Volume 15 - 2010 Editor: Giovanni Torello |
Fevereiro de 2010 - Vol.15 - Nº 2 Psicologia Clínica
OS TRÊS ELEMENTOS ESSENCIAIS DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: ENCONTRO NO COTIDIANO, INTUIÇÃO E MOVIMENTO.
Braz Werneck Resumo Este estudo tem como objetivo principal propor a intuição, o encontro no cotidiano e o movimento como os três pilares do Acompanhamento Terapêutico. A partir de uma conceituação criteriosa, buscamos discutir sobre as influências desses três elementos na condução dos casos clínicos. Deve-se observar a dificuldade de uma construção conceitual eficaz. Para reduzir essa dificuldade, propomos uma conceituação que leve em conta a essência necessária do AT, não apenas os seus atributos. A partir do conceito construído, passamos a uma exploração teórica e prática dos três elementos aqui citados como essenciais. Sugerimos dois tipos de movimento: concreto e subjetivo como movimentos que ocorrem com pacientes, terapeutas e familiares. Demonstramos, então, a importância do encontro no cotidiano para que esses movimentos possam acontecer. Para o caso da intuição, uma breve revisão de literatura sobre o diagnóstico fenomenológico da Esquizofrenia que sirva para unir o Acompanhamento Terapêutico ao método fenomenológico proposto por Husserl. Espera-se que este trabalho possa auxiliar e motivar novos estudos sobre o tema, que carece de uma atenção teórica mais contundente.
Descritores: Acompanhamento Terapêutico, Intuição, Cotidiano
Introdução
O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma das principais atividades clínicas em saúde mental nos dias de hoje. O seu caráter próximo da informalidade traz grandes soluções para o tratamento dos pacientes. Em contrapartida, nos meios clínico e acadêmico o AT ainda experimenta certa marginalização, como atividade para profissionais pouco experientes ou, até mesmo, atividade para profissionais não especializados. Para que se comece a resolver este problema, sugerimos estabelecer a conceituação mais fidedigna possível do serviço. Assim, poderemos saber o que estamos indicando e explicar a necessidade de um profissional qualificado para lidar com toda a produção subjetiva dos pacientes em seu ambiente mais confortável (sua casa, ou mesmo a rua). Por ser uma atividade que se desenvolve majoritariamente fora dos espaços institucionais, o AT precisa de algum respaldo teórico e prático, para que não acabe se transformando em um trabalho de dama de companhia, ou como se costumava chamar o serviço em seu início: serviço de babá de psicóticos. O respaldo prático deve ser construído a partir do trabalho em rede. O acompanhante terapêutico deve estar em constante contato com os médicos que trabalham com o paciente. O trabalho não pode ser estanque, independente, pois ficará fragmentado, desagregando ainda mais o próprio paciente. O respaldo teórico deve ser construído a partir de uma sólida conceituação do AT e de seus princípios gerais. Assim sendo, propomos, como objetivo deste estudo, uma conceituação mais contundente do AT, bem como a exploração dos elementos que consideramos os mais importantes nessa clínica: o encontro no cotidiano, a intuição e o movimento.
