Fevereiro de 2013 - Vol.18 - Nº 2 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Fevereiro de 2013 - Vol.18 - Nº 2 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA
O MAGNETISMO ANIMAL NO BRASIL: PRÉ-HISTÓRIA DA PSICOTERAPIA BRASILEIRA, 1823-1887 Fernando Portela Câmara, MD, PhD Summary Keywords:
animal magnetism, psychotherapy, history of psychotherapy in Brazil. Muito do que sabemos
sobre os primórdios do magnetismo animal ou mesmerismo no Brasil devemos a Francisco
Fajardo (1896). A primeira referência brasileira sobre o magnetismo animal é o
livro do médico pernambucano João Lopes Cardoso Machado onde ele fala pela
primeira vez do magnetismo animal sob o nome de "catalepsia
espontânea" (Dicionário
Médico-Prático – Para Uso dos que Tratam da Saúde pública, Onde Não Há
Professores de Medicina, 1823). Entretanto, foi uma tese de doutorado
apresentada formalmente à Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (fundada em
1829 e mais tarde renomeada como Academia Imperial de Medicina, e depois
Academia Brasileira de Medicina), em 1832, pelo médico Leopoldo Gamard, sobre o magnetismo animal e seu uso em medicina, a
primeira tentativa de formalizar o uso desta controvertida psicoterapia. No
entanto, o Dr. Augusto Renato Cuissart, eminente
membro da Academia, fez rejeitar mediante erudito julgamento, a tese de Gamard alegando uma "audácia de charlatães" (Cuissart, 1832). Após essa humilhante
rejeição, não mais se ouviu falar no Dr. Gamard, que
passaria a exercer o mesmerismo discretamente, e assim tivemos aqui no Brasil um
autêntico seguidor de Mesmer e Puységur.
Nada mais se ouviu falar ou se escreveu sobre Gamard,
e também não encontramos nenhuma obra do mesmo, nem mesmo sua tese, exceto o
longo e erudito parecer de seu algoz. Após um hiato de duas
décadas, o interesse sobre o magnetismo animal retornou, dessa vez sob a forma
de livros publicados no exterior. Um destes foi aqui traduzido em 1853 pelo Dr.
Guilherme Henrique Briggs, "Prática Elementar do Magnetismo", do famoso magnetizador
francês Barão Du Potet. Entretanto, o interesse nessa
forma de tratamento psíquico recrudesceu quando, em 1861, foi fundada no Rio de
Janeiro a Sociedade Propaganda do Magnetismo e o Júri Magnético do Rio de
Janeiro, ambas dedicadas à pesquisa e tratamento através do magnetismo animal.
Estas entidades foram autorizadas a funcionarem desde que as práticas curativas
fossem conduzidas exclusivamente por médicos. Neste mesmo ano, o Dr. Joaquim
dos Remédios Monteiro apresenta a memória "Magnetismo – História" à Academia Imperial de Medicina. Nos anos de 1875 e 1876 o
médico Gonzaga Filho escreveu uma série de artigos sobre o magnetismo animal na
seção de ciências do Diário do Rio de Janeiro, obtendo grande repercussão na
Corte. Nessa mesma época (1876), o também médico Melo Moraes publicou o
trabalho "Memória Sobre o Fluido
Universal ou Éter", onde, entre outras coisas, prefigura a idéia de bioeletrogênese, e Dias da Cruz, catedrático de Patologia
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Ferreira de Abreu, Gama Lobo, e
Gonzaga Filho, pesquisaram o magnetismo animal e o seu potencial terapêutico.
Percebe-se, portanto, uma grande atividade e interesse na psicoterapia mesmérica, numa época em que a Europa já abandonara o
magnetismo animal e adotava sua versão científica, o hipnotismo de Braid, ainda não conhecido no Brasil. Entre 1880 e 1887, um
grande número de médicos introduziu a terapia pelo magnetismo animal em suas
clínicas, entusiasmados pelos relatos dos colegas. Destacam-se entre estes Calvert, médico da Corte do Rio de Janeiro, Lucindo Filho, em Vassouras, Moraes Jardim, em Barbacena,
Sá Leite, em Poços de Caldas, Affonso Alves, na Bahia, e outros. Nesse ínterim,
em 1884, Nunes Garcia apresentou seu trabalho "Memória Sobre o Magnetismo Animal" na exposição que ele
inaugurou na Biblioteca da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O hipnotismo médico,
então declarado como psicoterapia sugestiva, foi finalmente introduzido na
prática médica brasileira pelo eminente médico carioca Érico Coelho, que
apresentou um caso de cura de beribéri pela hipnoterapia sugestiva à Academia
Imperial de Medicina. O caso, diagnosticado como tal, devia ser, na realidade,
uma histeria conversiva, o que explicaria o sucesso de Coelho. A importância
histórica desse evento foi que, pela primeira, vez a psicoterapia foi
apresentada e introduzida na medicina brasileira em bases empíricas, marcando,
segundo Francisco Fajardo (1896), o ato inaugural deste método terapêutico. A
palavra hipnotismo foi usada pela primeira vez, assim como a palavra
psicoterapia, e sua prática foi aprovada pela Academia como ato médico
legítimo. A história da introdução da psicoterapia sugestiva ou hipnotismo no
Brasil foi recentemente estabelecida por Câmara (2012). Gamard e Cuissart Leopoldo Gamard apresentou sua memória sobre o magnetismo animal à
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro – hoje Academia Nacional de Medicina –
em 15 de maio de 1832. Ele não era membro da academia, e para avaliar sua
dissertação foi designado o membro titular Augusto Renato Cuissart,
que apresentou seu parecer na 18ª sessão da Sociedade, ocorrida em 6 de outubro
