Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Outubro de 2014 - Vol.19 - Nº 10 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA O SOCIOPATA ENTRE NÓS Fernando Portela Câmara O transtorno de personalidade antissocial ganhou a imaginação
popular na figura estereotipada de criminosos frios nos romances, novelas e
filmes, que tornaram a personalidade antissocial uma caricatura de criminosos
desalmados, assassinos frios, terroristas desumanos e empedernidos. Não é bem
assim. Dificilmente esses tipos serão classificados como antissociais ou
psicopatas. A maioria dos sociopatas não é consciente
de suas dificuldades e age por impulso e sem censura aos seus desejos
socialmente prejudiciais. Os mais esclarecidos procuram saber o que acontece
com eles, quando tem insight
suficiente para correlacionar algumas de suas dificuldades com a sua forma de
ser, chegando a entender o seu caráter e estabelecendo alguns limites que lhe
proporcionem uma vida social mais equilibrada. Isso não é muito comum. O
transtorno pode também se atenuar com a idade madura, quando a reflexão passa a
ganhar mais espaço na vida do individuo. Um sociopata
pode procurar um psicoterapeuta para discutir dificuldades que ele mesmo não
sabe ser decorrente da personalidade, mas nem sempre o psicoterapeuta perceberá
o transtorno e frequentemente encaixará suas queixas em algum transtorno do
eixo I. No Brasil, o elevado nível de violência e delitos no cotidiano das
pessoas reduz a visibilidade deste transtorno de personalidade, e o sociopata só será visível dentro de um cenário forense, ao
ser confrontado por um psiquiatra experiente num ambiente controlado. Este
expediente, contudo, seleciona somente os sociopatas
que se encaixam no constructo forense de “psicopatia”, na verdade uma
subpopulação do transtorno antissocial. O sociopata não
deve ser considerado um “criminoso nato”, destacando-se nesse caso suas tendências
sádicas, narcisismo elevado, falta de empatia, oportunismo e insensibilidade ao
sofrimento alheio, fatores que frequentemente levam a conflitos com familiares
e colegas. Entretanto, a associação entre sociopatia
e problemas com a lei é significativamente maior na população prisional em
comparação com a população geral, isto porque, neste caso, é a subpopulação de
psicopatas que está prevalecendo. A maioria dos sociopatas
está entre nós, criam muitos conflitos, mas não chegam a
ultrapassar o limite o comportamento criminoso. Demonizar o sociopata é um erro que pode trazer graves consequências,
tais como usar o estigma para prejudicar moralmente adversários e desafetos,
como hoje se observa (muitas vezes o próprio acusador pode esconder sob o ato
difamatório sua própria sociopatia). Esse afrouxamento do conceito de sociopatia faz com que a visibilidade do transtorno seja
prejudicada em nosso meio. A característica que mais se destaca na personalidade
antissocial e da qual deriva este designação é a sua dificuldade de respeitar
as normas sociais. Eles não introjetam o princípio da
lei e ordem como norma de convivência social, e por isso incitam e deflagram
impulsivamente arruaças, agressões, depredações, provocações e outros atos
considerados ilegais e prejudiciais à ordem social. As frequentes arruaças e
depredações ocorridas no Brasil recentemente são manifestações antissociais,
mas não se pode dizer que todos os seus participantes sejam sociopatas.
