Resumo
O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão sobre a crítica feita por Deleuze e Guattari a processos de interpretação e representação da realidade. A partir de uma visita aos conceitos de Corpo sem Órgãos e Rizoma, construímos uma discussão sobre as várias repercussões que essas ideias possam ter na psicologia clínica e no estudo do estabelecimento das relações interpessoais. A partir de uma visão que considera a complexidade e a legitimidade do mundo de cada um, dialogamos com a controversa obra desses autores a fim de valorizar as linhas de fuga - como proposto por eles mesmos – em relação aos paradigmas vigentes e centralizadores de poder. Criticamos, pois, a forma religiosa pela qual o conhecimento é construído; religiosidade esta que afasta o conhecimento da condição de religião sem que o conduza à condição de ciência, num processo de ambiguidade interminável. Esperamos, por fim, que as discussões aqui iniciadas sirvam para reflexões futuras com a intenção de uma prática libertária do pensamento em psicoterapia e relações humanas.
Descritores: Clínica
da imanência, crítica da interpretação, psicologia.
The Clinic of
Immanence: Deleuze and Guattari’s critique of interpretation and representation
of reality
Braz Werneck Filho
Cognitive Behavioral Therapist
Master’s Degree in Psychology (UFRJ)
Therapeutic Counselor
Abstract
In this paper we discuss Deleuze and Guattari’s
critique of the processes of interpretation and representation of reality.
Considering the concepts of Body without
Organs and Rhizome, we discuss
how these concepts can influence the practice of clinical psychology and
the studies on the establishment of interpersonal relationships.
Sharing the view that considers complexity and
legitimacy of each individual, we propose a dialogue with the authors’
controversial ideas, so as to value the so-called line of flight — mentioned by
the authors — against the actual paradigms which control power. We, therefore,
criticize the religious form by which knowledge is built. The religiosity
mentioned previously distances knowledge from a sacred place, without leading
it to the status of science, resulting in ambiguity. Finally, we hope that this kind of debate can
be useful for future discussions, in order to encourage the practice of
libertarian thinking in psychotherapy and interpersonal relations.
Keywords: clinic of
immanence; critique of interpretation; psychology.
Introdução
O
objetivo deste trabalho é discutir uma abordagem do ser humano tão libertária
quanto possível. Pra tanto, propomos uma visita à obra de Deleuze e Guattari, a
fim de encontrar pontos de partida para uma discussão sobre multiplicidade e
complexidade, transportando a discussão, em seguida, para o campo da
psicoterapia e do estudo das relações interpessoais.
A obra de Deleuze e Guattari é no
mínimo, controversa, quando não chega a ser incompreensível e chocante. No
entanto, um exame mais apurado de algumas de suas ideias pode trazer algumas reflexões
importantes e desafiadoras.
Tomando por base, mas sem
exclusividade, o livro “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia” (1980/1996),
temos a intenção de discutir implicações de alguns conceitos formulados e
desenvolvidos por esses autores para situações de convivência na psicoterapia e
nas relações interpessoais
Rizoma: multiplicidade e complexidade
nas relações homem-mundo
Uma
das tônicas da obra de Deleuze-Guattari é uma crítica contundente aos modelos
de abordagem do ser humano e do mundo
A proposta do Rizoma se inicia com
uma ideia básica de desconstrução. Tem origem aí a concepção de uma crítica À
origem única, ao modelo causa-efeito, mas com a manutenção das possibilidades.
Estas podem ser mantidas por meio da multiplicidade. A origem não deve mais ser
procurada em um fator apenas, mas
Desta vez a raiz principal abortou, ou se destruiu em
sua extremidade: vem se enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de
raízes secundárias que deflagram um grande desenvolvimento. Desta vez, a
realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade subsiste
ainda como passada ou por vir, como possível. (1980/1996; vol. 1, p. 14.).
Entretanto, acontece que a
multiplicidade proposta se apresenta, em nossa clínica, como um desafio a ser
vencido. No ambiente de psicoterapia existem, pelo menos duas figuras, e uma
delas é o terapeuta. Este possui responsabilidades, mas como visto em trabalhos
anteriores, também possui sua própria visão de mundo (Werneck Filho, 2009).
Deleuze-Guattari propõem um cuidado com a prática além da verbalização, além da
simples teorização. Não é fácil considerar a multiplicidade, mas é imperativo
que assim aconteça, pois... “não basta
dizer Viva o múltiplo (...), é preciso fazer o múltiplo” (ibidem, p. 14).
