Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Outubro de 2011 - Vol.16 - Nº 10 Pensando a Psiquiatria ENTRE A CIÊNCIA E A FEITIÇARIA, OU COUSTEAU, ARQUIMEDES E IBSEN Dr. Claudio Lyra Bastos En pleine eau, un céphalopode est
sans résistance. Pour lutter, il faut un point d’appui. Gare au plongeur qui lui laisserai la possibilité de se racrocher aux
rochers par deux ou trois tentacules![1] Jacques-Yves Cousteau, Pieuvres Num daqueles antigos documentários
sobre o mundo submarino, o célebre capitão Cousteau mostrava um mergulhador
manipulando um polvo enorme, de um tipo que vive nas costas frias do noroeste
americano. Ele destacava a imensa força do molusco, dez vezes superior à do
homem, relativamente. Um polvo de 50 quilos seria capaz de mover uma tonelada.
No entanto, na sua condição de invertebrado, sem quaisquer estruturas sólidas
internas, o polvo não tem como fazer nenhum braço de alavanca, e toda a sua
poderosa musculatura só pode ser posta a funcionar quando ele se agarra a algum
ponto de apoio. Solto na água, ele se torna pouco mais que um brinquedo de
borracha. Anos atrás, quando a vi pela primeira vez, essa cena me impressionou
muito, mas só lhe pude alcançar inteiramente o significado metafórico agora,
após escrever as páginas que se seguem. Vemos hoje em dia a maior parte dos
psicotrópicos ser prescrita por clínicos, neurologistas, ginecologistas,
geriatras e endocrinologistas, a grande maioria sem qualquer tipo de preparo
nessa área. Da mesma forma, a psicoterapia, incluindo a psicanálise, é
atualmente predominantemente praticada por psicólogos, assistentes sociais
outros profissionais. Na área social, os psiquiatras tem sido deixados de lado
em todos os projetos de saúde pública. No entanto, em qualquer desses campos do
saber, são justamente os psiquiatras as figuras de destaque na produção de
conhecimento e de maior repercussão na sua expressão pública. São contradições
impressionantes, às quais não podemos deixar de prestar atenção e tentar
compreender. Este texto, apesar da imensa
abrangência teórica dos assuntos de que se obriga a tratar, originou-se
fundamentalmente da prática psiquiátrica. Foi apenas a partir do contato
constante com os pacientes, na vivência clínica diária – em consultórios,
ambulatórios, enfermarias e emergências de hospitais gerais e psiquiátricos –
que acabei, paulatinamente, por constatar que a psiquiatria, mais do que
qualquer outra especialidade médica, deve ser vista como um todo (o fato social
total de Marcel Mauss), não sendo epistemologicamente concebível a divisão ou a
setorização do seu saber. A contínua observação de erros, omissões, vieses e
incoerências comuns à prática hospitalar e ambulatorial me foi trazendo
paulatinamente à luz a profundidade e a relevância dos princípios
fenomenológicos e do enfoque etnopsiquiátrico, assim como dos seus
desdobramentos teóricos e práticos sobre a clínica. Devo ressaltar que, por mais ácidas
que venham a parecer certas críticas que faço ou veiculo, não tenho, em nenhum
momento, a intenção de contribuir para qualquer pretensa “desconstrução” da
psiquiatria. Apesar de dever muito à antropologia no meu entendimento da
realidade psiquiátrica, não pretendo me colocar na posição de um antropólogo
supostamente neutro. Esta perspectiva é a de um psiquiatra convicto, um médico
que atende pacientes em consultório, em ambulatórios e enfermarias, e a minha
intenção é contribuir para a construção de uma psiquiatria mais consistente.
Atendo pacientes e famílias, faço psicoterapia, medico, vou a hospitais,
supervisiono, faço perícias. Cabelo, barba e bigode: serviço completo. Certa vez um amigo, professor de
ciências sociais, me apresentou, em tom divertido, como “Um psiquiatra que acredita em psiquiatria!” Além do mais, não nutro
qualquer simpatia pela observação neutra ou isenta; até porque, como Nelson
Rodrigues, não creio em imparcialidades, e acho que devemos dizer logo a que
viemos. Isto não é um comentário acadêmico
acerca das contradições e incoerências da psiquiatria, mas um trabalho motivado
pela essência da medicina – a base da psicopatologia – e movido pela angústia
médica de melhor tratar dos doentes, a qual não merece que se cometa a
superficialidade de confundi-la com o furor
curandi. Assim, sou francamente pela total preservação do modelo médico, só que o meu não é esse
modelo tecnicista e globalizado que
anda por aí, não. Medicar e medicalizar são coisas completamente diferentes. É
preciso definir os termos, para não confundir racionalidade com racionalismo
nem ciência com cientificismo. Refletir sobre as tendências da
psiquiatria, passando pelas suas relações com a
biologia, a psicologia e a sociologia, poderia ser aparentemente uma
tarefa hercúlea, de uma pretensão intelectual enorme e vã. No entanto não
podemos deixar de considerar que reflexões algo semelhantes a estas são feitas
diariamente, obrigatoriamente, por milhares de psiquiatras, em seu trabalho
diário e em suas horas de lazer. Não há como escapar de fazê-las, face aos
problemas que a clínica nos traz a todo momento. Assim, elas são feitas porque
devem ser feitas, porque precisam ser feitas, porque têm que ser feitas; mesmo
que talvez até sejam, no mais das vezes, malfeitas. Minha única desculpa para
me meter a tratar de tantos assuntos diferentes é que, para um psiquiatra, nada
do que é humano lhe pode ser indiferente, mesmo no sentido estritamente
profissional. Espero que o benévolo leitor me
perdoe pelo número talvez excessivo de citações, mas sempre me pareceu
importante mostrar as origens e as diversas formas sob as quais os problemas
surgem, assim como as suas conseqüências e desdobramentos. Na universidade,
hoje em dia, é comum que a garotada pense que está adquirindo visão crítica
porque lhes deram para ler alguns estudos críticos, sem que jamais tenham
tomado conhecimento direto dos objetos ou dos assuntos criticados. Assim,
acabam repetindo idéias prontas e frases feitas, seja na fantasia de que estão
realmente pensando, seja pelo pavor de pensar por si mesmos. Comigo ocorreu que, diversas vezes,
ao levar textos, projetos ou trabalhos de pesquisa – que não se enquadravam
dentro de uma única escola ou linha rígida – para ouvir sugestões ou opiniões
de colegas, visse neles uma certa angústia, por não saberem como organizar o
pensamento sem referências óbvias nem as costumeiras chaves interpretativas.