Uma minoria o é, e esta deflagra a violência social contagiando inocentes ociosos
excitados pela situação do momento e desejosos de aventuras, frequentemente
malogrados em prisões e processos. Fica assim difícil caracterizar o sociopata nesse cenário, e uma investigação forense seria
demorada e muito trabalhosa, sem nenhum utilidade dado que se trata de
manifestações políticas frequentemente organizadas para envolver uma grande parcela
de jovens idealistas e sonhadores. A maioria da população é sugestionável, e a
excitação coletiva leva a um abaissment do niveau mental em que passa a predominar uma
inteligência de enxame, primitiva, anônima e animal. Nos países com normas sociais bem definidas e socialmente
estruturadas, o comportamento antissocial é punido com medidas judiciais
agravadas com a reincidência. No Brasil, a falta de percepção do sistema legal
para a inibição da sociopatia com medidas punitivas
severas, a excessiva liberalidade para com criminosos reincidentes, e a
dissonância cognitiva generalizada do conceito social da autoridade, fazem com
que o ativismo sociopático seja endêmico. Nos países
judicialmente funcionais cresce a discussão sobre a possibilidade de se
detectar precocemente a personalidade sociopática,
dado que é considerada um transtorno global de
personalidade, mas o conceito é insuficientemente definido para que se possa
incluir nesse transtorno crianças e adolescentes jovens. Há correntes
psiquiátricas que admitem a existência de sinais precoces, mas enquanto os
determinantes e fatores de risco desse transtorno não forem esclarecidos e comprovados, tudo não passa de especulação. A personalidade
infanto-juvenil é demasiadamente proteiforme para
atribuirmos a ela características patogenéticas estáveis e globais. Crianças
com comportamento antissocial na escola ou praticante de bullying
não devem ser consideradas sociopáticas.
“Comportamento antissocial” não é a mesma coisa que “personalidade antissocial”.
Em sociedades cuja ordem social é frouxa e a autoridade vacilante, o
comportamento antissocial é largamente incentivado entre jovens. A personalidade sociopática só tem
visibilidade nas sociedades em que a conduta antissocial é culturalmente detectada
e punida severamente. Em sociedades tolerantes como a nossa, o transtorno não é
visível e frequentemente desconstruído no jargão da “exclusão social”,
“sociedade injusta”, “vítima sociais”, etc. sem um critério bem definido biopsicossocialmente. Impressiona a proporção de
autoridades políticas, judiciárias e educacionais que confundem sociopatia com “desassistência social”. O sociopata apresenta déficits sociais
que inevitavelmente o leva a transgredir as normas, desafiar a ordem e margear
as franjas da lei. Esses déficits podem ter uma base neurobiológica, mas não
existem ainda trabalhos suficientes para decidir sobre essa questão, especialmente
num momento em que a neurobiologia virou modismo e chavão para explicar todo
tipo de problema psíquico, social e até mesmo econômico! A pertissocial
é tipicamente narcisista, imatura, insensível, impulsiva e parasitária, mas a
sua detecção não deve se basear em um ou dois dados, mais em um conjunto de
atitudes comportamentais
características emolduradas em um histórico convincente. Relacionamos
abaixo algumas características da personalidade antissocial frequentemente
observadas no nosso cotidiano, insistindo que uma característica tomada
isoladamente não tem valor taxonômico. A tendência a correr riscos desnecessários, sem se preocupar com
sua segurança e a dos outros, são tidas geralmente como um traço de
personalidade antissocial. Um traço antissocial característico é o sujeito que
dirige seu carro de forma imprudente na cidade e na estradas,
sem se importar com os outros motoristas, pedestres ou regras. Entre esses
destacamos os que dirigem alcoolizados, sabendo que isso pode trazer graves
prejuízos a si e a outrem, mas não estão preocupados com os dados que possam
causar, pois não pensam nessa direção, mas na facilidade que podem dispor para
escapar à lei. Esse comportamento não é percebido em nosso meio como sociopático, pois nossa cultura não parece assimilar este
conceito na ordem social, e uma prova disso é a tolerância aos episódios frequentes
de vandalismo que há pouco mais de um ano vitimizam
nossa sociedade, superpondo-se aos legítimos movimentos de protestos da
população contra adebacle político-moral da sociedade brasileira
contemporânea. A irresponsabilidade é uma marca na personalidade sociopática, especialmente porque o sociopata
atua em direção à satisfação imediata dos seus desejos, não pesa as
conseqüências dos seus objetivos. É um traço infantil, denotando imaturidade
dessa personalidade, que inclusive se estende a certos aspectos físicos. A
incapacidade de adiar o desejo leva tais indivíduos a cometerem pequenos
delitos tais como furtos, mentiras, falsificações, manipulações enfim tudo que
proporcione a satisfação imediata de seus desejos. Essa versatilidade é típica dos
criminosos sociopatas, e também é essa impulsividade
que os levam a reincidir. São escravos dos seus impulsos, não aprendem com a
experiência, para eles os fins justificam os meios. O sociopata tem dificuldade em introjetar moralidade pública e ética profissional em sua
conduta, não tem a experiência interna de culpa e remorso, e não empatizam
com o outro. O sociopata não é solidário com o
sofrimento alheio, e por isso poderá infligir sofrimento nos outros sem culpa
ou remorso, agindo naturalmente. Não se importa em ajudar alguém ferido ou
acidentado, se tiver algo mais urgente a fazer. São incapazes de solidarizar-se
e compartilhar, de respeitar a propriedade alheia, não hesitam em enganar as
pessoas com quem convive para obter vantagens pessoais, e pode mesmo se fazer
passar por outras pessoas ou usar identidades falsas com esse objetivo, tudo
isso em função de alcançar a satisfação imediata de suas necessidades e desejos.
