Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Outubro de 2014 - Vol.19 - Nº 10 Psicanálise em debate O ARTISTA DA FOME, de Kafka
Sérgio
Telles “O
artista da fome”, conto de Kafka de 1922, apresenta questões interessantes. Resumo
- O
“artista da fome” [1] é um
jejuador profissional que se apresenta para um publico pagante, cuja diversão
consiste em vigiá-lo durante o tempo em que se comprometeu a se abster de alimentação.
O
“artista da fome” mostra-se insatisfeito por não lhe permitirem jejuar o tanto
que gostaria. É obrigado a interromper o jejum depois de 40 dias, prazo máximo
para manter a atenção do público, na opinião de seu empresário. O artista da fome se sente incompreendido e
não gosta quando o público se sensibiliza com o que julga ser seu grande
sofrimento, pois para ele o jejuar não é um sacrifício penoso. Fica ofendido
quando pensam que ele ludibria a todos e come escondido, como fazem os vigias
que, de forma cúmplice, se afastam da jaula onde fica, como que lhe dando
oportunidade para se alimentar. Ninguém compreende que se ele parece triste e
acabrunhado, isso não se deve ao jejum. Na verdade, era o contrário, ele
jejuava por que estava triste e ninguém nunca se apercebeu disso. Assim, ao
final das apresentações, ao invés de se regozijar por ter conseguido cumprir
com o prometido e aceitar as homenagens de todos, a delicadeza das moças que
lhe vinham amparar e encaminhar para a supostamente desejada refeição,
rejeitava tudo e só saia a contragosto da jaula que o abrigara durante aquele
período. Com
o tempo, esse tipo de espetáculo saiu de moda e o artista da fome, não podendo
trabalhar em outra coisa, foi para um circo, onde, diferente de quando era a
atração central, foi colocado num lugar fora do picadeiro, perto dos estábulos
e jaulas. No intervalo do espetáculo, as pessoas iam olhar os animais selvagens
seus vizinhos e, no meio do caminho, eventualmente olhavam para o artista da
fome. Humilhado com o descaso do público, sofria ainda mais quando o xingavam,
acusando-o de trapacear e se alimentar de forma dissimulada. Com
o passar do tempo, o artista da fome foi ficando esquecido e nem mesmo a
tabuleta que registrava os dias de jejum vencidos era mais atualizada pelos
funcionários do circo. Um
dia, um inspetor, vendo aquele espaço contendo apenas um monte de palha
apodrecida no seu interior, perguntou aos donos do circo porque não
aproveitavam melhor o recinto. Os funcionários abriram a jaula e, ao mexerem na
palha com seus ancinhos, descobriram ali o artista da fome. Ao se ver
descoberto em seus estertores finais, ele pediu desculpas ao inspetor, que o
ouvia divertido, de forma condescendente, como se o artista da fome fosse um
louco demente. Pedia desculpas, dizia ele, porque nunca lhe fora um sacrifício
o jejuar, ele o fazia com grande facilidade e isso acontecia porque, em toda
sua vida, nunca encontrara um alimento que o satisfizesse. Se isso tivesse
acontecido, ele jamais teria sido um jejuador, pois teria se fartado
ininterruptamente com aquela iguaria, como faziam todas as pessoas. Dito
isso, o artista da fome morreu e, algum tempo depois, no lugar onde estava foi colocada
uma jaula com uma bela pantera, que exibia uma estuante vitalidade. Sua alegria
de viver era intensa a ponto de incomodar os expectadores, que, entretanto, não
conseguiam se afastar dali um minuto sequer. Comentários
– No
inicio do conto, o jejum do artista da fome é um espetáculo que suscita grande
interesse e curiosidade. Alguns o admiram e elogiam sua força de vontade e
outros especulam se ele conseguirá realizar tal façanha e se empenham em
descobrir uma fraude, uma falcatrua, uma prova de que ele se entrega à satisfação
da pulsão. O
jejuador se sente profundamente incompreendido, pois o elogiam equivocadamente.
