Introdução
Na clínica psiquiátrica o
suicídio é mais freqüente do que seria desejável. Podemos dizer que os
psiquiatras se dividem em dois grupos: os que já perderam paciente por suicídio
e os que irão perder. É difícil para o psiquiatra passar por esta experiência
Alguns chegam a abandonar a profissão, tamanho é o sofrimento. Pior ainda,
quando enfrentam essa tragédia, habitualmente não têm o apoio esperado dos
colegas.
Muito da minha experiência profissional foi vivida nos Estados Unidos da
América do Norte. Lá as causas mais comum de processo judiciais por erro médico
contra psiquiatras é o suicídio de pacientes. Temo e espero estar errado, mas
acho que no Brasil, num futuro não muito distante, também será assim.
Antes de mais nada, é preciso aceitarmos que na clínica, com os nossos recursos
e conhecimentos atuais, não nos é possível, com certeza, prever e impedir o
suicídio de paciente. Só quando aceitamos essa limitação é que poderemos convir
aos nossos pacientes e aos seus familiares que sem a ajuda deles não
encontraremos um caminho alternativo como solução dos seus problemas.
Nos Estados Unidos antes de 1940 o suicídio de um paciente sob cuidados de um
psiquiatra não era considerado erro médico. Isso era visto como algo que o
paciente decidiu fazer, interrompendo o andamento e o resultado do seu
tratamento. Provavelmente por pressão dos advogados, na década de 1940, ele
passou a ser considerado como possível erro médico. Daí para frente ele ocupa o
primeiro lugar nos processos contra os psiquiatras naquele país.
As condições necessárias
As condições necessárias
para gerar um processo por erro médico nos Estados Unidos são conhecidas
como os "Quatro Ds: Dever, Desvio, Dano, Direto".
Dever: O psiquiatra não ter cumprido com o seu dever de oferecer um
atendimento razoável dentro dos padrões existentes na profissão.
Desvio: O psiquiatra ter sido negligente, isso é, não ter tratado o
paciente como seria de se esperar de um clínico interessado e prudente.
Dano: Perdas e danos sofridas pela família de um paciente que suicida
poderão ser indenizados pelo psiquiatra e no caso de tentativa de suicídio
frustrado? o próprio paciente poderá processar.
Direto: Em todos os casos deverá ser estabelecida uma conexão causal
entre a negligência e o suicídio, isso é, se ele teria ocorrido caso não
houvesse a negligência.
No Brasil parece que essas condições são mais ou menos as mesmas.
Os sentimentos
A questão do psiquiatra ser ou
não processado por erro médico passa por uma sinergia entre o mau resultado do
tratamento e os sentimentos negativos causados aos familiares.Sã o esses
sentimentos intensos. que levam a família a processar o profissional. É por
isso que o psiquiatra deve tentar trabalha-lhos com a família depois do
suicídio, com o intuito de lhe ser útil e também de minimizar os riscos de um
processo por erro médico.
Vamos falar de alguns desses sentimentos.
A culpa sentida pelos parentes pode ser uma das motivações para um
processo de erro médico. É a "culpa do sobrevivente". A sensação de
não terem cuidado bem do paciente, não o terem amado suficientemente ou de não
terem procurado tratamento mais cedo. Essa culpa pode ser projetada no
psiquiatra. Uma maneira dele lidar com isso é atender a família antes e depois
do suicídio, tentando aliviar essas culpas.
A família pode também ficar com ódio do profissional por diversas
razões: não ter sido acessível e sensível ou por ter sido visto como arrogante.
Psiquiatras que perdem paciente por suicídio ficam tão devastados que
freqüentemente se retraem, se recusando a atender telefonemas da família ou
evitando encontros com ela. Isso pode gerar raiva no momento que a família mais
precisa de apoio para tentar entender o ato do familiar.
Um outro sentimento é o luto que se instala no momento que a família
perde um parente. Para lidar com ele os familiares, às vezes, entram em franca
atividade, tomando todos os tipos de providências evitando assim parar para
sentir a perda. Um processo contra o psiquiatra pode ser uma dessas
providências. O psiquiatra deverá ajudar a família a trabalhar esse luto.