Com um ar desconfortável, vinha a rápida resposta: “Mas isto é
Psicopatologia, porque você não fala com Fulano?” Psicanálise? “É com Sicrano” Ou, logo adiante, “Mas
se se trata de Antropologia, porque você não consulta Beltrano?” E por aí
vai. A minha vontade é a de pegar a pessoa pelo colarinho, sentá-la na cadeira
e dizer: “Eu não quero falar com fulano nem beltrano; eu quero falar com
você. Dê a sua opinião!” Às vezes tenho a impressão de que certos
professores são incapazes de dizer se preferem picolé de abacaxi ou chicabom
sem consultar a literatura ou fazer uma reunião de departamento. Samuel Johnson, elogiando o ambiente
das tavernas do século XVIII, dizia que nelas podia discutir com liberdade e
espírito crítico (“I dogmatise and am
contradicted, and in this conflict of opinion and sentiments I find delight.”[2]).
Ainda hoje vemos que nas conversas nos botequins à volta da universidade,
livres das pressões acadêmicas e políticas, muitas vezes se raciocina melhor
que dentro dela. Decidi-me assim a ir logo
apresentando preliminarmente as idéias fundamentais que discuto, para depois
retomo diversas vezes em outros textos, como num Leitmotiv wagneriano. A primeira idéia é a de que a
psiquiatria é algo tão antigo como o próprio homem, e fazendo parte da
medicina, é investida deste mesmo aspecto simbólico, sacralizado, ainda que
todas as correntes ideológicas psiquiátricas tentem laicizá-la. Reconhecer este
aspecto mitológico intrínseco é o primeiro passo para preservar a ciência e
evitar que se transforme em ideologia, ou religião laica. Ao contrário do que
gostam de pensar certos foucaultianos, a psiquiatria não foi inventada nos
séculos XVIII e XIX. Aquilo que poderíamos chamar talvez de “psiquiatria
moderna” é que surgiu com Pinel no iluminismo, quando a razão começou a ser
divinizada e cultuada. A morte de Deus, a perda das referências absolutas e o
desenvolvimento do individualismo mais uma vez forçaram a separação entre as
eternas dicotomias da mente humana, sempre oscilando entre a lógica e a
intuição, o concreto e o simbólico, o objetivo e o subjetivo, o mythos e
o logos dos antigos gregos, produzindo uma razão destituída de intuição,
de onde se originou o racionalismo e a sua cria, o cientificismo. Um outro ponto importante é a
constatação de que a nossa quase irresistível tendência às dicotomias e aos
maniqueísmos não nos permite trabalhar com níveis diversos de causalidade. Num momento como o atual, em que o
racionalismo e o irracionalismo novamente se confrontam, torna-se claro que
ambos são frutos de fundamentalismos, igualmente afastados da racionalidade.
Se, por um lado o fanatismo religioso nega a razão em função da Verdade Revelada,
o fanatismo racionalista busca uma Verdade Absoluta no que é relativo e tenta
compreender o todo esmiuçando as partes, ou dedica-se a mapear o infinito
compondo um mosaico de detalhes, como um daqueles quadros fragmentados de
esquizofrênicos como o nosso Arthur Bispo do Rosário ou profetas gráficos como
o conhecido Gentileza ou o pregador americano Howard Finster. Por fim,
temos a afirmação de que os conceitos psiquiátricos não são, em si mesmos,
confusos, pouco inteligíveis ou complicados. As teorias que tentam explicá-los,
sim, geralmente o são. A realidade da mente humana não é simples nem linear;
trata-se de uma estrutura que funciona em rede, complexa e multidimensional,
cujas alterações não podem ser avaliadas por medidas discretas e métodos simplórios.
Até mesmo a mente de um cão é complexa demais para ser avaliada por escalas
lineares. Isto não nos impede de entender os cães, cuidar deles e prever, até
certo ponto, o seu comportamento. Podemos fazer o mesmo com as pessoas. Um
feiticeiro experiente faz isso muito bem. A questão é: como? Um Inimigo do Polvo Cave ab homine
unius libri [Cuidado com o homem de um
só livro] Santo Tomás de Aquino No campo da psiquiatria surgiram
três fluxos ideológicos básicos: o biologismo, o psicologismo e o sociologismo.
