Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Janeiro de 1999 - Vol.4 - Nš 1 "O que é científico?"(I) Colega aposentado com todas as credenciais e titulações.
Fazia tempo que a gente não se via. Entrou no meu escritório
sem bater e sem se anunciar. E nem disse bom-dia. Foi direto ao
assunto. "- Rubão, estou escrevendo um livro em que
conto o que aprendi através da minha vida. Mas eles dizem
que o que escrevo não serve. Não é científico.
Rubão: o que é científico?" Havia um ar
de indignação e perplexidade na sua pergunta. Uma
sabedoria de vida tinha de ser calada: não era científica.
As inquisições de hoje, não é mais a
igreja que faz. Não sou filósofo. Eles sabem disso e nem
me convidam para seus simpósios eruditos. Se me convidassem
eu não iria. Faltam-me as características essenciais.
Nietzsche, bufão, fazendo caçoada, cita Stendhal sobre
as características do filósofo: " Para se ser
um bom filósofo é preciso ser seco, claro e sem ilusões.
Um banqueiro que fez fortuna tem parte do carater necessário
para se fazer descobertas em filosofia, isto é, para ver
com clareza dentro daquilo que é." Não sou filósofo porque não penso
a partir de conceitos. Penso a partir de imagens. Meu pensamento
se nutre do sensual. Preciso ver. Imagens são brinquedos
dos sentidos. Com imagens eu construo estórias. E foi assim que, no preciso momento em que meu colega formulou
sua pergunta perplexa, chamadas por aquela pergunta augusta, apareceram
na minha cabeça imagens que me contram uma estória: "Era uma vez uma aldeia às margens de um rio,
rio imenso cujo lado de lá não se via, as águas
passavam sem parar, ora mansas, ora furiosas, rio que fascinava
e dava medo, muitos haviam morrido em suas águas misterioras,
e por medo e fascínio os aldeões haviam construido
altares às suas margens, neles o fogo estava sempre aceso,
e ao redor deles se ouviam as canções e os poemas
que artistas haviam composto sob o encantamento do rio sem fim. O rio era morada de muitos seres misteriosos. Alguns repentinamente
saltavam de suas águas, para logo depois mergulhar e desaparecer.
Outros, deles só se viam os dorsos que se mostravam na superfície
das águas. E havia as sombras que podiam ser vistas deslizando
das profundezas, sem nunca subir à superfície. Contava-se,
nas conversas à roda do fogo, que havia monstros, dragões,
sereias, e iaras naquelas águas, sendo que alguns suspeitavam
mesmo que o rio fosse morada de deuses. E todos se perguntavam sobre
os outros seres, nunca vistos, de número indefinido, de formas
impensadas, de movimentos desconhecidos, que morariam nas profundezas
escuras do rio. Mas tudo eram suposições. Os moradores da
aldeiam viam de longe e suspeitavam - mas nunca haviam conseguido
capturar uma única criatura das que habitavam o rio: todas
as suas magias, encantações, filosofias e religiões
haviam sido inúteis: haviam produzido muitos livros mas não
haviam conseguido capturar nenhuma das criaturas do rio. Assim foi, por gerações sem conta. Até
que um dos aldeões pensou um objeto jamais pensado. ( O pensamento
é uma coisa existindo na imaginação antes dela
se tornar real. A mente é útero. A imaginação
a fecunda. Forma-se um feto: pensamento. Aí ele nasce...).
Ele imaginou um objeto para pegar as criaturas do rio. Pensou e
fez. Objeto estranho: uma porção de buracos amarrados
por barbantes. Os buracos eram para deixar passar o que não
se desejava pegar: a água. Os barbantes eram necessários
para se pegar o que se deseja pegar: os peixes. Ele teceu uma rede. Todos se riram dele quando ele caminhou na direção
do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem
ligou. Armou a rede como pode e foi dormir. No dia seguinte, ao
puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada, uma
criatura do rio: um peixe dourado. Foi aquele alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham
estado tentando pegar as criaturas do rio com fórmulas sagradas,
sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitiçaria.
Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que sua rede apanhara
eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira. Outros ficaram alegres e trataram de aprender a arte de
fazer redes. Os tipos mais variados de redes foram inventados. Redondas,
compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas, umas para serem
lançadas, outras para ficarem à espera, outras para
serem arrastadas. Cada rede pegava um tipo diferente de peixe. Os pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes.
Porque os peixes que eles pescavam tinham poderes maravilhosos para
diminuir o sofrimento e aumentar o prazer. Havia peixes que se prestavam
para ser comidos, para curar doenças, para tirar a dor, para
fazer voar, para fertilizar os campos e até mesmo para matar.
Sua arte de pescar lhes deu grande poder e prestígio e eles
passaram a ser muito respeitados e invejados. Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa
confraria. Para se pertencer à confraria era necessário
que o postulante soubesse tecer redes e que apresentasse, como prova
de sua competência, um peixe pescado com as redes que ele
mesmo tecera. Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes,
pescar peixes e falar sobre redes e peixes, os membros da confraria
acabaram por esquecer a linguagem que os habitantes da aldeia haviam
falado sempre e ainda falavam. Puseram, no seu lugar, uma linguagem
apropriada às suas redes e os seus peixes, e que tinha de
ser falada por todos os seus membros, sob pena de expulsão.
A nova linguagem recebeu o nome de ictiolalês ( do grego "ichthys"
= peixe + "lalia"= fala ). Mas, como bem disse Wittgenstein,
alguns séculos depois " os limites da minha linguagem
denotam os limites do meu mundo". O meu mundo é aquilo
sobre o que posso falar. A linguagem estabelece uma ontologia. Os
membros da confraria, por força dos seus hábitos de
linguagem, passaram a pensar que somente era real aquilo sobre que
eles sabiam falar, isto é, aquilo que era pescado com redes
e falado em ictiolalês. Qualquer coisa que não fosse
peixe, que não fosse apanhado com suas redes, que não
pudesse ser falado em ictiolalês, eles recusavam e diziam:
"Não é real". Quando as pessoas lhes falavam de nuvens eles diziam: "
Com que rede esse peixe foi pescado?" A pessoa respondia: "Não
foi pescado, não é peixe." Eles punham logo fim
à conversa: "Não é real". O mesmo
acontecia se as pessoas lhes falavam de cores, cheiros, sentimentos,
música, poesia, amor, felicidade. Essas coisas, não
há redes de barbante que as peguem. A fala era rejeitada
com o julgamento final: " Se não foi pescado no rio
com rede aprovada não é real." As redes usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito
boas. Os peixes pescados pelos membros da confraria eram bons?
Muito bons. As redes usadas pelos membros da confraria se prestavam
para pescar tudo o que existia no mundo? Não. Há muita
coisa no mundo, muita coisa mesmo, que as redes dos membros da confraria
não conseguem pegar. São criaturas mais leves, que
exigem redes de outro tipo, mais sutis, mais delicadas. E, no entanto,
são absolutamente reais. Só que não nadam no
rio. Meu colega aposentado com todas as credenciais e titulações:
mostrou para os colegas um sabiá que ele mesmo criara. Fez
o sabiá cantar para eles e eles disseram: "Não
foi pego com as redes regulamentares; não é real;
não sabemos o que é um sabiá; não sabemos
o que é o canto de um sabiá..." Sua pergunta está respondida, meu amigo: o que é
científico? Resposta: é aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas. Cientistas são aqueles que pescam no grande rio... Mas há também os céus e as matas que
se enchem de cantos de sabiás...Lá as redes dos cientistas
ficam sempre vazias. |
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