Conceituação e problemas
Consideramos imprescindível uma conceituação adequada sobre o Acompanhamento Terapêutico (AT) para que sejam alcançados objetivos clínicos. A conceituação do AT apresenta alguns problemas sutis que merecem destaque neste trabalho. Uma parte significativa das elaborações teóricas a respeito desta prática fala de uma clínica diferenciada, que crie possibilidades reais de vida não doente (Rolnik, 1994). A expressão vida não doente pode assumir vários significados, mas o que nós assumimos como mais importante é o de vida inserida socialmente e em constante movimento concreto e subjetivo, com possibilidades de melhoria em sua qualidade, além de respeitar as necessidades e limitações individuais. O AT vem a ser uma das ferramentas com que pode contar o profissional de saúde mental, no manejo clínico dos casos que acompanha. Essa “ferramenta” caracteriza-se pela busca de melhoria na qualidade de vida, promoção de saúde, ou, em dois termos cunhados por Pitiá e Santos (2005), “invenção de saúde” e “reprodução social” do paciente. Entretanto, não nos parece suficiente definir um termo por suas atribuições, apenas. Sugerimos que um conceito deve abranger, além dos atributos (que dizem para que serve a “coisa a ser conceituada”) a essência necessária ou substância do elemento em questão. Quando se procura a essência necessária ou substância de alguma coisa, busca-se o que caracteriza esta coisa, o que a diferencia de todas as outras, o que ela não pode não ser. Nas palavras de Abbagnano, uma distinção clara entre essência e substância (ou essência necessária):
“Por este termo [ESSÊNCIA], entende-se em geral qualquer resposta à pergunta: o quê? (...). Algumas dessas respostas limitam-se a indicar uma qualidade do objeto, ou um caráter que também poderia não ter. Outras parecem indicar algo mais, um caráter que qualquer coisa não pode não possuir e que, por isso, é um caráter necessário do objeto definido. Nesse último caso, a resposta à pergunta ‘o quê?’ não enunciou simplesmente a essência da coisa, mas sua essência necessária ou sua substância e pode ser assumida como sua definição.” (2007, p. 417)
De acordo com o que temos observado na clínica, um conceito que demonstrasse com propriedade a substância e os atributos do AT, evitaria desentendimentos importantes. Quantos de nós já não sofremos com perguntas aparentemente simples como “o que é a Psicologia?”. Tais situações de constrangimento podem ser evitadas quando se tem a exata noção do que é aquilo que se faz. De acordo com a nossa experiência, o Acompanhamento Terapêutico ainda é visto, em alguns contextos, como uma prática sem nome, inespecífica, com uma visão desinteressada. Por ser uma atividade relativamente nova, tem enfrentado uma variedade nem sempre eficiente quanto à sua conceituação. Faz-se necessário explorar o terreno dos conceitos de Acompanhamento Terapêutico a fim de elucidar algumas questões para as quais não tem sido dada a atenção necessária. O Acompanhamento Terapêutico é alguma coisa; algo mais do que uma ferramenta. Para nós, ele é uma atividade clínica que se utiliza dos elementos do cotidiano para atingir os seus objetivos terapêuticos. Para que esta definição fique bem entendida, devem ser estabelecidas as relações, em cada caso, entre os elementos do cotidiano e os objetivos terapêuticos. Que elementos serão esses? Que objetivos? Para cada caso, a resposta será diferente. Depois disso, vêm as atribuições. A maior parte dos estudiosos do AT fala sobre funções de movimento, articulação espaço-temporal e outras ideias relacionadas a uma forma complexa e crítica de lidar com o sujeito que padece do chamado sofrimento psíquico. Porto e Sereno (1991), membros do Hispital-dia A Casa, em São Paulo, fazem o que eles mesmos chamam de tentativa de definição em forma de verbete, nestas palavras:
“Acompanhamento terapêutico: prática de saídas pela cidade, com a intenção de montar um “guia” que possa articular o paciente na circulação social, através de ações, sustentado por uma relação de vizinhança do acompanhante com o louco e a loucura, dentro de um contexto histórico.” (Equipe de at’s do hospital-dia A Casa, 1991; p. 30).