O primeiro aderia ao culto do racionalismo, dedicando-se à idolatria da razão,
o último surgiu como reação, pugnando pela desmistificação da razão e até mesmo
valorizando o irracionalismo. À guisa de síntese, criou-se um produto híbrido
–a psicanálise – que oscilava entre os dois sem jamais chegar a realizar o seu
objetivo, assemelhando-se por vezes a uma espécie de agente duplo, daqueles que
ninguém sabe – talvez nem ele mesmo – de que lado realmente está. Destas vertentes ideológicas fundamentais
surgiram todas as outras seitas menores com suas ramificações. Seus princípios
já se faziam presentes nos debates dos pensadores gregos, desde há vinte e
cinco séculos. Nenhuma delas traz qualquer novidade significativa para o
pensamento humano. Nem mesmo a concepção do homem como mecanismo, com
engrenagens complexas a serem decifradas pela ciência, é recente. Metodologicamente, cabe às
neurociências estudar de forma privilegiada os aspectos biológicos da vida
psíquica, assim como à psicologia privilegiar os aspectos mentais e às ciências
sociais, por sua vez, puxar a brasa para a sua sardinha. Até aí tudo bem. Outra
coisa é acreditar que tudo possa ser explicado pela biologia ou que instâncias
como “orgânico”, “mental” ou “social” existam efetivamente, como realidades
independentes. As metáforas usadas para explicar o funcionamento da
mente permanecem basicamente as mesmas há 25 séculos: da harmonia entre os
humores ao equilíbrio energético das catexes e ao balanceamento bioquímico dos
neurotransmissores, pouco mudou. Não que sejam metáforas ruins; têm lá a sua
utilidade, enquanto sejam consideradas aquilo que são – metáforas – e não
aquilo que não são: profundas explicações científicas. Das metáforas, não se
diz se são falsas ou verdadeiras, mas apenas boas ou ruins. Da mesma forma que
a psicanálise, a psiquiatria biológica e a social não passam de conjuntos de
metáforas que procuram organizar conhecimentos essencialmente intuitivos em
corpos teóricos. A seguir, podemos considerar que uma
psiquiatria científica, primordialmente ligada à clínica, teria existência
apenas de uma maneira virtual, como breves lampejos dentro da obscuridade
produzida pela profunda influência das ideologias predominantes no momento. Os
temas fundamentais da psiquiatria – a irracionalidade, a incontrolabilidade, a
imprevisibilidade, a indeterminação e a inadequação humanas – são, além de
complexos, pesados demais para que se
lhes permita um desenvolvimento mais solto, mais científico, menos
ideologizado. O psiquiatra, como o médico[3] em
geral, nunca pode deixar de ter em vista que é um feiticeiro, e que os muitos
milênios que essa nobre profissão tem atravessado não serão apagados por uma ou
duas décadas de tecnicismo barato. A psicopatologia é um conhecimento que não
pode ser adquirido exceto através do exercício da medicina, e a praxis desta
tekne exige princípios éticos, estéticos e epistemológicos que a formação
atual do médico insiste em negligenciar. Observamos ainda que a antropologia
– ou a etnopsiquiatria – através do conceito fundamental de culture-bound syndrome, revela a grande
fragilidade de todos esses constructos teóricos explicativos. Todas essas
abordagens explicativas cumprem certas funções sociais, e assim, dispõem de uma
certa cota de poder. Ao procurar ampliá-lo, extendendo seus domínios de
influência, todas acabam caindo nos mesmos problemas epistemológicos e
operacionais básicos: reducionismo desmedido, ideologização das questões,
sectarização, raciocínio circular e progressivo afastamento das bases clínicas.
Menos como o sábio de Siracusa e mais como o polvo de Cousteau, tornam-se
totalmente inermes quando perdem os seus pontos de apoio, que são a relação com
o paciente, a vivência psicopatológica e a experiência clínica, ou na linguagem
psi, a escuta e o discurso do Outro.
Cada segmento acadêmico se esmera na
crítica de todos os demais, mas essa crítica se revela absolutamente estéril quando
chega na prática clínica, que já está dividida em práticas setoriais
relacionadas aos grupos sócio-econômicos e culturais a que se dirigem. Da mesma
forma que para os personagens da peça de Ibsen de onde saiu o trocadilho deste
subtítulo, a verdade em nada lhes interessa. Procuro aqui resumir, de forma
panorâmica e crítica, os problemas fundamentais da psiquiatria atual, suas
origens e desdobramentos nas principais correntes ideológicas atuais. Assim,
trocando em miúdos, constato que nenhuma abordagem explicativa constrói uma
psicopatologia consistente nem satisfaz às necessidades da psiquiatria por três
razões principais: a) questões intrinsecamente complexas não podem ter soluções
simples, lineares; b) “doença” (o pathos
dos gregos) não é um conceito científico, mas médico; c) os vieses políticos e
ideológicos não são evitáveis, por fazerem parte do processo investigativo.
Seja quanto à ética seja quanto ao método, não é possível escapar totalmente
nem da religião nem feitiçaria. Quem deseja ser psiquiatra tem que conviver com
isso. Proponho um retorno à formação psiquiátrica mais profunda, mais
consistente filosoficamente que é a psicopatologia fenomenológica, clínica,
aqui também em seu sentido grego (de kline:
leito). Talvez seja necessário frisar que
esta abordagem não é uma escola, nem uma corrente, nem uma teoria, nem um
sistema explicativo, mas apenas uma atitude frente ao fenômeno humano.
Também não se pretende “ateórica” como os DSMs, por não negar as teorias; mas
poderia ser entendida como “pré-teórica”, na medida em que coloca a relação antes
das teorias, encarando-as sempre de forma crítica. Por essa simples razão a
abordagem fenomenógica nunca chegou a produzir gurus nem a formar discípulos.