O que ele faz só teria valor se de fato sentisse falta da comida. E para ele o
jejum não custava nada, decorria de uma inapetência essencial que lhe era
inerente. Ele não tinha vontade alguma de comer. Ninguém notava que “a
insatisfação o roía por dentro” e que ele saía sempre a contragosto da jaula,
teria gostado de continuar ali e que, mesmo fora, “internamente continuava em
jejum, fazia parte de sua pessoa“. De
onde viria essa insatisfação? Do fato de nunca ter encontrado um alimento que o
agradasse. “Eu preciso jejuar, não posso evitá-lo. Porque eu não pude encontrar
o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria
feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo”. O
artista da fome passava a vida expressando o ressentimento por nunca ter
encontrado um alimento que o apetecesse. As pessoas não entendiam isso e, ao
invés de ajudá-lo a encontrar esse alimento procurado, e com isso o fizesse recuperar
o apetite, o admiravam pela capacidade de jejuar, acreditando que era com
grande sacrifício que ele se abstinha de comer. Ele
se irrita com o tempo de duração dos espetáculos, pois gostaria de deixar claro
que “não sentia limites para a sua capacidade de passar fome”, ou seja, que, na
verdade, desprezava de forma arrogante e onipotente, o alimento. Vê-se
então que a desconfiança do público de que o artista da fome o ludibriava não
estava de todo errada, pois o pressuposto básico que sustentava o espetáculo de
jejum estava comprometido. Ele o enganava o público não porque comesse
escondido e sim por não ter fome alguma e não desejar se alimentar. Se ele
estava controlando e contendo alguma coisa, não era a vontade de comer e sim o
ódio despertado pela frustração de não ter encontrado o alimento outrora desejado,
ou, poderíamos acrescentar, o alimento perdido ou que lhe foi negado (pela mãe),
ou cujo acesso lhe foi impedido (pelo pai). O
jejum seria a expressão de vários e contraditórios sentimentos. Uma expressão
de onipotência, afirmação de prescindir do alimento (do objeto, da mãe). A insatisfação e desprezo com o alimento
oferecido, tão aquém daquele desejado. A
formação reativa contra a voracidade despertada pelo alimento inaccessível. O
controle do desejo canibalesco de devorar vingativamente tudo a seu redor,
especialmente os responsáveis pela inacessibilidade do alimento desejado. Esses
elementos de agressividade oral são representados pela pantera que substitui o
artista da fome na jaula após sua morte. A pantera jamais esconde seu apetite e
seu prazer em comer. Alimenta-se muito bem e tem “escondida em suas mandíbulas”
a liberdade, “de sua garganta brotava uma grande alegria de viver”. Nisso
reside seu encanto. A
contraposição entre o artista da fome e as feras do circo é bastante reveladora.