Por nossa experiência, e por sabermos que os autores não dizem que o AT seja apenas isso, autorizamo-nos a acrescentar o que entendemos ser a substância do conceito: atividade clínica exercida no cotidiano, pelo qual é mediada e potencializada. Um outro acréscimo feito por nós a essa definição diz respeito ao caráter de rede necessário ao AT. Sem um respaldo profissional de equipe, ou sem um respaldo institucional, essa clínica se torna, na grande maioria das vezes, infrutífera, em relação à melhoria da qualidade de vida do paciente. Vale ressaltar que as definições que nós, acompanhantes terapêuticos, formulamos sobre o AT são a cada dia reformuladas por nossa experiência clínica. Existem definições que tornam a compreensão do assunto ainda mais difícil. Longe de apresentar uma preocupação com essência necessária e atributos, algumas delas se tornam grandes mistérios, jogos de palavras que em muito se distanciam de uma objetividade conceitual. Nas palavras de Marques:
“O Acompanhamento Terapêutico, segundo o meu ponto de vista atual, é um recurso que permite ao psicótico ‘estar’ no social, não lhe garante ‘ser’ no social; no entanto, ’estando’, pode perceber que ‘não é’ à medida que reconhece aqueles que ‘são’.” (Marques in Carvalho, 2004. p. 21)
Mais uma vez, a ideia não é rechaçar por completo a definição apresentada. Entretanto, fica claro o jogo de palavras utilizado pelo autor, principalmente, por conta do (ab) uso das aspas no meio do texto. Cabe ressaltar, para que se faça justiça, alguma preocupação com o tratamento dispensado ao sujeito psicótico no caso do AT. Ainda assim, buscamos uma definição mais simples e, ao mesmo tempo, mais abrangente. Dentre as definições que são encontradas na literatura, há algumas (poucas, é verdade) que privilegiam a substância do AT. Umas das mais próximas do que defendemos aqui como definição completa é a que Carvalho propõe:
“O Acompanhamento Terapêutico é uma clínica que acontece no cotidiano, nos mais variados espaços e contextos. Entre as suas características mais marcantes estão o resgate e a promoção da circulação do paciente pela cidade, construindo ou simplesmente explorando redes preexistentes. Predominantemente, o AT tem sido um recurso utilizado no tratamento de pacientes diagnosticados como psicóticos, sendo entretanto, cada vez mais indicado para pacientes com outros diagnósticos” (Carvalho, 2004. p 23)
Para o caso desta última definição, temos os elementos necessários: substância e atributos. Entretanto, o cotidiano aparece apenas como lugar onde acontece o atendimento. Para nós, o cotidiano é o grande diferencial da clínica do AT. É um cotidiano ativo, mesmo quando inerte, mesmo quando sem vida. Sem o cotidiano do paciente não poderia existir o trabalho. Cada um dos elementos da vida do paciente exerce influência em suas articulações subjetivas. O espaço tem a sua função, os animais de estimação têm a sua função, aviões, shopping centers, pessoas, calçadas, ônibus, baratas, novelas. Tudo isto é parte de um quadro que se movimenta constantemente. Acontece que o movimento assimilado não é o mesmo para duas pessoas diferentes. Acompanhante e acompanhado experimentam, muitas vezes os mesmos objetos, mas frequentemente, sensações diferentes. Assim, podemos erigir uma das nossas definições de Acompanhamento Terapêutico:
Atividade clínica exercida no espaço-tempo cotidiano, mediada e potencializada pelo mesmo, tendo como instrumentos a intuição e a relação terapêutica para remissão de crises e produção de movimento saudável (concreto e subjetivo), visando a um resgate existencial e ocupacional do paciente.
Esta definição contempla o que entendemos como elementos essenciais do AT: o encontro no cotidiano, a intuição e o movimento. Elementos encarados por nós como imprescindíveis para que sejam atingidos os objetivos, mediante as estratégias decididas para cada caso. A seguir, procuramos ilustrar a importância desses três elementos para a clínica de que aqui falamos.
A clínica de dois movimentos e do encontro no cotidiano
Uma das principais propostas dos serviços substitutivos em saúde mental, dentre os quais podemos situar o AT, é a de conferir um outro lugar para a Loucura na sociedade. Para isso, almeja-se não uma melhoria das instalações de hospitais psiquiátricos, mas a busca de possibilidades de convivência com pessoas tão diferentes. De acordo com Lobosque (2003):
“Trata-se de encontrar uma nova habitação para a Loucura – o que não significa, naturalmente, reformar ou remodelar os espaços que os chamados loucos deveriam forçosamente habitar, e, sim, diferentemente, tornar cada vez mais fluidas, mais transitáveis, mais flexíveis, as fronteiras entre as instituições destinadas a eles e a sociedade onde se desenrola a vida e o destino de todos nós, loucos ou não.” (p. 17).