A partir desse pensamento, pode-se
erigir uma reflexão sobre a teoria e a prática, no que diz respeito à formação
do profissional clínico. Uma ideia que consideramos fundamental diz que a
atuação do clínico não depende apenas de sua formação acadêmica, mas também de
sua formação humana (Werneck Filho, 2009). Chamamos atenção para as influências
que o ambiente original do profissional (sua família e outras redes sociais e
afetivas) possui sobre o tipo de trabalho que ele vá desenvolver. Pensamos que
não adianta um estudante ser especialista em multiplicidade e coisa que o
valha, se ele não tem, em sua vivência pessoal, registros de como possa
acontecer e ser funcional tal multiplicidade. Vale ressaltar que não defendemos
aqui o empirismo puro e simples, mas apenas achamos importante discutir se a
formação profissional de qualquer pessoa tem início com sua formação acadêmica.
Se a visão de mundo é uma característica inerente ao ser humano, tendo
consequências em sua forma de se relacionar e fazer escolhas, então parece
razoável pensar que seja anterior às escolhas profissionais, e talvez, até, um
fator para tais escolhas.
Assim sendo, para que um
profissional trabalhe em consonância com a ideia de multiplicidade, deve ser
uma pessoa que tenha vivido com possibilidades para deslizar por esse caminho.
A palavra deslizar não deve ser tomada como mero recurso de estilo. Propomos
que por um caminho múltiplo, não se possa caminhar, pé ante pé; o movimento
ocorre com o deslizar. É como se todo o corpo entrasse em contato com o chão e
com o ar, com tudo que compõe o caminho, dando ao solo não mais a condição de
apoio único, mas de unidade densa tridimensional, que abrace o caminhante, o
deslizante, junto com o ar
Quando se leva em consideração a
conexão multidimensional com o mundo, com tudo o que esteja presente, pode-se
dizer que nos aproximamos da vivência múltipla. Se essa conexão se fizer de
forma autêntica e não acadêmica, serão observados grandes avanços na clínica.
Não buscamos mais uma forma de trabalhar para que o paciente possa passar a ser
de um jeito que nós ou família queremos. O trabalho visa à construção de
possibilidades para que o paciente tenha potencializada a sua capacidade de ser
quem ele realmente é. Acreditamos, com licença para nossas próprias premissas,
que o maior desafio é ser quem realmente se é, como disse Kierkegaard. A
conexão/conectividade multidimensional ou heterogênea é defendida por
Deleuze-Guattari:
...Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a
qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que se
fixam num ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Chomsky começa
ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço
não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda
natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias
biológicas, políticas, econômicas etc.... (ibidem; p. 15).
Uma forma contundente de
experimentação dessa multiplicidade se dá na convivência natural e desinteressada com o outro. No trabalho em saúde mental
enfrentamos inúmeras situações onde o mais importante seria não dar importância
a uma característica de determinada pessoa. É comum que pessoas bem
intencionadas, mas pouco informadas pensem que estejam ajudando quando, na
verdade, atrapalham o processo terapêutico do paciente. O que ocorre
costumeiramente é a generalização das limitações. Quando um indivíduo com
retardo mental apresenta um contexto familiar onde os limites não são
esclarecidos, por exemplo, toda uma gama de problemas cresce em torno de uma
limitação cognitiva generalizada para o meio social etc.
O raciocínio natural dos familiares
diz que “se ele não pode somar dois mais dois ele precisa ser protegido, pois é
mais fraco que os outros”. Esta forma de pensar e de proceder traz inúmeros
problemas que a pessoa não teria, caso fosse exigida dentro de suas
possibilidades.
Chamamos de convivência
desinteressada aquela que não caracteriza o outro pelas suas limitações. A
grande possibilidade da saúde mental está em construir uma relação com os
loucos, com os deficientes, com os loiros, com os vascaínos, sem que eles sejam
considerados menos gente por cada uma de tais características. O desinteresse
pelas limitações termina por se transformar em interesse pelas potencialidades,
pelo que pode ser produzido e não pelo que não pode.