Sendo assim, não tem claques, nem fã-clubes, nem torcidas organizadas, nem
nichos acadêmicos. E nem fantasias de que “a
verdade vos libertará”... Iatros, pathos, kline Na definição dos papéis
representados por essas três palavrinhas gregas se resume toda a discussão
deste texto. A clínica das doenças mentais é a grande fonte de saber sobre a
mente humana. O recente e extraordinário livro de Louis Sass, “The Paradoxes of Delusion”, demostra
brilhantemente como o estudo da esquizofrenia vinha se ressentindo das
abordagens de orientação deficitária[4],
sejam jacksonianas ou psicanalíticas. Como bem frisou E. Minkowski, a
psicopatologia deve ser muito mais uma rica psicologia
do patológico do que uma mera patologia
do psicológico, contruída à base
de faltas e excessos. Essa abordagem vai ao encontro dos estudos dos
sistemas complexos e dos processos não lineares de auto-organização, indo além
das perspectivas explicativas mecanicistas do século XVIII que persistem até
hoje. A psicopatologia não é apenas um caminho indispensável para o estudo da
doença mental, mas uma trilha privilegiada para o conhecimento do homem, pela
qual nem o filósofo nem o antropólogo têm livre passagem. Negar a doença mental, ou tentar empacotá-la em mecanismos e sistemas são
as alternativas empobrecedoras que estão sempre surgindo e ressurgindo, seja de
forma religiosa, seja de forma acadêmica. Revelações místicas como os
determinismos histórico, econômico, biológico, dentro dos cultos
cientificistas, progressistas e evolucionistas, impregnam a vida acadêmica. Os
muezins modernos entoam o seu Allah hu Akhbar! do alto das torres das
mesquitas universitárias sem se dar conta de que todos os fanatismos começam da
mesma forma, com a predominância das idéias sobre as coisas, mesmo quando sob a
roupagem do pragmatismo utilitarista. Por essa, certamente nem Platão nem Santo
Agostinho esperavam... A ideologia individualista – assim
como o seu contraponto coletivista – que produziu toda essa ramificação
sectária atual, torna impossível qualquer conhecimento derivado da compreensão fenomenológica, porque este
processo implica uma interação, sem a ruptura, das barreiras individuais. O
espaço intersubjetivo no individualismo tem uma conotação negativa, e essas
barreiras tendem a ser rigorosamente vigiadas.[5] A ausência ou a perda da perspectiva
compreensiva fenomenológica tem como inevitável conseqüência uma completa
absorção da psicopatologia pelos elementos ideológicos particulares do ambiente
histórico e cultural. Assim se formaram o psicologismo, o biologismo, o
psicanalismo, o sociologismo, etc. A própria etnopsiquiatria, com sua proposta
crítica, acaba tornando-se ela própria uma plataforma do relativismo estéril,
puramente acadêmico, quando desligada da vida clínica. Os conflitos entre as
seitas não passam na realidade de falsas disputas, meramente retóricas, já que
os seus membros só dialogam mesmo entre si, em terreno previamente reconhecido
e delimitado. À diferença da prática clínica, no
meio acadêmico a transdisciplinaridade – desde a sua conceituação por Jean
Piaget, há mais de meio século – nunca deixou de ser um conceito meramente
retórico e sem qualquer aplicabilidade real. Fala-se nisso como se fala em
complexidade e em redes causais; é só um bordão a ser repetido a cada dez
frases. Há décadas se fala nisso, mas tudo permanece desconexo como sempre
esteve. Acontece que na universidade, as
diferenças de jargão e de metodologia não atendem apenas a fins epistêmicos,
mas representam, fundamentalmente, demarcações de território. Quando os
“proprietários” de algum determinado território de conhecimento ou pesquisa
insistem em usar este ou aquele termo, citar este ou aquele autor ou aplicar
tais ou quais métodos, eles não estão apenas sendo rigorosos nem rígidos, mas,
básicamente, urinando no poste para mostrar aos colegas a sua área de ação. Se
algum incauto se aproximar será advertido com um rosnado, e se entrar,
inapelavelmente mordido. Em todos vemos a tentativa de
construção de um conhecimento a partir da proposta de uma objetividade
operacional, epistêmica, mas nunca ontológica. A história nos revela esta como
a única forma de abordagem capaz de suportar a imensa pressão desse processo de
aculturação que atende pelo eufemismo de globalização.
Só uma atitude fenomenológica prévia, que se reconhece subjetiva e imersa na
vida cultural, pode permitir o respeito à clinica e à compreensão,
proporcionando deste modo eventuais sínteses das recentes descobertas
neurofisiológicas com as observações psicanalíticas, sociológicas e
filosóficas, escapando à fragmentação conceitual, assim como aos aprisionamentos
sistemáticos, às teorias hiperabrangentes e às especulações descabeladas.
O Elogio da Clínica Fairy
tales do not tell children the dragons exist. Children
already know that dragons exist. Fairy
tales tell children the dragons can be killed.[6] GK Chesterton O método clínico, baseado na
fenomenologia, na relação interpessoal e na observação, continua sendo o único
capaz de permitir um trabalho psiquiátrico de forma crítica, aberta, sem
pretensões deterministas, seja como ofício, seja como pesquisa científica. O
estudo de casos, com a compreensão esclarecida pelos conhecimentos advindos das
diversas áreas permite ao profissional, assim como ao pesquisador, descobrir e
fazer aflorar os elementos comuns, essencialmente humanos, no mar de interesses,
particularidades e significações sociais, culturais e ideológicos em que todos
vivemos.[7] Na
frase de D. Widlöcher (1990, p.51): “L’important
est d’utiliser un cadre conceptuel qui ne nous oblige plus à des choix
idéologiques entre différents points de vue, sociologique, psychologique ou
organique, mais d’intégrer ces différentes approches.”[8] Só
uma visão essencialmente crítica como a da postura fenomenológica pode permitir
a conjugação de visadas que sempre serão essencialmente diferentes, como a
neurobiológica, a psicanalítica e a sociológica. Sem essas fundações humanas, a
construção de modelos unidimensionais tende sempre a desmoronar. Tratar é a arte de combinar de forma
estratégica e judiciosa os recursos psicobiológicos e uma determinada técnica
psicoterápica com a qual o terapeuta se identifique melhor, constituindo a
essência da prática clínica. O uso de cada droga deve estar imbuído de
significado para o paciente, da mesma forma como o feiticeiro dá significado ao
uso de cada planta medicinal. Toda farmacoterapia é também psicoterapia e todo
ritual psicoterápico é também um “remédio”. Assim, por exemplo, tratar um
estado maníaco com lítio empreendendo uma terapia psicodinâmica simultânea ou
subseqüente, prevenir uma deficiência mental metabólica (p. ex.:
fenilcetonúria, hipotireoidismo, etc.), tratando as seqüelas com psicoterapia e
terapia familiar são atitudes clínicas de natureza holística ou eclética no
sentido estrito. Já, por exemplo, misturar psicofármacos diversos (um para cada
sintoma), palpites psicanalíticos “selvagens”, técnicas sugestivas e
aconselhamento,[9]
é uma demonstração da confusão conceitual pseudo-eclética.[10]
Esta postura é característica de quem não apenas desconhece a natureza e os
métodos de cada abordagem, mas, pior ainda, não sabe nem por onde começar.