Não há como providenciar essa modificação de ambiente, de espaço simbólico, sem que se promova uma modificação em todo o entorno do paciente. O Acompanhamento Terapêutico tem como peculiaridade oferecer a oportunidade para mudanças subjetivas importantes. Essa oportunidade não é dada apenas ao paciente, mas aos familiares e ao próprio profissional. O AT proporciona dois tipos de movimento: concreto e subjetivo. OS dois movimentos estão entrelaçados à concepção do encontro no cotidiano. Só acontecem da forma que acontecem porque o cotidiano do paciente é privilegiado na atuação do profissional. O primeiro (que chamamos aqui de movimento concreto) é bastante óbvio e simples, embora tenha desdobramentos cruciais para o tratamento do sujeito. O AT pode ser chamado de clínica do movimento porque tem um espaço clínico, um ambiente terapêutico privilegiado: o mundo do paciente. A circulação nas dobras desse mundo, que é experimentado de maneiras diversas por cada um de nós, mas é experimentado de maneira muito mais singular pelo paciente, nos oferecerá oportunidades de elaboração, conflitos, resoluções, aprendizado etc. O movimento concreto só é terapêutico por causa da imprevisibilidade do cotidiano e da técnica da qual deve lançar mão o terapeuta quando possível e necessário. Se fosse, por exemplo, realizado um trabalho de caminhadas, todos os dias de atendimento, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas e sem nenhum acontecimento surpreendente, não haveria longa validade nesse trabalho. Eis o motivo pelo qual o cotidiano é a mola propulsora do tratamento pelo movimento. A relação corpo e mente deve ser considerada também quando falamos do movimento concreto no AT. Em nossa experiência, podemos observar a todo o momento, as diferenças que o estado de movimento em que o paciente se encontra provoca em seus pensamentos e em sua forma de se relacionar. Para cada caso temos uma configuração diferente, mas todos os pacientes demonstram alguma diferença psicológica ou relacional de acordo com o movimento que faça. Não há correlação definida, um paciente pode sentir-se mais ou menos feliz, pode ficar mais ou menos alterado com o movimento de uma caminhada, ou uma ida ao supermercado, mas essa diferença será material de trabalho, porque é diferença, coisa nova na rotina adoecida do paciente. Por ser coisa nova, pode ser trabalhada para que seja saudável. O encontro cotidiano com o paciente, mediado pelos movimentos diferentes realizados na convivência, dará acesso a essa coisa nova, que será elemento para a produção de outras atitudes, outros comportamentos, outros pensamentos. Enfim: outra subjetividade. O outro tipo de movimento propiciado pelo AT é o que podemos chamar de movimento subjetivo. Atinge os elementos envolvidos de formas diferentes, mas igualmente contundentes. O paciente, por ser o foco do tratamento, pode se movimentar subjetivamente a partir do estabelecimento de uma relação não doente e não reforçadora da doença mental. O terapeuta vai mostrar ao paciente que é possível viver neste mundo estranho sem se privar de coisas necessárias e prazerosas. O movimento subjetivo atinge os familiares no momento em que começam a aparecer as primeiras produções diferentes do familiar adoecido. Não raro, podemos observar na clínica, situações onde as famílias passam a compreender melhor o quadro clínico do doente e, a partir de então, podem lidar com muito mais segurança e eficácia com os problemas decorrentes da doença mental. Vale ressaltar que não é uma questão de falta de orientação ou informação. Observamos, em determinados momentos, que os familiares precisam de uma segurança que só o profissional pode dar; por exemplo, para uma mãe sair com um filho autista, adulto, com estereotipias bizarras para um supermercado. Quando o familiar presencia e vivencia, não apenas observando, a resolução de algum problema causado pela eventual inadequação do paciente, pode passar a se perceber de outra maneira em relação ao quadro clinico daquele doente. Em momentos futuros, poderá a própria mãe sair com seu filho, sem a necessidade da presença de um profissional. Em relação ao profissional, o movimento subjetivo provocado pela clínica do AT se manifesta, talvez, em sua forma mais apaixonante. Parece-nos que paixão é realmente a palavra mais indicada. Como entender a rotina de um profissional que passa trabalhando as horas em que a maioria de seus convivas está descansando? Em nosso trabalho, geralmente, os momentos de nada fazer, de simplesmente relaxar se transformam em terreno fértil para a mais rica produção e o mais significativo deslocamento em direção a uma vida mais sadia e mais autônoma. Não há motivos para pensar que o at (acompanhante terapêutico) estude alguns anos na faculdade planejando passar vários de seus domingos e feriados em companhia de seus pacientes. Não é assim! Tem que haver um apaixonamento pela clínica. Entre outras razões, porque a profissão de acompanhante terapêutico é ainda muito pouco reconhecida e muito mal remunerada. Pessoas que não podem pagar pelo serviço, não têm acesso a ele pela saúde pública, porque ainda não há uma mentalidade governamental interessada em incluir o AT na malha dos profissionais de saúde regulamentados, como médico, psicólogo, enfermeiro etc. Voltando a falar sobre o movimento subjetivo que ocorre no profissional, é exatamente o apaixonamento. Qual será a natureza desse apaixonamento pela clínica? A Equipe de ats do Hospital dia A Casa ressalta um ponto muito interessante:
“...o acompanhante terapêutico (...) tem que se mexer dentro de uma contradição essencial. Por um lado, seu profundo sentimento de afinidade, sua necessidade de encontro com todas as singularidades assassinadas, marginais, alternativas. Para quê? Para poder descobrir isso em si mesmo, desenvolver a sua própria singularidade, inventividade, produtividade.” (1991. P. 82).