O pensamento que considera a
multiplicidade é fugidio, escapa às amarras do status quo, construindo algo produtivo fora do que se estabeleceu
como desejável, saudável ou normal. Como propõem Deleuze-Guattari:
As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha
abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de
natureza ao se conectarem à
Segundo os autores, a concepção
norteada pelo Rizoma carrega algumas características que a nosso ver podem ser
bem aproveitadas na clínica. Além do que já foi exposto sobre a multiplicidade,
que leva ao modo de ver o homem de uma forma que considere toda sua
complexidade, temos a ideia de ruptura. Para Deleuze-Guattari, a ruptura é um
princípio dessa forma de ver o mundo; para nós, a ruptura pode e deve figurar
como uma atitude.
Mesmo que já esteja subentendida,
achamos pertinente um breve comentário sobre essa noção. Para os autores em
questão, quando o rizoma entra em cena, rompe-se essencialmente com a
significação. Devemos observar o caráter libertário de tal proposta, posto que
um fato será conhecido muito mais por si mesmo do que por uma ou duas de suas
causas. Uma consequência imediata deste princípio para a prática clínica é a
crítica à interpretação, tendência tão comum entre profissionais de saúde
mental. Segundo os autores, temos o “princípio
de ruptura a-significante”, exposto nas palavras a seguir:
...contra os cortes demasiado significantes que
separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser
rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de
suas linhas e segundo outras linhas. (...) Todo rizoma compreende linhas de
segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado,
organizado, significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada
vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz
parte do rizoma. Estas linhas não param de se render umas às outras. É por isto
que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma
rudimentar do bom e do mau. (ibidem; p. 18.).
No mínimo, podemos encontrar nessas
palavras uma crítica forte a qualquer rigidez de conhecimento, de raciocínio
cartesiano. Indo mais além, pode-se refletir sobre a crítica ao significante,
que traz em si mesma, uma crítica à interpretação. Neste ponto, é possível recorrer
a um aprofundamento com base em outra proposta destes dois autores: o Corpo sem
Órgãos.
O Corpo sem Órgãos: máquina de guerra
contra o organismo
Um
dos conceitos mais contundentes, e por isso mesmo controversos, da obra desses
autores é o que foi por eles chamado de Corpo Sem Órgãos (CsO). Aparece junto a
um pensamento modificador, totalmente influenciado por ideias contrárias ao que
se poderia encontrar como sistema vigente dentro da Filosofia e da própria
Psicologia. A crítica à Psicanálise foi uma temática importante, talvez a mola
mestra da construção de uma ideia de CsO.
É risco ate mesmo adotarmos como um
conceito, posto que até a validade conceitual seja posta em cheque por
Deleuze-Guattari. O Corpo sem Órgãos é simplesmente difícil de definir. Nas
palavras dos autores:
... é um exercício, uma experimentação inevitável, já
feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a
começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser
aterrorizante, conduzi-lo à morte. Ele é não-desejo, mas também desejo. Não é
uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. (1980/1996; vol. 3, p. 09).
Torna-se mais produtivo do que
explicar o conceito, principalmente quando não é um conceito, encontrar uma
forma tão eficaz quanto possível para a compreensão dos reflexos práticos que
tais ideias possam apresentar. A concepção se inicia com a chamada guerra aos
órgãos. Mais adiante, entretanto, observa-se que a guerra não é aos órgãos em
si, mas ao organismo. Segundo Artaud (in Deleuze-Guattari, 1980/1996), o corpo
não precisa do organismo. Uma separação é feita de forma inequívoca; o
organismo representa o inimigo do CsO, não os órgãos. Mas o organismo é a
organização que se faz a partir dos órgãos. O CsO se opõe ao organismo porque
tem outros órgãos, outra organização, uma organização verdadeira, que não
carece de exterioridades definidoras. Podemos observar, já de início, a
importância da ideia de imanência, contra interpretações, representações etc.
Na Psicologia, o estudo do CsO
serve, entre outras coisas, para novos projetos, novos agenciamentos a partir
do material que se nos apresente, seja ele qual for. O importante é que não
seja construído um corpo teórico que determine irrevogavelmente a prática, ou
um projeto terapêutico que seja sempre o mesmo porque o diagnóstico é o mesmo.
A diferença sempre existe, sempre deve ser considerada. Uma das formas eficazes
de se considerar a diferença é a experimentação, não a interpretação. A
interpretação acontece de forma religiosa e dominadora, não constrói com, constrói para ou por.