Ignorar o aspecto simbólico da cura não é apenas um erro, mas é também uma
armadilha, pois uma medicina que pretenda ser biológica ou científicamente
“pura” acaba se vendo carregada de outros simbolismos, o que a torna um campo
fácil para o charlatanismo cientificista. Quando Freud afirmou que todo sonho
correspondia a um desejo, ele trazia uma visão individualizada da vida
inconsciente, ao contrário de José do Egito ou do profeta Daniel, para quem o
sonho correspondia a um desejo de Deus. O próprio ato de interpretar e a
natureza do vínculo que se estabelece têm muito maior relevância do que as revelações
específicas que surgem. Assim, com as suas interpretações, ele não fazia
propriamente uma descoberta científica, mas recuperava um instrumento de
observação para um conhecimento mais completo do homem. E nisso consiste
qualquer saber sobre um sistema complexo
como o ser humano: elaborações metafóricas que procuram guardar uma
certa relação com o conhecimento científico. Certa vez, dando supervisão de
psicoterapia, ouvi um extenso caso em que uma paciente, de formação espírita,
relatara a origem de seus problemas no fato de que o pai era assim, a mãe era
assado, a irmã desse jeito, o marido de outro, etc. Todos os terapeutas presentes
deram as suas opiniões, interpretações, palpites e tudo o mais, de acordo com
as teorias que haviam aprendido e com a sua experiência, ainda que modesta. Lá
pelas tantas, no emaranhado de diversos pontos de vista, perguntaram qual a
minha visão do caso. Na lata,
pontifiquei: “Trata-se de um encosto, sem
dúvida!” Todos riram, entre surpresos e divertidos, imaginando ser uma mera
blague. Aproveitei o clima
descontraído para mostrar que: a) a paciente conseguira mobilizar a todos com o
seu problema, mesmo sem estar ali; b) atribuía a fatores externos toda a
responsabilidade pelo que lhe acontecia; c) esperava passivamente da terapeuta
uma solução completa, como um “cavalo”, e ela, sem o perceber, ia se
“incorporando” à paciente. Assim, a “teoria do encosto” era o melhor insight que poderíamos fazer sobre tudo
o que se passava com ela e a sua relação com o terapeuta e com todo o mundo
mais. A partir daí, considerando essa visão própria do mundo, teríamos
condições de pensar numa estratégia terapêutica coerente, sem deixar de atender
à sua demanda de ajuda nem lhe tentar impor um arcabouço ideológico implícito
em nossas teorias. Não estou dizendo, de forma alguma, que deveríamos trocar
nossos divãs por atabaques, até porque ela procurou um consultório e não um
terreiro. Apenas entendo que, ao sermos mobilizados pelo mundo simbólico do
paciente, devemos pensar na mitologia, ou conjunto de metáforas, que melhor
descreve o que se passa naquela relação, sem prejuízo de quaisquer outras
abordagens. Quando um psiquiatra “biológico”
prescreve um medicamento, mesmo que ele não saiba ou não queira saber, no nível
psicológico ele está participando de uma relação interpessoal – seja
estabelecendo um vínculo, seja prevenindo-o – e também exercendo um papel
psicoterápico, numa relação transferencial; além disso, no nível
sócio-cultural, está-se utilizando da eficácia simbólica. Mesmo se este
psiquiatra fosse um psicanalista, que procura instrumentalizar a transferência,
também se utilizaria desta eficácia simbólica, exatamente da mesma forma que o
“biológico”. Um bom clínico, com uma visão aberta, sem compromisso com teorias
limitantes, compreende perfeitamente esse fato, e tira proveito dele na sua
prática diária. A psicoterapia é plástica: pode ser internalizante ou externalizante,
pode ser cíclica ou contínua, pode ser estreita ou larga, pode ser leve ou
densa, pode ser individual, familiar ou grupal, pode utilizar psicofármacos ou
não. Tentar ser “profundo” a todo custo acaba levando à mesma perda de
perspectiva que tentar ser absolutamente “objetivo”. Ambas as posições são
ingênuas, sem flexibilidade; pela sua “seriedade” feroz – e absoluta ausência
de senso de humor – freqüentemente conduzem a situações à beira do ridículo. A atitude preconizada pela APA
(American Psychiatric Association), cujo poder normatizante abrange todo o
mundo, tende a subordinar o pensamento psiquiátrico aos parâmetros acadêmicos e
“científicos” predominantes. O livro-texto de psicoterapia editado pela APA
(ver Gabbard, 1992), além de estar totalmente estruturado de acordo com o DSM,
exibe todo aquele determinismo americano característico, com uma psicanálise
cheia de enquadramentos e classificações. Nas palavras de Robert Wallerstein
(prefácio, ibidem): “Atualmente é muito difícil obter financiamento
governamental para pesquisas de tratamento psicoterapêutico ou
psicofarmacológico, a menos que estejam inseridas nas categorias nosológicas do
DSM-III...”. Tudo o que se refere à vivência clínica e às psicoterapias de
base psicanalítica deve estar devidamente submetido aos padrões estabelecidos e
“traduzidos” nessa linguagem.[11] Em Harvard, Hobson e Leonard (2001)
falam da crise da psiquiatria atual, e do vazio que ficou após o
desaparecimento da psicanálise como terapia. Mas com aquela mesma superficialidade
típica da APA, insistem nas neurociências como resposta ao mercantilismo, ao
cientificismo e às HMOs. Afinal, a fé (na Bíblia, na Ciência, no Mercado) é a
cura para tudo. Já em 1925, Abraham Flexner o próprio mentor da revolução
científica positivista no ensino médico acadêmico americano – ocorrida no
início do século XX – reconhecia e lamentava a falta de uma melhor formação
cultural e filosófica dos estudantes[12].