Será que somente essas podem satisfazer plenamente suas pulsões orais – as
feras comem “pedaços de carne crua” e fazem “rugidos durante a alimentação”; a
pantera tem a “liberdade escondida na mandíbula” e “da garganta brota a alegria
de viver”. O artista da fome, pelo contrário, tem de inibir completamente seus
anseios orais. Por não ter encontrado o alimento desejado (ou ter-lhe sido
negado ou impedido, como foi sugerido acima) é tomado por um ódio ressentido e
uma voracidade destrutiva que o “rói por dentro” e contaminam completamente
seus desejos de se alimentar, não lhe restando alternativas a não ser o
jejum. O artista da fome não pode usar plenamente
suas pulsões orais, por temer que elas só produzam uma voracidade brutal e animalesca,
tendo consequentemente de ser inibida. A melancolia do artista da fome
provocada pela introjeção da destrutividade, o desvitaliza e o transforma num
amontoado de “palha apodrecida”, inicialmente afastando o público e depois lhe
roubando a vida. O
conto descreve o progressivo ostracismo que se abate sobre a arte da fome. Ele
é prenunciado no limite estabelecido pelo empresário: o público não tolera mais
que 40 dias. No inicio, o público vê o espetáculo como um embate que apesar de
levar a um enfraquecimento e emaciamento físico do artista, demonstra sua força
espiritual, seu vigor moral, sua disposição de vencer os impulsos mais
elementares da natureza humana e transcendê-los através da
espiritualidade. A partir de um
determinado ponto, as coisas se invertem, e aparece uma repulsa ao espetáculo,
pois aquilo que parecia ser uma manifestação de vitalidade passa ser vista uma
manifestação mórbida de descaso com a vida e a subsistência. Esse
ostracismo se manifesta duplamente - no declínio do interesse do público e no
rebaixamento de sua localização no circo, onde sua “jaula” (desde o inicio do
conto é assim designado o local onde o jejuador fica exposto ao olhar do público)
fica longe do picadeiro, vizinha dos animais, das bestas, das feras. Essa
significativa proximidade com os animais decorreria do real motivo de seu jejum
– uma forma de conter uma agressividade voraz e canibalesca desencadeada pela
frustração do alimento ideal não encontrado ou perdido? O
artista da fome é como uma criança que recusa a alimentação porque nunca encontrou
(nunca lhe deram, deram e depois recusaram, impediram-no de alcançá-lo) a
comida que mais desejava. Ele se mostra incapaz de elaborar a perda do seio e
substituí-lo por seus derivados. Essa imagem dele enquanto criança fica mais
explicita no relato de um final de espetáculo, quando ele reluta em abandonar a
jaula, em meio a fanfarras, música, discursos, moças se dispõem a ajudá-lo a
chegar até à supostamente desejada refeição. A descrição de seu corpo débil,
com cabeça, tronco e membros desconjuntados (“corpo pequeno”, “pequeno feixe de
ossos”, “cabeça que pende”), levado nos braços pelo empresário e amparado por
uma das moças (“tão amáveis na aparência, mas na verdade tão cruéis”) evoca a
imagem de uma criança pequena queixosa da mãe.
O
artista da fome – um melancólico insuperável? Um anorético? Uma
última questão o conto de Kakfa nos levanta ao falar do papel do público na
arte da fome, quer seja no limite de tolerância de 40 dias, quer seja no
ostracismo mais abrangente posterior. O
que, de fato, traria prazer para o público em tal espetáculo? Seria a dimensão
sado-masoquista, a satisfação sádica do público frente à exibição masoquista do
jejuador? Em
sendo o jejum é um elemento importante na liturgia da igreja católica referente
às comemorações da morte de Cristo, celebradas na Semana Santa, a arte da fome ofereceria
ao público – pelo menos durante um certo
período - uma versão leiga e anódina da Paixão. No
conto de Kafka há uma ligeira variante da questão. O público presencia, sim, o
sofrimento do jejuador, mas ele sofre não pela fome e sim pela inapetência. O
que o “rói por dentro” é a insatisfação de não ter o alimento desejado, a
voracidade, um ódio incomensurável. Ele despreza o aplauso do público, sua
admiração ou sua desconfiança. O que ele deseja é que o público o resgate de uma
fome impossível de ser satisfeita, mas não se faz compreender em sua
expectativa. [1] “Artistas da fome” eram comuns tempos atrás na Europa
e na América, onde se exibiam para um publico pagante que se divertia em seguir
o jejum que eles se dispunham a fazer e que se estendia por longos
períodos. O fenômeno teve inicio no
século 17 e atingiu o auge por volta de 1880. Os “artistas da fome” eram
habitualmente homens, costumavam se apresentar em turnês por muitas cidades e
faziam jejuns de 40 dias, amplamente divulgados. Muitos deles foram
considerados farsantes por fraudarem o
jejum e se alimentarem às escondidas.. en.wikipedia.org/wiki/Hunger_artist
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