Como não poderia deixar de ser, a
construção pela diferença termina por atacar veementemente qualquer forma de
classificação, representação e interpretação. Enquanto na Psicanálise acontece
a tentativa de um reencontro com o eu, a diferença procura ir mais alem, além
do ego, buscar o CsO. Para que isso aconteça, faz-se necessário substituir a
interpretação pela experimentação (ibidem).
A interpretação, segundo os autores,
age contra o real, age para preservar a si mesma, na figura do fantasma.
Interpretando, dá-se sentido a algo que não pode ter um sentido que seja dado.
Com a interpretação, se desconsidera tudo relacionado ao CsO, às forças em
relação constante em qualquer evento. Aos órgãos com sua imanência, com seu
sentido imanente. Segundo os autores:
Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser
ocupado, povoado por intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não
extenso. Ele não é espaço bem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em
tal ou qual grau – grau que corresponde às intensidades produzidas (ibidem; p.
13).
Reforçando a ideia da atuação
religiosa da interpretação e, por conseguinte, da psicanálise, observamos o CsO
como “Campo de Imanência do Desejo”. Está aí uma concepção básica sobre o CsO,
demonstrada por sua relação de criação própria e de independência de instâncias
superiores. O desejo é o que é por si mesmo, não está relacionado e nem
representa alguma falta eventual no processamento psíquico do indivíduo.
Os autores consideram que o desejo
seja traído quando arrancado de seu campo de imanência. Nesse processo está
presente a figura do psicanalista que é por Deleuze-Guattari comparada à figura
de um padre. Consideramos esta analogia coerente, apesar de forte e pejorativa.
Caso o advento da interpretação calcado nas representações seja visto como uma
arma da negação do desejo como ele realmente é – simples e complicado desejo –
teremos na figura do psicanalista, ou outro tipo de profissional qualquer,
aquele que é responsável pela supressão do desejo como é, para que seja
determinado por coisas exteriores a ele. A questão da imanência e de sua
incompatibilidade com a transcendência psicanalítica aparece de forma explícita
nos seguintes trechos da mesma obra:
A figura mais recente do padre é o psicanalista com
seus três princípios: Prazer, Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise
mostrou que o desejo não se submetia à procriação nem mesmo à genitalidade. Mas
ela conserva o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no
desejo a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal
transcendente do fantasma. (p. 16).
Para exemplificar e questionar a
transcendência, é utilizado o exemplo do masoquismo, como a seguir:
Por exemplo, a interpretação do masoquismo: quando não
é invocada a ridícula pulsão de morte, pretende-se que o masoquista, com todo
mundo, busca o prazer, mas só pode aceder a ele por intermédio das dores e das
humilhações fantasmáticas que teriam como função apaziguar ou conjurar uma
angústia profunda. Isto não é exato; o sofrimento do masoquista é o preço que
ele deve pagar, não para atingir o prazer, mas para desligar o pseudoliame do
desejo com o prazer como medida extrínseca.
Para uma espécie de síntese dessa
ideia, discute-se o próprio prazer, em sua conceituação e aplicação
teórico-prática.
O prazer não é de forma alguma o que só poderia ser
atingido pelo desvio do sofrimento, mas o que deve ser postergado ao máximo,
porque seu advento interrompe o processo contínuo do desejo positivo. Acontece
que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si
mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma,
impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo
prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e
impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa.
Para que nos encontremos livres de
tais idealizações, sempre nocivas pela transcendência, pode-se adotar no
trabalho clínico a orientação do CsO, que está baseada na Filosofia da
Diferença, proposta por estes mesmos autores. Contra a negação causada pelos
moralismos incessantes, que tornam a ideia de organismo muito mais importante
do que o corpo que experimenta. A favor da afirmação do que é sensível,
experimentado e imanente, que está presente, grudado à vivência.
O CsO pode ser chamado de clínica da
imanência por considerar tudo o que realmente se apresenta, o desejo como
imperativo e não representado, a ideia de corpo como mais importante do que a
ideia de organismo. Estas concepções podem ter alguns reflexos importantes na
prática clínica, como discutiremos em seguida.
Clínica da Imanência
Ao
longo do nosso trabalho podemos perceber que é mais produtivo encontrar uma
fórmula que privilegie a autonomia do desejo e não os eu controle. Ratamos o
desejo como o imperativo norteador do ser humano, algo que não pode ser
enclausurado em classificações e diagnósticos inconsistentes.