A ingenuidade com que praticam tais atos, sem medir as consequências, faz com
sejam facilmente descobertos, e mesmo que penalizados por tais atos, voltarão a
delinquir naturalmente. Por não aceitarem o erro ou delito, se vêem como
vítimas e defenderão essa atitude com veemência, não raro ganhando adeptos para
a sua causa, tamanha a capacidade de convencimento que imprimem em seus
protestos, inclusive juízes. O caráter impulsivo desse transtorno de personalidade, sua
irresponsabilidade para com os valores alheios e com o trabalho, sempre atuarão
quando a necessidade ou a situação ative esse lado sombrio da personalidade.
Assim, falsificarão resultados, relatórios, negligenciarão procedimentos,
encobrirão erros que poderão prejudicar uma comunidade inteira, praticarão
delitos sempre que a oportunidade os favoreçam, usarão
a ingenuidade ou o amor dos outros para obter vantagens e até mesmo
parasitá-los, e se descobertos ou responsabilizados se comportarão como
vítimas, não porque sejam maquiavélicos (geralmente não o são), mas porque
acreditam serem, de fato, vítimas da sociedade, do sistema, da perseguição dos
outros, etc. pois não são modulados por sentimento de culpa ou remorso. Os sociopatas são geralmente indolentes no trabalho, rendem
pouco, falsificam resultados, relatórios, despesas, são faltosos contumazes,
criam conflitos no ambiente de trabalho, e mudam frequentemente de emprego, vivem
frequentemente “encostados” no INSS, alternando com salário desemprego ou
outras facilidades que satisfaçam o seu natural parasitismo. Identificamos tais
personalidades muita vezes pelos seus resultados, que isso pode ser
especialmente nefasto nos ambientes científicos, médicos, empresariais, e
outros que exigem responsabilidade técnica, vital e credibilidade. Não devemos confundir
personalidade antissocial com psicopatia.
Como já foi dito acima, a personalidade psicopática é um constructo forense
restrito, uma subpopulação do transtorno de personalidade antissocial,
portadora de um perfil criminoso comprovado pelo registro penal. Muitos
portadores de personalidade antissocial convivem conosco trabalhando e
cumprindo as normas tanto quanto possam, embora sejam, na maioria das vezes,
fontes de conflitos crônicos. Eles podem ser ajudados quando percebem que se
conduzem “algo errado”, e podem também se controlar em um ambiente onde haja
supervisão de desempenho e exigência de conduta e decoro, mas soltarão as
rédeas nas ocasiões permissivas. Enfim, eles se controlam quando sabem que
terão uma boa chance de serem punidos se agirem “por
instinto” próprio, ou se não puderem culpar alguém. Por fim, os sociopatas emocionalmente
instáveis, impulsivos e que exibem hostilidade aberta quando frustrados são sociopatas primários. Não sentem culpa ou
vergonha e não formam laços afetivos. Os sociopatas secundários ou funcionais
formam laços afetivos, embora peculiares e seletivos, são mais controlados e
mais estáveis. De um modo geral, os sociopatas são
astênicos, indolentes, algo apáticos, e se excitam com emoções novas e por isso
buscam experiências excitantes.
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