de 1832, presidida por Francisco Freire Alemão. Nada sabemos sobre o material apresentado
por Gamard, mas a íntegra do parecer de Cuissart foi publicado no Semanário da Sociedade (Cuissart, 1832) e também reproduzido por Antonio Rezende de
Castro Monteiro (Monteiro, 1980), autor
de uma história sobre o hipnotismo no Brasil (Monteiro, 1984). “A medicina é ciência
quimérica e o magnetismo animal e a pedra angular da terapêutica”, foram essas
as únicas palavras de Gamard citadas no relatório de Cuissart. Essa frase nos sugere que Gamard
estava a par de como o mesmerismo era considerado pelos seus seguidores
franceses. De fato, Mesmer proclamara que a medicina
era um monopólio em que a doença era um constructo criado para garantir uma
profissão que vivia do diagnóstico e tratamento da doença. O magnetismo animal
não era apenas um método, mas uma radical oposição à profissão médica e por
isso ela foi proclamada pelos revolucionários franceses como a medicina oficial
da Revolução. Compreende-se agora porque Mesmer foi
tão perseguido pelos médicos e pela casa real, pois sua relação com os
conspiradores da Revolução Francesa era vista como temerária. Uma excelente
revisão sobre essa ideologia política do magnetismo animal pode ser apreciada
na obra de Robert Darnton (1988). O relatório de Cuissart é uma peça de erudição que mostra o profundo
conhecimento que o ilustre membro da Sociedade de Medicina tinha sobre o
assunto. Ele faz uma extensa revisão do magnetismo animal, que dividiu em três
partes, a primeira relativa aos primórdios, a segunda relativa a Mesmer, que ele considerava um plagiador dos seus
predecessores, e a terceira o magnetismo de Puységur
e Deleuze. Essa minuciosa revisão tinha por propósito mostrar passo a passo o
equivoco do magnetismo animal e os perigos de sua prática para a saúde e para a
moral pública. Cuissart repete a conclusão que as
comissões francesas chegaram contra Mesmer, bem como
a do comissário da polícia francesa, e parece que sua motivação é uma alusão à
uma provável defesa de Gamard contra esses
malefícios, que desapareceriam se o magnetismo animal fosse uma prática
exclusiva dos médicos. A postura de Cuissart ao
rejeitar a memória de Gamard parece focalizar esse
tema, que pensamos ter sido uma reivindicação deste último em sua apresentação.
Enfim, a conclusão final de Cuissart refuta as
pretensões de Gamard nessas palavras: “…o magnetismo animal origina novos perigos a
moral publica e para a segurança das famílias. Não se pode negar que o
magnetismo não exerça grande influencia moral sobre o sonâmbulo. A vontade
acha-se para assim dizer adormecida, e não eh apta para resistir as ordens de
quem magnetizou. Não se poderão então conhecer o segredo das famílias, e
penetrar nos seus interiores mais sagrados e delicados. D’estas relações tão
intimas, d’estas impressões estranhas a par de agradáveis surge uma devoção
completa e absoluta para o magnetizador. Facilmente vos imaginaes
o que deve acontecer quando a doente eh moça e o magnetizador homem prendado. Não se pode objectar
que todos esses perigos vão desaparecer huma vez que
os médicos pratiquem pessoalmente o magnetismo. Senhores, isto eh argumentar do
impossível. A sciencia que cada dia estudamos não eh sciencia oculta e ninguem nesse
recinto se quererá transformar em pelotiqueiro de praças. Eu concluo vetando na
rejeição da memória de M. Gamard.” (Cuissart, 1832) Percebe-se
a preocupação com a excessiva intimidade entre paciente e terapeuta, propícia
para uma sedução, e Cuissart teria de esperar mais de
setenta anos para encontrar a explicação Conclusão A
evolução histórica das idéias e esforços que culminaram com a instituição de
medicina psicológica, hoje mais conhecida como psicoterapia, teve sua origem no
magnetismo animal e depois na terapia sugestiva (Câmara, 2012), com o nome de
hipnotismo, até que a psicanálise despontasse com seu corpo doutrinário. Na
contra corrente desse movimento, nasceu o behaviorismo fruto da aplicação do
método científico em experiências de laboratório e observações sistemáticas,
divergindo a psicoterapia em duas grandes vertentes, a psicanálise idealista e
o behaviorismo experimentalista, ambos acolhidos dentro da psiquiatria, até a
chegada da terceira corrente: o cognitivismo. O Brasil não foi indiferente
nesse fluxo da história, e aqui acompanhamos e debatemos essas correntes a par
das novidades que aconteciam na Europa. Bibliografia Câmara,
FP. Instituição da psicoterapia no Brasil: 1887-1889, Psychiatry On-line Brazil, 2003;
8 (1), disponível em http://www.polbr.med.br/ano03/wal0103.php (acessado em 12/09/2012). Cuissart, AR. Parecer critico sobre a
memória de M. Gamard sobre o magnetismo animal,
Semanário de Saúde Pública da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, 1832;
126: 441-8. Darnton, R. O Lado Oculto da Revolução. Mesmer e o Final do Mesmerismo na França. São Paulo: Ed.
Cia das Letras, 1988 (trad.). Fajardo, F. Tratado
de Hypnotismo. Rio de Janeiro: Typ.
Laemmert & C., 1896. Monteiro,
ARC. A propósito do relatório de Cuissart sobre a
memória de Gamard, Rev. Bras. de Hipnologia, 1980; 1:
47-55. Monteiro,
ARC. A história da hipnose no Brasil, Rev. Bras. de Hipnologia, 1984; 5: 4-22.
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