Costuma-se dizer que é a Psicanálise
que dá a importância devida ao desejo e às relações (Carvalho, 2004). Para nós,
este é um pensamento segregacionista e que apenas sugere um acirramento das
relações de competição entre os membros de diferentes abordagens dentro da
psicologia clínica.
Nosso objetivo é caminhar na direção
da imanência no que se refere aos malefícios que a transcendência pode trazer.
O melhor exemplo para a psicologia talvez seja mesmo este: quando os
profissionais abandonam o objetivo essencial de seu trabalho, passam a se
preocupar com nomenclaturas e classificações, para concorrer com outras
nomenclaturas e classificações. O tratamento do paciente passa para um outro
plano e as pessoas que praticam este tipo de clínica, praticam o que chamamos
de clínica da transcendência. A clínica da imanência é a clínica que não se
perde em demagogias religiosas e atuações que não visam primeiramente ao
tratamento do indivíduo; ela se mantém firme e curiosa, humilde e confiante,
assimilando as informações e utilizando o que vem da relação com o paciente.
Defendemos, pois, como clínica
verdadeira a clínica da imanência, seja ela moldada pelas ideias algo
esquisitas de Deleuze-Guattari, ou norteada pelos princípios da Psicopatologia
Fenomenológica de Minkowski, mas sempre atrelada ao fenômeno. Obviamente, não
tratamos o fenômeno simplesmente como algo que acontece, mas como a relação
entre aquilo que acontece e quem é afetado por tais acontecimentos.
Não é simples promover uma aproximação
entre as ideias de Deleuze-Guattari e Fenomenologia, posto que o próprio
Guattari apresentasse severas críticas à Fenomenologia. Não obstante, achamos
pertinente que um dos pontos de intersecção entre as duas formas seja
valorizado.
Na atuação clínica é que se pode
observar como uma proposta norteada pela Fenomenologia pode se aproximar dos
Planos de Imanência descritos aqui. Quando elaboramos uma estratégia
terapêutica que coloque entre parêntesis as concepções teóricas do
profissional, esperando que a relação terapeuta-paciente se estabeleça, atuamos
de forma a não produzir realidades a partir de um vácuo subjetivo. A atitude
fenomenológica se presta a um trabalho de criteriosa curiosidade sobre os
agenciamentos desenvolvidos pelas máquinas desejantes e suprimidos pelos
detentores do poder clínico, do Poder Psiquiátrico. O desejo vai passar a ser escrito e vivido
como protagonista e não como material utilizado para construções teóricas.
É no terreno da psicose que a
Fenomenologia encontra a proposta esquizoanalítica de Deleuze-Guattari. Em
compensação, é nesse campo que a Psicanálise decreta o seu afastamento. Mais
além da questão da construção apriorística do funcionamento interpretativo,
está a questão de que a estranheza não cabe na normalidade e deve ser estudada
para que se encontre uma representação que a torne digerível. Nas palavras de
Deleuze:
O que a psicanálise compreendeu da psicose foi a linha
“paranoia”, que leva ao Édipo, à castração..., etc., todos esses aparelhos
repressivos injetados no inconsciente. Mas o fundo esquizofrênico do delírio, a
linha “esquizofrenia”, que traça um desenho não familiar, escapa-lhe
totalmente. Foucault dizia que a psicanálise ficou surda às vozes da desrazão.
De fato, ela neurotiza tudo; e através dessa neurotização contribui não só para
produzir o neurótico de cura interminável, mas também para reproduzir o
psicótico como aquele que resiste à edipianização. Porém a psicanálise fracassa
inteiramente na abordagem direta da esquizofrenia. Assim como lhe escapa a
natureza inconsciente da sexualidade: por idealismo, por idealismo familiar e
teatral (1990/2006. P. 28).
Deleuze faz pairar no ar a ideia de
que a psicanálise precisa de uma normatização da loucura. Ora, o que defendemos
em nossa prática em nenhum momento se propõe como normatização ou classificação
para menor desconforto de nossa parte. No caso da Fenomenologia a ideia de
normal e patológico não é rechaçada, mas sim encarada de uma outra maneira. O
louco causa estranheza, não há meios que nos façam negar isto. Entretanto, o
que devemos fazer com nós mesmos a partir de tal estranheza? Como tratar um
sujeito que simplesmente é assim? Jaspers ressalta, sobre o quadro
esquizofreniforme:
...vai de alterações ligeiras para o lado de
incompreensibilidade até quase completa desintegração (...). Todas essas
personalidades têm algo de peculiarmente incompreensível, frio, inacessível,
rígido, mesmo que se manifestem lúcidas e capazes de conversar, gostando até de
exprimir-se. (...) Eles, no entanto, nada vêem de incompreensível no que se nos
afigura enigmático. (...) A alteração mais leve da personalidade consiste, a
bem dizer, no resfriamento e enrijecimento. Os pacientes ficam com a mobilidade
diminuída, tornam-se estáticos, quase sem iniciativa. (2005; vol. I p. 533).