Qualquer apaixonamento é uma grande mudança. No caso do AT, o profissional acaba descobrindo em si mesmo motivações com as quais nem sonhara, experimentando uma nova relação com as suas próprias contradições. Tais contradições se tornam produtivas quando o trabalho acontece. O terapeuta pode ser quem detém o saber, pode ser o que nada sabe, porque as regras da rua são diferentes. A liberdade é cultivada e não vigiada, como no ambiente ambulatorial. Ambições são em nós despertadas. Procuramos fazer com que sejam ambições legítimas, mas são ambições. Trata de pessoas intratáveis, ser admirados por nosso empenho o trabalho etc. Tudo isso acaba se transformado em potência criadora de novas possibilidades, para nós e para os pacientes. Saímos em busca do reconhecimento profissional, da recompensa financeira e votamos com uma experiência de vida concentrada, onde um ano se vive em uma semana. O aprendizado é indescritível, mas não passa despercebido, pois provoca mudanças, movimento. Barreto nos traz uma citação onde aparece sintetizada uma concepção que pode ser comparada ao sentimento e às mudanças que ocorrem na vida de um at, quando começa tal aventura:
“Neste meio tempo, solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem... e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe martelou, que o pobre se determinou a sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé para a mão ganhasse alguma ilha, e o deixasse por governador dela. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo.” (Cervantes, 1605; P. 53 in Barreto, 1998; P. 27).
A motivação é essencial para qualquer projeto. O que se ressalta aqui é que o projeto inicial do profissional sempre se transforma porque o próprio profissional se transforma, no momento de encontro com cada um de seus pacientes. Vale dizer ainda, que não é um processo amenizado pela experiência, pois o at não vai parar de se sentir em um lugar completamente novo a cada paciente que conheça. As pessoas são completamente diferentes e seus atos e suas interações são imprevisíveis. Este é o cerne de todo o apaixonamento pelo trabalho e de todo o movimento que o profissional vai ser obrigado a realizar.
Acompanhamento Terapêutico e Esquizofrenia: a clínica da intuição
A concepção de que a intuição deva ser considerada como um dos principais instrumentos no diagnóstico psiquiátrico não é unanimidade. Na clara diferença de vertentes da psicopatologia, um dos fatores preponderantes parece ser o fator cultural. As referências em psiquiatria na América do Norte são obviamente mais pragmáticas do que as referências europeias. Para que sejam descobertos os motivos, devem ser considerados entre outras coisas os processos de formação das culturas de cada lugar, para que seja feita uma análise eficiente e tão pouco tendenciosa quanto possível. Uma boa ilustração do pragmatismo americano, na questão diagnóstica da esquizofrenia está no trecho que se segue, nas palavras de Andrew Sims:
“Atualmente, o diagnóstico na psiquiatria está sendo feito, cada vez mais, com base na presença de ‘critérios de diagnóstico’, que são frequentemente entidades psicopatológicas. Trata-se de um avanço considerável sobre os modos anteriores de realização de um diagnóstico, que frequentemente apresentavam semelhança maior com a intuição do que com o exame rigoroso das evidências...” (2001; p. 356).