Ao contrário do “publish or perish”
de hoje, ele recomendava “Think much, publish little”. Hoje, a
universidade globalizou-se e burocratizou-se de tal forma que parece ter
instituído uma espécie de “publish much, think little”, em que gente que
mal conhece o vernáculo produz dúzias de artigos que bem poderiam ter sido
feitos por um programa de computador. Samuel Johnson, que dizia não conversar
com pessoas que escreviam mais do que tinham lido, talvez ficasse mudo em
nossos dias. Quando
vemos na televisão um programa como “The Dog Whisperer” (O Encantador de
Cães), em que um simples tratador de animais desvenda e resolve com maestria e
inegável sucesso os mais diversos problemas comportamentais dos cães, desponta
aos nossos olhos a absurda situação da psiquiatria atual. Cesar Millan, um
mexicano baixinho e simpático, entra na casa das pessoas e – antes de querer
resolver o problema ou enquadrar o cão num diagnóstico – faz a observação do phainomenon em que
se constitui a relação entre o cão e os donos da casa. Ele vê toda a situação
como o animal a vê: Quem lidera esta alcatéia? Qual o meu papel aqui? Ao mesmo
tempo ele percebe como as pessoas da casa tratam o cão; geralmente a partir dos
seus próprios desejos e conflitos, sem nada entender do que se passa entre o
animal e a família. A prática de Millan torna evidente que nenhum modelo prévio
dá conta da rede relacional que se forma em cada dupla cachorro-dono, que tem
que ser compreendida fenomenologicamente, in loco. Os psiquiatras, no
entanto, continuam insistindo desesperadamente em aprisionar suas mentes em
cartilhas e catecismos. Na Inglaterra, J.Cutting (1997) considera que as
principais correntes de pensamento psicológico se esgotaram como modelos
explicativos: o behaviorismo, a psicanálise e o cognitivismo, e que a
psicopatologia e a filosofia se encontram através dos conhecimentos proporcionados
pela neuropsicofisiologia. Procura demonstrar que as observações mais profundas
de alguns filósofos encontram respaldo nas observações neuropsicológicas, assim
como os quadros psicopatológicos, que sempre desafiaram todos os modelos
explicativos. De acordo com ele, “...
the various elements of human duality,
identified, in particular, by Schopenhauer, Bergson, Scheler, and
Merleau-Ponty, are mirrored by the differences between the two hemispheres.”
(Principles of
Psychopathology, p. 497) Observe-se que as considerações de
Cutting apóiam-se em conhecimentos neuropsicológicos consistentes, assim como
em observações psicopatológicas profundas. Apesar do grande arrôjo de suas
propostas, ele não perde a perspectiva fenomenológica nem se lança em especulações
cientificistas. Uma neuropsicologia solidamente constituída poderia colaborar
para o entendimento de questões tão difíceis como o problema do inconsciente
intencional, que separou a psicanálise de fenomenologistas como Sartre e
Binswanger. É possível que o estudo de certos aspectos funcionais dos
hemisférios cerebrais na constituição de uma mente dúplice possa esclarecer
algo que nem a filosofia nem a psicologia têm conseguido. No meio psiquiátrico da França, à
parte os trocadilhos, jogos verbais e a logorréia de certos lacanianos (sejam
pós, meta ou translacanianos) e de alguns outros neo-sofistas, parece que está
sendo criada uma perspectiva séria de interação (não integração) entre a
neuropsicologia, a psicanálise e a antropologia para a qual, naturalmente, a
observação da realidade clínica tem que ser a única base aceitável. Talvez não
seja de todo ingênuo esperar que essa postura possa vir paulatinamente a
substituir as concepções estereotipadas do sectarismo. Afinal, os sofismas e as
idéias inconsistentes podem eventualmente ser sedutores, mas nunca se mantém
para sempre. Podemos ainda sustentar um certo otimismo ao constatarmos que se a
psiquiatria ainda não morreu, provavelmente não morrerá tão cedo, talvez por
ser absolutamente insubstituível. O fato é que nem a neurologia, nem a
psicologia, nem o eterno charlatanismo têm conseguido suprir suficientemente as
necessidades humanas. E quanto à chamada
“neuropsicanálise”? Ao que se vê, corre o sério risco de se tornar um junção
mal-costurada de neurofisiologia superficial com palpites psicanalíticos sem
fundamento; uma quimera que some os problemas de ambas sem resolver nenhum ou
uma psicopatologia sem psicopatologia.. Não se pode construir uma teoria
consistente da subjetividade humana a partir de observações precárias ou de
enfoques enviesados. A antropologia nos mostra que toda e
qualquer medicina, seja aquela praticada por feiticeiros em plena selva, à mais
moderna e sofisticada, tem necessariamente um aspecto simbólico e deve atender
tanto à demanda do sujeito doente que sofre como à demanda da sociedade que se
vê ameaçada pela doença. Quando tentamos praticar uma medicina científica –
expurgada de toda a contaminação ritualística – não apenas abandonamos o doente
e a sociedade às suas respectivas angústias, mas expomos ambos ao
cientificismo, charlatanismo que procura satisfazer a essas necessidades
através de uma mise-en-scène
tecnológica. O papel simbólico do médico não pode jamais ser abandonado, como
querem os psiquiatras biológicos, sociais e psicanalistas, preconizando o
descompromisso e a diluição da responsabilidade clínica.[13]
Até a tradicional Ética Médica vem sendo transformada numa formalista e
burocrática “Bioética”, que se afasta de Hipócrates ao mesmo tempo em que se
aproxima daquela “política de direitos humanos” vinculada à moralidade
individualista igualitária, com toda a sua enorme dificuldade em suportar as
diferenças. Essa postura setorizante certamente
tem um forte papel no afastamento dos estudantes de medicina da área psiquiátrica.
Pesquisas americanas demonstram que o nível de engajamento nos programas atuais
de residência em psiquiatria encontra-se atualmente entre 2% e 3%, bem abaixo
dos 12% da década de 50. Um estudo publicado no American Journal of Psychiatry
(1999;156:1397) dizia que os estudantes de medicina estavam interessados em
carreiras médicas que proporcionem um trabalho interessante, que ajudem os
pacientes, que tragam desafios intelectuais e que sejam baseadas em dados
científicos. Nada disso parece ser encontrado na psiquiatria atual. O mais
irônico nesses dados é que a psiquiatria globalizada
atual se propõe justamente a ser “mais científica” e mais próxima à medicina do
que se propunha a psiquiatria da década de 50. Paradoxalmente, naquela época em
que a psiquiatria se mostrava peculiar, distinta das outras especialidades, e
supostamente “menos médica”, ela atraía mais alunos de medicina do que
agora. O cerne do problema parece estar no
conceito moderno do que é “medicina” e “modelo médico”. Já vemos atualmente, em
toda a medicina, um claro apelo a um retorno ao papel simbólico do médico, sob
a ameaça de se provocar uma verdadeira invasão do campo médico por curandeiros
e charlatães (incluindo os tecno-charlatães)
de toda a espécie, que correm a suprir essa necessidade humana da cura. Aos
inimigos da boa prática psiquiátrica – dos antimanicomiais histéricos aos
garotos-propaganda das empresas farmacêuticas – interessa a destruição do
espírito crítico e desassombrado que norteia a verdadeira formação médica, entregando
nossos pacientes, transformados em usuários,
aos burocratas e aos mercenários. Não é à toa que se aliam com tanta
facilidade, nos congressos e sociedades, num aparente paradoxo. No campo específico da psiquiatria,
não serão as pobres equipes multidisciplinares
que irão substituir a carência de uma atitude
transdisciplinar, que poderia ser chamada de antropologia clínica, a qual não pode se dar ao luxo de desconhecer
nenhuma das necessidades humanas, concretas ou abstratas, práticas ou
simbólicas. Numa primeira etapa de seu desenvolvimento, a etnopsiquiatria criou
o conceito de culture-bound syndromes.