O cerne de toda a clínica
fenomenológica está em sua forma de encarar as possibilidades de autenticidade
do paciente. Pode-se adotar um modelo plural, aberto aos modelos múltiplos,
construídos pelo paciente, tal qual na formação do rizoma, antes descrito. O
psicopatologista fenomenológico não abre mão de seus pressupostos construídos
mediante um saber-dádiva característico da comunidade em que vivemos.
Entretanto, a utilização que dele faz serve para compreender e não para explicar
o que se passa com o outro.Quando compreendemos podemos respeitar as diferenças
e crescer a partir delas, porque reconhecemos nossas limitações. Por outro
lado, quando explicamos, criamos a verdade, criamos a subjetividade do outro,
não encontramos nosso limite. Estamos, sim, terminando o serviço, um serviço de
redes agenciadas que deveria ser respeitado por ser interminável, antes de
interminável, melhor seria dizer, inesgotável: o serviço-programa de construção
de si, por si mesmo. Nas palavras de Minkowski, sobre a afetividade do
indivíduo esquizofrênico:
Nous caractérisons de cette manière sa façon d’être.
(...) Quelque chose d’essentiel vient à manquer. Le schizophrène est “froid”et
distant. Cette “distance” sera chez lui parfois hautaine. L’anesthésié affectif
est un pauvre être, image d’impuissance et de misere morale; chez le
schizophrène nous nous trouvons en prèsence de données d’un autre ordre. (1999.
P. 354). [1]
Podemos nos empenhar em descobrir o
que pode significar a expressão dados de uma outra ordem para Minkowski, ou
simplesmente deixar que os sentidos falem por si mesmos. Sempre nos encontramos
perante dados de outras ordens. Entretanto, é mais fácil respeitarmos as
diferenças como características de um ser humano de mesmo nível quando não se
trata de um louco.
Conclusões
Defendemos
as discussões sobre novas formas de lidar com as situações clínicas. Parece
claro que as propostas de Deleuze-Guattari não são em absoluto novas No
entanto, ainda é muito difícil encontrar um trabalho clínico que não seja
moldado. Não importa que seja moldado pela psicanálise, pela fenomenologia,
pela esquizoanálise. O que nos parece que mais faz falta no universo clínico é
uma visão desprendida de ordenações mecanicistas e mecânicas; dualistas e
ambíguas. Atualmente, observamos formas áridas de relação, todas com
preocupações menos nobres do que ambiciosas.
Quando Deleuze-Guattari falam em
Rizoma, nos salta aos olhos um inconformismo com o modo aceito e estimulado de
se relacionar com a clínica. A forma que nos desvia da complexidade humana é a
forma que parece ser mais bem aceita pela “ciência” acadêmica e academicista.
As produções devem privilegiar determinada forma de pensar, e dentro de
determinada forma de pensar, deve-se pensar determinada coisa. Tudo muito bem
determinado. Um caminho leva a um destino já traçado. As origens são muito bem
estabelecidas e reconhecidas mediante suas extremidades. Isto porque uma origem
pode produzir sempre várias extremidades, sim, mas sempre será uma origem fixa.
Com o advento do Rizoma, a própria origem se transforma, e em hipótese alguma
deixa de ter validade. Deixa de ser o que está planejado, deixa de dar
possibilidade de planejamentos, ainda assim, e só por isso, é singularmente
valiosa.
A proposta do CsO não é uma proposta
que nos pareça infalível, nem mesmo de fácil acesso, mas traz articulações que
consideramos necessárias. Embora acreditemos que a clínica deva ser exercida
sem a nefasta interferência da política, mais precisamente da politicagem
subreptícia, o olhar para o mecanismo de controle e as formas que o aparelho de
estado utiliza para subjugar o desejo, mesmo quando o valoriza, é para nós,
crucial.