O trecho acima dá a ideia do tal pragmatismo simplista da tendência norte-americana. Entretanto, o próprio Sims declara, no primeiro capítulo da mesma obra, que todo o seu livro é inspirado na concepção de Jaspers a respeito da Fenomenologia como ponto de partida para a avaliação psicopatológica eficiente. Sims afirma, ainda, que a Fenomenologia não é uma disciplina a ser estudada, mas “um método empático que evidencia os sintomas” (Ibidem p. 18), aproximando-se da concepção de atuação complexa, citada anteriormente. Para acabar, ou, pelo menos, minimizar as confusões teóricas, melhor consultar o próprio Jaspers. O que ele considera realmente importante na avaliação está relacionado ao modo como o doente lida com o seu modo de ser no mundo. Relações são estabelecidas pelo paciente esquizofrênico - com outras pessoas e consigo mesmo – e tais relações são o caminho para uma avaliação criteriosa e eficiente. A descrição do que se vê deve ser relacionada a uma interpretação sem devaneios poéticos. Segundo Jaspers, sobre alguns aspectos do quadro esquizofrênico:
“... vai de alterações ligeiras para o lado de incompreensibilidade até quase completa desintegração (...). Todas essas personalidades têm algo de peculiarmente incompreensível, frio, inacessível, rígido, mesmo que se manifestem lúcidas e capazes de conversar, gostando até de exprimir-se. (...) Eles, no entanto, nada vêem de incompreensível no que se nos afigura enigmático. (...) A alteração mais ceve da personalidade consiste, a bem dizer, no resfriamento e enrijecimento. Os pacientes ficam com a mobilidade diminuída, trornam-se estáticos, quase sem iniciativa.” (2005; vol. I p. 533).
Jaspers ressalta, em vários momentos, a necessidade de compreensão existencial do paciente. Com tal compreensão, não será definidor de diagnóstico, por exemplo, um conjunto de sintomas produtivos. Um sujeito pode ser um esquizofrênico sem que apresente delírios ou alucinações. Em suas palavras:
“A diferença mais profunda que existe na vida psíquica parece ser aquela a notar entre a vida para nós empática, compreensível e a vida incompreensível, por sua maneira, isto é, a vida louca, desvairada, no sentido autêntico: a vida esquizofrênica (sem que haja, necessariamente, ideias delirantes).” (2005 vol II p. 700).
Fica clara a tentativa de buscar uma compreensão mais global – ou complexa – do que um amontoado de critérios diagnósticos poderia fornecer. Fica claro também que a atitude fenomenológica faz uso da intuição como instrumento, sem transformar o processo diagnóstico em uma interpretação selvagem, que não leve em conta os aspectos realmente importantes. É notável o valor dado à sensação do terapeuta, na afirmação acima. Quando algo está esquisito, para nós, isto deve ser levado em consideração. A partir daí, toda uma sequência de fatos, impressões ou delírios vai construir o encadeamento lógico para a avaliação do caso. No fim das contas, o paciente poderá ter uma vasta sintomatologia produtiva e não receber um diagnóstico de esquizofrenia. A abordagem que defendemos não está baseada no pragmatismo da psiquiatria norte-americana, que ainda tende a enquadrar a esquizofrenia no molde dos chamados sintomas de primeira ordem, oferecidos de maneira vasta na literatura psiquiátrica e sustentados pelas fontes de maior prestígio perante a comunidade acadêmica, no que concerne a diagnósticos psiquiátricos (CID – X e DSM IV). O movimento crítico em relação ao diagnóstico simplificado da esquizofrenia se aproxima de uma atitude fenomenológica, entre outras coisas pela contestação da compilação de sinais e sintomas, como mostram as palavras de Parnas, in Maj e Sartorius (2005):
“Os critérios operacionais foram desenvolvidos como uma ferramenta provisória e pragmática, mas foram sendo materializados e gradualmente elevados ao status de verdade inquestionável. Portanto, faz-se necessária uma avaliação crítica dos critérios da Esquizofrenia (CID – X e DSM IV). (...) Os sintomas de primeira ordem recebem forte proeminência devido à sua presumida simplicidade, confiabilidade e à sua atratividade como modelos de sintomas médicos.” (p. 45).
