Março de 2013 - Vol.18 - Nº 3 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Março de 2013 - Vol.18 - Nº 3 Psicanálise em debate A ORIGEM DO MUNDO Sérgio
Telles
“A
origem do mundo”, de Courbet (*) Sérgio
Telles O
quadro “A Origem do mundo” tem uma história curiosa à qual se acrescentou um novo
capítulo semana passada. A tela foi pintada em 1866 por Courbet, a pedido de Khalil
Bey, diplomata turco-egípcio e colecionador de quadros eróticos, que a possuiu até
o momento em que, arruinado pelo jogo, teve sua coleção leiloada. Em 1889, o
quadro foi encontrado num antiquário pelo escritor francês Edmond de Goncourt e,
posteriormente, comprado por um nobre húngaro que o levou para Budapeste, onde escapou
da pilhagem realizada pelas tropas russas no final da Segunda Guerra. Trazido
de volta a Paris, foi comprado por Jacques Lacan, que o mantinha em sua casa de
campo em Guitrancourt, na qual o exibia ritualisticamente a seus convidados.
Após a morte de Lacan, a família cedeu o quadro ao Museu d’Orsay dentro das
negociações com o estado francês em torno de impostos referentes à transmissão
de herança. “A
origem do mundo” mostra os genitais femininos da maneira mais crua possível. Vê-se
um torso da mulher, os seios, o ventre, as pernas afastadas, a frondosa
cobertura pubiana e a vagina entreaberta. A novidade recente é que teria sido encontrada
a parte superior do quadro, que exibe os ombros e a face da modelo, confirmando
hipóteses anteriores que afirmavam ser ela a irlandesa Joanna Hiffernan, que
posava também para o grande pintor Whistler, de quem fora companheira e que estaria
envolvida afetivamente com Courbet na ocasião em que o quadro estava sendo pintado. Supondo
a veracidade da descoberta, que ainda está em discussão entre os especialistas,
podemos conjecturar quem teria seccionado a pintura e por que motivo. O quadro era
tido como pornográfico e até muito recentemente mantinha essa conotação. Não é
então difícil imaginar que o próprio pintor tenha resolvido mutilar sua obra
com o intuito de proteger sua modelo. Ainda em 2009, livros cujas capas o
reproduziam foram confiscados pela polícia em Portugal e páginas do Facebook
que o exibiam foram retiradas do ar em 2011.
Não deixa de ser surpreendente que, em função do noticiário, sua imagem
tenha aparecido abertamente em todos os jornais. A
trajetória do quadro, vindo dos porões da pornografia para a consagração
definitiva nos salões do Museu d’Orsay mostra como a apreciação de uma obra
está inevitavelmente atrelada aos valores vigentes no tempo e no lugar de seu
surgimento. Contrariando
a representação idealizada do nu feminino, Courbet o apresenta de forma realista.
Consta que o grande crítico de arte e ensaísta vitoriano John Ruskin,
reverenciado por Proust, jamais superou o choque ocorrido no leito nupcial, ao
se deparar com as características hirsutas de sua mulher, tão distantes da lisa
e glabra estatuária clássica que lhe era familiar, acontecimento de consequências
desastrosas para seu casamento, jamais consumado fisicamente. Mais recentemente,
no final dos anos 60, o editor da “Penthouse”, Bob Guccione, causou furor ao
mostrar esse detalhe da anatomia feminina, até então pudicamente evitado até
mesmo por sua rival, a revista “Playboy” de Hugh Hefner. Atualmente
a forma de dispor o velo pubiano parece estar num outro estágio, evidenciando
que, a cada época, o erotismo desenvolve novas estratégias de sedução e formas
de acicatar o desejo. Se Courbet, fiel aos costumes de seu tempo, mostra o
genital feminino envolto em sua pilosidade natural, constata-se como a moda atual
é diferente, na medida em que a depilação é a regra para as mulheres e até
mesmo para os homens. Nos dias de hoje, Ruskin não teria tido problemas em sua lua
de mel. As
transformações na maneira como a sociedade acolheu “A origem do mundo” mostra como
a arte, enfrentando a censura e os preconceitos da época, luta para representar
e expor o que é considerado inaceitável, proibido, não representável. Desta
forma ela está permanentemente ampliando os limites e as fronteiras daquilo que
é permitido pela moral e os costumes. Trata-se
de um serviço inestimável que a arte presta ao conhecimento. Na medida em que
simboliza, representa e põe em circulação conteúdos até então excluídos, torna possível
o pensar e o refletir sobre eles. Com isso, os aspectos mistificadores,
idealizadores, ideológicos – ou seja, a dimensão fantasiosa que acompanha estes
conteúdos quando forçados a medrar no escuro – são expostos à luz, o que lhes retira a conotação assustadora,
devolve-lhes a real dimensão e a possibilidade de um tratamento objetivo
adequado. No
fundo, estamos falando da liberdade de expressão. O estado tem o dever de
proteger os cidadãos e neste sentido, deve exercer a censura (aqui entendida lato
censo, como o poder de reprimir e punir) para limitar os impulsos agressivos e
sexuais que nos são próprios e que precisam ser coibidos para garantir a vida Pornografia
ou arte, o quadro de Courbet mostra como a representação explícita dos genitais
mantém inalterado um efeito perturbador sobre nós, como algo arcaico vindo de
tempos imemoriais que nos atinge profundamente, sem que possamos evitá-lo. Ela evoca, sim, a “origem do mundo”, o
mistério da vida, o enigma da diferença sexual cujo impacto determinante ocorrido
na infância continuará para sempre repercutindo em nossas existências. A
propósito da diferença sexual, em (*)
Versão ampliada de artigo publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 16/02/2013
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