Muitas vezes a família é pega de surpresa quando um paciente suicida.
Essa surpresa pode levar ao medo, raiva, paranóia e um processo de erro médico.
Isso ocorre se o psiquiatra não preparou a família para os riscos do suicídio
durante o tratamento.
Outras vezes a família se sente traída pelo suicídio do paciente e pelo
profissional que o atendeu. Isso pode ocorrer quando este fica defensivo e
culpa o paciente ou a família pelo acontecido.
Por incrível que pareça esses sentimentos são tão importantes que podem
levar a família a processar o psiquiatra mais do que o eventual ganho
financeiro da via judicial. Um psiquiatra que consultei no caso de um paciente
com alto risco de suicídio, me disse que "é muito difícil alguém processar
uma pessoa de quem gosta".
Então, quando um paciente comete suicídio é muito importante o apoio e o
acompanhamento da família depois do evento. Isso pode incluir desde estar presente
no enterro até o oferecimento de sessões aos familiares para ajudá-los a
trabalhar esses sentimentos.
O prontuário
Além desse trabalho com a
família é importante que o psiquiatra tenha um bom prontuário pois ele será
sempre a sua maior evidência na justiça.
Deve ser registrado no prontuário como o psiquiatra pensou na situação do
paciente e o que fez para minimizar o risco de suicídio. Quando eu trabalhava
nos USA, em casos com alto risco de suicídio, eu escrevia meus prontuários
imaginando estar na frente de um juiz, justificando as decisões que eu ia
tomando no transcorrer do tratamento.
Sabemos que no atendimento clínico as idéias de suicídio em nossos pacientes
aparecem frequentemente. Se um paciente não fala espontaneamente delas mas
desconfiamos que estão presentes devemos perguntar cuidadosamente como parte de
nossa avaliação que deve entrar no prontuário. É importante explorar essas
idéias: se são fugazes ou persistentes e se já levaram a um planejamento.
Perguntar se o paciente acha que é capaz de controlar esses impulsos e como
poderemos ajuda-lo nesse controle.
O psiquiatra deve também registrar que ele foi acessível ao seu paciente e à
família 24 horas por dia, 7 dias por semana. Ele deve escrever que abriu a
comunicação com a família alertando-os sobre os riscos do suicídio e os sinais
que a serem monitorados. Deve também entrar no prontuário que pesquisou com a
família a presença de armas em casa, de grande quantidade de remédios e a
possibilidade do paciente pular de janelas altas no seu local de trabalho ou da
sua residência.
Além disso é importante que o psiquiatra entre em contato com os colegas que já
trataram do paciente antes, para aprender com as suas experiências. Isso deve
ser incorporado ao prontuário.
Um psiquiatra prudente deve ter
no prontuário consultas formais discutidas e registradas com colegas quando ele
sentiu que o caso corria riscos de suicídio e não estava indo bem.
Em certas situações de risco o psiquiatra deve propor uma internação
voluntária. Mas pode vir a ser uma internação involuntária, com a concordância
da família, quando o paciente se recusa a aceitar essa recomendação.
Acreditamos que essas providências e procedimentos poderão ser úteis no sentido
do psiquiatra minimizar os riscos de vir a ser processado pela família de seu
paciente que suicida.
Resumo
Nos Estados Unidos o suicídio
de um paciente é a causa mais comum de psiquiatras serem processados por erro
médico. Apesar de esperar que isso não venha a ocorrer no Brasil, temo que essa
possibilidade existe. Baseado em minhas experiências de trabalho clínico
naquele país, tentei fazer algumas considerações sobre os riscos desses
processos e como eles podem ser minimizados pelo psiquiatra.
Bibliografia
Gutheil, Thomas G., Suicide, Suicide
Litigation, and Borderline Personality Disorder. Journal of Personality
Disorders, 18(3), 248-256, 2004. The Guilford Press, USA