Mais tarde esta postura foi encarada como etnocêntrica, pois pressupunha a
existência de culture-free syndromes.
Este conceito, se bem entendido – não significa a inexistência de fatores
biológicos e psicológicos, mas apenas a sua contextualização cultural – é a
chave para o estudo sério da psicopatologia. Atualmente a psiquiatria
antropologicamente sensível se mostra como a única psiquiatria viável, pois
trabalha com os quadros nosológicos de uma forma compreensiva, sem relativismos
radicais paralisantes (como muitas etnopsiquiatrias), sem a suposição ingênua
de que a doença mental não existe (como a antipsiquiatria), sem esquemas
explicativos deterministas (como a neuropsiquiatria e também a psicanálise) e
sem abandonar a relação médico-paciente e a abordagem clínica por exaustivas
listas de sintomas (como o DSM-IV). Certos sociólogos tendem a adotar uma visão
“alternativista” da medicina, ignorando que a proliferação da medicina alternativa se dá muito mais
por esta se pretender “medicina” do que “alternativa”. Isto evidencia que a
sociedade ainda precisa de médicos, e que não se satisfaz apenas com health-care providers, burocratas
conferidores de check-lists e
preenchedores de prescriptions. Na
falta de médicos, acaba-se recorrendo aos terapeutas
alternativos e aos inevitáveis charlatães de plantão, que assumem
gostosamente o aspecto simbólico que vêem negligenciado. Discursos New Age, ambíguos, pseudo-holísticos,
pseudo-científicos e pseudo-filosóficos (como os de Maturana et caterva) substituem o conhecimento,
face ao caos epistemológico em que a formação médica se encontra. Uma psiquiatria antropológica não se
pode desvencilhar da perspectiva clínica pragmática, cuja busca do conhecimento
nunca deixa de lado o seu objetivo fundamental que é o bem-estar do doente.
Pois é este doente, com suas queixas e sua irredutibilidade, que impede o
psicofarmacologista, o psicanalista e o psiquiatra social de se assentarem
comodamente nas suas poltronas acadêmicas. Como observou Tobie Nathan (Psychanalyse
païenne, 1995, p.149): “Pour comprendre le fonctionnement de ces
systèmes thérapeutiques, il est urgent que les recherches soient entreprises
dans une perspective non pas seulement anthropologique, mais aussi clinique.”[14]
Esta vinculação com a clínica é única a maneira de se evitar a formação de
guetos, pois todas as vezes que se tenta criar um campo transdisciplinar, surge
rapidamente uma tendência a torná-lo mais uma disciplina, ou seja, uma parte de
um todo multidisciplinar, uma nova fatia na pizza acadêmica. A máquina
universitária, da qual se espera a produção de conhecimento, é constituída por
engrenagens absolutamente rígidas e setorizadas; novos nichos podem eventualmente
ser criados, mas os espaços nunca podem ser transpostos. A forma se faz mais
importante que o conteúdo e a metodologia interessa mais que o resultado. Por exemplo,
a Association
for the Advancement of Philosophy and Psychiatry faz questão de dizer, em
seu web site: "We are not interested in pedantry but rather
in the concrete development and application of knowledge from both fields." No entanto, a sua revista "Philosophy, Psychiatry and Psychology" é caríssima, e todos os
assuntos que apresenta são tratados de maneira bastante acadêmica, que
dificilmente interessaria ao psiquiatra clínico Sente-se o mesmo ar exclusivista – e
excludente – nos livros, revistas ou conferências de etnopsiquiatria. Além do
relativismo radical, que torna a prática médica um equivalente tout court das práticas tribais ou
folclóricas, a própria linguagem tende para o jargão dos iniciados em ciências
sociais, pouco acessível ao médico. Têm-se a impressão de que os autores buscam
um lugar na academia, antes de qualquer outra coisa. Parecem querer se situar,
muito mais do que descobrir, e assim questões como diagnóstico e tratamento só
lhes dizem respeito como virtualidades culturais, de existência relativa. Suas
pesquisas se encontram muito mais nos níveis multi e interdisciplinares do que
no transdisciplinar, e a sua esperança parecer ser a de – como pioneiros
acadêmicos – criar uma nova disciplina universitária, e não a de enriquecer a
psiquiatria. Essa atitude, naturalmente, os mantém totalmente afastados dos
psiquiatras clínicos, e impede qualquer possibilidade de colaboração, bem ao
contrário do que preconiza o seu discurso. No correr dos milênios, o
conhecimento humano nunca correu de forma livre e fluida na sociedade, mas se
deu através de segredos e mistérios, que eram rigorosamente preservados e só
passados adiante para os iniciados, após anos de preparação. Sociedades secretas
guardavam os Mistérios Órficos, os Mistérios Mitraicos, os Mistérios de
Elêusis. De descobertas astronômicas a receitas culinárias a tradição humana no
repasse das informações sempre se deu por meio de segredos, cochichados ao pé
do ouvido de pessoas escolhidas a dedo. Do “secret
du Chef” dos restaurantes finos aos
truques de magia e à tecnologia bélica, tudo que é especial envolve
segredos. Não é à toa que nenhum filme de aventuras dispensa inscrições
ininteligíveis, pergaminhos obscuros, textos ocultos e livros secretos, uma
garantia de sucesso há dezenas de séculos. Mysterium
Fidei. O desenvolvimento da ciência moderna
no século XVIII permitiu o acesso de todos ao conhecimento, quebrando os
cadeados que o restringiam, laicizando-o e divulgando-o. A universidade foi
passando de maçonaria a instituição pública. Esta acessibilidade tinha que ser
mantida ativamente, no entanto, pois há uma forte inclinação inercial da