Talvez a psicanálise tenha servido
para as maquinações da época em que surgiu; talvez tenha uma teoria servido ao
protocolo do aparelho de estado sem que fosse essa a sua finalidade.
Entretanto, a forma interpretativa de lidar com o mundo pode ser muitas vezes
perniciosa. Criações que se recriam nas criaturas, com o objetivo maior de
continuar a recriação constante. Assim nos parecem as formas
interpretacionistas de lidar com a realidade, seja ela normal ou patológica.
Com a imanência, pode-se vivenciar a
experimentação para a qual foram erigidos os corpos. Nada a ser representado,
nada a ser delimitado ou definido pelo que vem de fora. As coisas são o que
são, pessoas são o que são, muito mais e muito menos do que está escrito em um
determinado livro. Vamos nos utilizar das fábulas, dos mitos, para que em
determinado momento façamos conexões às quais não nos permitiríamos
normalmente. Não vamos, todavia, perguntar “como será o édipo de fulano?”, porque o fulano em questão é uma
indeterminação, sabe-se apenas que ele existe, mas não se sabe que relações ele
vai estabelecer e nem como ele vai fazer isso.
Finalmente, um argumento que nos
aproxima de forma inconteste do pensamento de Nietzsche. Propomos que seja
rechaçada a religiosidade em sua pior forma: forma de sabedoria. Tudo o que se
declara como saber é declaração também de poder. As formas pelas quais o
pensamento religioso se propaga para produzir conhecimento científico são as
mais vis. Sedução, incoerência, negação, moralismo às avessas.
O pensamento e o funcionamento
religiosos não produzem ciência, pois a fé não precisa da ciência. Produzem,
sim, subjetividades. Estas subjetividades podem seguir dois caminhos: o caminho
da religiosidade, que seria o seu curso natural e que se mostra saudável para a
maioria das pessoas; ou o caminho do que podemos chamar de ateísmo religioso, onde a “ciência” é produzida a todo custo, a
qualquer custo, para que sejam alcançados ideais muito menos nobres.
O segundo caminho aqui descrito é o
caminho pernicioso de que falamos e do qual se deve escapar. As subjetividades
aqui produzidas circulam sem rotas de fuga, sem força centrífuga, entrelaçadas
num jogo de poder e cobiça por mais poder. Assim, não sendo uma coisa nem
outra, acabam por vencer a ciência e a religião, que em si mesmas, podem ser
vistas como dois lados, talvez saudáveis, da mesma moeda.
Ocorre uma deturpação do objetivo da
religiosidade. Observamos afiliações teóricas como afiliações religiosas. As
construções do saber se intitulam suficientes e não querem concorrência, querem
sim, discípulos. Aqueles que não se deixarem subjugar terão que manter a máquina
pronta para a guerra. Propomos que o saber deva fugir aos mecanismos de
controle do que Deleuze-Guattari chamam de aparelho
de estado.
Fugindo a esse controle absolutista,
estão os pensamentos mais fora de esquadro de nossa época. Nossa contribuição
está em fazer fervilhar as discussões e a indignação – afeto autêntico – para
que sejam observadas sempre as premissas do trabalho clínico, assim como de
qualquer outro trabalho. Quando se realiza um trabalho que não seja moldado,
mas construído, escapa-se a essas formas de controle totalizadoras. A
Fenomenologia como atitude e método para qualquer psicoterapia é uma linha de
fuga; a observação e o deslizar pelo corpo sem órgãos em constante mutação é
uma outra. Construções constantes e incansáveis. O que mais importa é que não
procuremos fora o que nos é imanente, escapando à mania de representação e
interpretação.
Referências Bibliográficas
Deleuze,
G. e Guattari, F. (1980/2006) Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vols. 1
e 3). São Paulo: Editora 34.
Deleuze,
G. (1990/2006). Conversações. São Paulo: Editora 34.
Deleuze,
G. (1993/2004). Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34.
Guattari,
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Minkowski,
E. (1927/2000).
____________(1999)
Traité de psychopathologie. Le
Plessis-Robinson. Institut Synthélabo.
[1] Nós caracterizamos dessa forma sua maneira de ser. (...) Qualquer coisa de essencial fica faltando. O esquizofrênico é frio e distante. Essa “distância” será nele por vezes, arrogante, altiva. O anestesiado afetivo é um pobre ser, imagem de impotência e de miséria moral; no esquizofrênico nos encontramos em presença de dados de uma outra ordem. (tradução livre do autor).