Ainda assim, a postura crítica pregada por Parnas permanece como algo de diferente dentro da psiquiatria e do trabalho clínico em saúde mental. Várias hipóteses podem ser levantadas, principalmente quanto ao interesse mercadológico dos psiquiatras presos aos moldes das classificações internacionais e o interesse pessoal de ascensão (também um interesse mercadológico) dos profissionais do campo da saúde mental. Mas, mais uma vez, navegar por tais teorias seria um caminho provavelmente sem volta. O Acompanhamento Terapêutico (AT), em sua proposta de trabalho, pode lançar mão de uma estratégia que favorece e é favorecida pela postura crítica. A principal “ferramenta de trabalho” do AT é o encontro com o paciente. Esse encontro vai possibilitar que os dois sejam afetados um pelo outro. A partir daí, o processo estará favorecido, pois, com base em sua própria afetação, o terapeuta poderá compreender o funcionamento do paciente. Além disso, é um encontro que não se furta aos atravessamentos, de ordem material ou afetiva, tornando-se uma atividade mais exposta e, consequentemente, menos protegida do que o atendimento ambulatorial. Para o acompanhante terapêutico (at), as intervenções são potencializadas pelo ambiente onde se encontram ele e o paciente. A estratégia terapêutica deve frequentemente considerar as variáveis presentes em um encontro como esse. E é nesse encontro de forças, muitas vezes com sentidos opostos, que o campo para a vivência de uma atitude fenomenológica se apresenta. Consideramos, portanto, a subjetividade muito mais importante do que qualquer outro critério de avaliação e de planejamento de intervenção terapêutica. A afetação provocada pelo paciente, no terapeuta, é crucial para o trabalho clínico. Mais uma vez, em concordância com Jaspers, vemos a importância dada à intuição dentro do processo de diagnóstico em psicopatologia. De acordo com Alfred Kraus:
“A classificação e o diagnóstico atual em Psiquiatria (...) baseiam-se em critérios operacionais e regras específicas de uso. Em uma medida ampla, a intuição é excluída do processo diagnóstico. A intuição do elemento esquizofrênico é principalmente identificada com o sentimento precoce. O ‘diagnostique par penetration’ de Minkowsky e o’ diagnóstico atmosférico’ de Tellenbach também são abordagens intuitivas do elemento esquizofrênico. Segundo Wyrsch, o reconhecimento da pessoa esquizofrênica não se baseia em sinais, como expressões faciais ou gestuais ou contato emocional negativo, nem apenas em uma limitação da compreensão dos motivos de outras pessoas. Segundo Wyrsch, o sentimento precoce tem a ver com uma certa modalidade do ser, uma certa maneira de ‘estar no mundo e participar dele’.” (in Maj e Sartorius, 2005; p. 49).
Portanto, para o caso do trabalho com pacientes esquizofrênicos, a atitude crítica propicia um conhecimento das relações que o paciente estabelece com o mundo. Esta compreensão torna possível ao terapeuta auxiliar na promoção de mudanças que possam melhorar a qualidade de vida do paciente.
Conclusões
Observamos a importância crucial de três elementos para a clínica do AT. Como aqui exposto, espera-se que esses elementos sejam cada vez mais bem explorados para que as construções teóricas sobre essa atividade clínica sejam mais eficazes. Intuição, encontro no cotidiano e movimento estão de tal forma interligados na clínica do AT que não há como promover uma separação, a não ser por objetivos didáticos, como no caso deste trabalho. Vale ressaltar a importância da adoção do método fenomenológico como condutor da avaliação e da construção de uma estratégia terapêutica para todos os casos de AT. Espera-se que as reflexões propostas neste estudo sirvam de motivação para novos trabalhos na área. Esperamos que a conceituação e caracterização do Acompanhamento Terapêutico acompanhem a evolução da sua prática, a fim de enriquecer os novos profissionais do ramo.
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