universidade no sentido de tender sempre a retornar à sua origem acadêmica,
religiosa e discricionária, sob outra forma, outra roupagem, outro
discurso. Toda academia, naturalmente, sempre
tendeu e tenderá a se dedicar muito mais à preservação da sua estrutura de
poder do que à produção de idéias. Nos últimos tempos, porém, essa máquina cuja
função precípua parece ser a de impedir o pensamento crítico vem sendo
aperfeiçoada para se tornar mais insidiosa e eficaz, prescindindo dos velhos
métodos excludentes e repressivos. Ela age produzindo algo que toma o lugar da
crítica, assemelhando-se a esta, num simulacro sutil e precoce. Assim,
poder-se-ia dizer que o meio acadêmico tende a agir de forma análoga à das
neurotoxinas que bloqueiam neurorreceptores agindo como falsos transmissores. É
curioso observar que no processo educativo atual, cada jovem universitário é
cuidadosamente instruído na crítica sem que jamais tenha adquirido qualquer
conhecimento, por superficial que seja, do objeto criticado. Qualquer garoto
rebelde pode então ficar feliz em ser uma “ovelha negra”, sem perceber que
nesse rebanho, todas as ovelhas são negras, e balem da mesma forma. Voltando à vaca fria, e reiterando
um compromisso visceral com a prática médica e o verdadeiro “modelo” médico,
tentei demonstrar que a psicopatologia fenomenológica – por não ser uma teoria,
nem uma escola, mas uma postura ante a clínica – que teria condições de
proporcionar não a tal integração do pensamento psiquiátrico que vem sendo
esperada e dada como meta em todos os congressos científicos, mas a
profundidade na observação e a coerência na prática. Desenvolvendo uma atitude clínica
fenomenológica, permitiríamos que mundo empírico aristotélico fixasse à terra
firme da clínica o mundo platônico das idéias, impedindo que a tendência ao
fundamentalismo isolasse a psiquiatria em setores estanques e estéreis, em
permanentes jihads uns contra os outros. Por esse caminho, fora da
idolatria do método, a antropologia psiquiátrica ou etnopsiquiatria não seria
apenas mais uma das dezenas de subespecialidades psiquiátricas – aquela que
trata das feitiçarias e das síndromes exóticas – mas estaria no cerne, na
própria essência dessa visão transdisciplinar. [1]"Em
mar aberto, um cefalópode não oferece resistência. Para lutar, é preciso um
ponto de apoio. Mas cuidado ao mergulhador que lhe dê a oportunidade de se agarrar
às rochas por dois ou três tentáculos!" [2] “Pontifico e
sou contestado, assim me divirto neste conflito de opiniões e sentimentos.” [3] Refiro-me
aqui ao ιatroV (iatros) – o médico no sentido grego da palavra – e não apenas ao
portador de um diploma de medicina. [4] Baseadas em
supostos deficits, retornos aos níveis inferiores e atividades
compensatórias. Daí termos como “primário”, “primitivo”, “regredido”,
“indiferenciado”, dementia præcox, hebefrenia, hipofrontalismo, etc. [5] Como disse o
neurocientista Marco Iacoboni, pesquisador dos neurônios-espelho: “ ... ideological
individualistic positions ... have made us blind to the fundamentally
intersubjective nature of our own brains” (“posições ideológicas
individualistas … fizeram-nos cegos à natureza fundamentalmente intersubjetiva
dos nossos cérebros”). [6] "Contos de fadas não dizem às crianças que dragões existem. As crianças já sabem que dragões existem. Contos de fadas dizem às crianças que os dragões podem ser mortos." [7] Talvez não
seja supérfluo ressaltar que esta postura fenomenológica - que procura
compreender o homem como um todo - se deve sempre apoiar numa sólida
experiência e num profundo conhecimento técnico. Assim, ela absolutamente nada
tem a ver com muitas das posturas ditas “ecléticas”,
que desnorteadas, oscilam entre “saladas”
medicamentosas, pregações místicas ou religiosas, interpretações psicanalíticas
“selvagens” e mesmo práticas “alternativas” ou soi-disant “holísticas”. [8] "O importante é utilizar um enquadramento
conceptual que não mais nos obrigue a escolhas ideológicas entre diferentes
pontos de vista, sociológico, psicológico ou orgânico, mas sim que nos permita
integrar essas abordagens." [9] Sem falar
nas terapias psiquiátricas
ortomoleculares e homeopáticas. [10] Desta
postura também nem sempre escapam os psicólogos, pois existem aqueles que, não
podendo legalmente medicar, não hesitam em aplicar pseudo-medicamentos, como
“florais de Bach”, cromoterapia, tarô, mapas astrais, etc... [11] Como já vimos, o segredo da
gigantesca cadeia de fast food
McDonald’s, que movimenta bilhões de dólares pelo mundo, é a mais absoluta
rigidez em tudo o que se refere aos produtos do seu cardápio: quem viaja se
espanta com o fato do Big Mac ter
sempre exatamente o mesmo gosto, seja aonde for. O mesmíssimo
princípio se aplica aos DSMs. [12] "Scientific medicine in [13] É comum os
pacientes nos dizerem no consultório, que sempre que surge um problema grave e
imediato na família, como uma morte ou uma doença fatal ou incapacitante, eles
saem da sua astenia e conseguem – superando os seus problemas neuróticos –
assumir tarefas e resolver todos os problemas com surpreendente desenvoltura.
Como disse St.-Exupéry, o desespero e a responsabilidade não se misturam. Assim
a perplexidade, a tibieza e a frouxidão teórica também não são compatíveis com
a medicina. [14] “Para
compreender o funcionamento desses sistemas terapêuticos, é essencial que as
pesquisas sejam feitas numa perspectiva não apenas antropológica mas também
clínica.” (Psychanalyse
païenne, 1995, p.149)
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