômago
original. É um estômago produzido historicamente, por
meio de uma disciplina alimentar única. E eu sugiro que o
estômago da ciência é análogo ao estômago
das vacas. Os estômagos das vacas só reconhecem capim
como alimento. Se eu oferecer a uma vaca um bife suculento, ela
me olhará indiferente. Seu olhar bovino me estará
dizendo "Isso não é comida". Para o estômago
das vacas comida é só capim. A ciência, à semelhança das vacas,
tem um estômago especializado que só é capaz
de digerir um tipo de comida. Se eu oferecer à ciência
uma comida não apropriada ela a recusará e dirá:
"Não é comida.". Ou, na linguagem que lhe
é prórpria: "Isso não é científico."
Que é a mesma coisa. Quando se diz : " Isso não
é científico" está se dizendo que aquela
comida não pode ser digerida pelo estômago da ciência.
Quando a vaca, diante do suculento bife, declara de forma
definitiva que aquilo não é comida, ela está
em êrro. Falta, à sua afirmação, senso
crítico. Sua resposta, para ser verdadeira, deveria ser:
"Isso não é comida para o meu estômago."
Sim, porque para muitos outros estômagos aquilo é comida.
Assim, quando a ciência diz " isso não é
científico", é preciso ter em mente que, para
muitos outros estômagos, aquilo é comida, comida boa,
gostosa, que dá vida, que dá sabedoria. Acontece que
existe uma inclinação natural da mente em acreditar
que só é real aquilo que é real para ela (
o que é, cientificamente, uma estupidez) - de modo que, quando
normalmente se diz "isso não é científico"
está se afirmando, implicitamente, que aquilo não
é comida para estômago algum. Vão me perguntar sobre as razões por que
escolhi o estômago da vaca e não do tigre como análago
ao da ciência. O tigre parece ser mais nobre, mais inteligente.
A ESSO escolheu o tigre como seu símbolo; jamais escolheira
a vaca. Ao que me consta, existe uma única instituição
de saber superior cujo nome está ligado à vaca: é
a universidade de Oxford. "Ox", como é bem sabido,
é a palavra inglesa para vaca. Eu teria sido mais prudente
escolhendo a analogia do tigre ao invés da vaca, posto que
ambos os estômagos conhecem apenas um tipo de comida. Mas
há uma diferença.Não há nada que façamos
com os produtos dos estômagos dos tigres. Mas daquilo que
o estômago da vaca produz os homens fazem uma série
maravilhosa de produtos que contribuem para a vida e a cultura.
Já imaginaram o que seria da culinária se não
houvesse as vacas? Assim o estômago da ciência, com
seus produtos infinitos, incontáveis, maravilhosos - se não
fosse por eles eu já estaria morto - mais se assemelha ao
estômago das vacas que ao dos tigres. Resta-nos revelar a comida que o estômago da ciência é capaz de digerir. Vou logo adiantando: se não for dito em linguagem matemática a ciência diz logo: "Não é científico"... Concluo que isso que estou ouvindo agora, a "Rhapsody in Blue", de Gershwin, que me dá tanto prazer, que me torna mais leve, que espanta a tristeza, coisa real pelos seus efeitos sobre meu corpo e minha alma, isso não é coisa que o estômago da ciência seja capaz de processar. Não é científico. O CD player, o estômago da ciência digere fácil. Mas a música a faz vomitar. |
TOP |