Volume 11 - 2006
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2006 - Vol.11 - Nº 3

História da Psiquiatria

A Loucura e os Legisladores

Walmor J. Piccinini
Ana Maria G. R. Oda


Introdução

Observando as diferentes denominações da loucura e do louco através dos tempos, podemos constatar que elas guardam uma relação com as idéias a seu respeito:
Possuídos por espíritos.
Mania ou furor insano. (Século V. AC- Euclides, Sófocles) Sofrimento da alma. Perda das Faculdades Mentais.
Louco, lunático, lelé, maniático, tança, vesano, demente.
Alienado, insano (Pinel, Esquirol. Atendimento asilar).
No Brasil colonial e durante parte do Império, a ordem jurídica era determinada pelas Ordenações do Reino e nelas a loucura possuía várias denominações: "desassisados", "sandeus", "mentecaptos" ou "furiosos"; eram ali contemplados ainda os "desmemoriados" e os "pródigos" (Ordenações Filipinas. Dos Curadores que se dão aos pródigos e mentecaptos. Livro 4, título 103).
No Código Criminal do Império (1830), os doentes mentais foram denominados "loucos de todo gênero", termo que se manteve no Código Civil de 1916. A legislação que trata da loucura, mostra uma constante preocupação com a proteção das pessoas sofredoras. O modelo assistencial francês de 1838, defendido por Esquirol, foi adotado em boa parte do mundo ocidental e teve grande influência na legislação proposta por Teixeira Brandão em 1903.
No Brasil, o atendimento aos loucos era tarefa da Irmandade da Misericórdia e esteve nas mãos da Santa Casa até a proclamação da República em 1889.
A partir de 1890, o Hospício Pedro II passa a ser chamado de Hospício Nacional dos Alienados. No século XX, surgem novos nomes:
Hospício passa a ser chamado de Hospital.
Alienado agora é doente mental, depois será psicopata.
O asilado passa a ser interno.
Nos ambulatórios ele é egresso, quando oriundo da hospitalização. Torna-se paciente do ambulatório.
No consultório ele é paciente, cliente, analisando ou está em terapia.
Na perícia é o caso ou o periciando.
No serviço público ele é usuário. O mesmo vale para os planos de saúde.
Para alguns, ele passa a ser visto como consumidor.
Assim, a loucura recebe os nomes de alienação mental, insanidade, depois doença mental, transtorno mental e ultimamente, sofrimento psíquico.

A assistência ao doente mental no Império

Costuma-se citar, em tom anedótico, que o modelo de assistência trazido para o Brasil pelos portugueses era o caixote. Segundo alguns, D.Maria I (a louca), teria chegado ao Rio de Janeiro dentro de uma caixa, uma espécie de engradado. Segundo o historiador australiano Patrick Wilken, que escreveu um Império à Deriva (Ed. Objetiva, 2005), não foi assim que aconteceu. D. Maria I era tratada com muito carinho e depois que a corte se instalou no Rio de Janeiro, seu filho, D.João VI a visitava diariamente e com ela passava algum tempo. Em todo caso, pode-se questionar se o fato de ter uma pessoa com problemas mentais na família teria tornado os descendentes mais tolerantes com a loucura.
José Clemente Pereira, Provedor da Santa Casa, líder maçom e um dos artífices da independência do Brasil, numa estratégia brilhante, conseguiram vender a idéia que a maioridade de D.Pedro II fosse marcada pela construção de um asilo majestoso.
Essa mobilização, com verbas do Imperador, com loterias e com o chamado "imposto da vaidade" (venda de títulos de nobreza não-hereditários), permitiu não só a construção do Hospício Pedro II, como a remodelação de prédios da Santa Casa e outras obras de filantropia: foi construído o Cemitério do Caju, o Hospital de tuberculosos, etc. Apesar de alguns insistirem na idéia que o asilo foi construído pela pressão de um poder médico misterioso, vários estudos recentes mostram que desse acontecimento os médicos pouco participaram, apenas colaborando com componentes científicos para o discurso filantrópico. Tanto é verdade que quem mandava efetivamente no asilo eram as religiosas incumbidas dos doentes e a Mesa diretora da Santa Casa, sendo que os médicos só assumiram sua administração com a República.
No decreto de D. Pedro II, reproduzido abaixo, existem duas palavras que indicam um uso intercambiável dos termos hospício e hospital. Pedro II fundou um Hospital com o nome de Hospício, para tratar os alienados.
DECRETO no. 82 (1841)
"Desejando assinalar o fausto dia de minha sagração com a criação de um estabelecimento de pública beneficência: hei por bem fundar um hospital destinado privativamente para tratamento de alienados com a denominação de HOSPÍCIO PEDRO II o qual ficará anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia desta Corte, debaixo de minha imperial proteção, aplicando desde já para princípio de sua fundação o produto das subscrições promovidas por uma comissão da praça do comércio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, além das quantias com que eu houver por bem contribuir. Cândido José de Araújo Viana, do meu conselho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império o tenha assim entendido e faça executar com os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, 18 de julho de 1841, 20 da Independência e do Império.
Com a rubrica de SM o Imperador. Cândido José de Araújo Viana."
Nos mesmos moldes, a partir de verbas públicas, donativos e loterias, durante o Segundo Reinado foram construídos várias instituições "exclusivas para alienados", inicialmente nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará; e, já na República, nos estados de Alagoas, Paraíba, Minas Gerais e Paraná, como se vê no quadro abaixo:

Primeiros hospícios públicos para alienados no Brasil
Província/EstadoAnoEstabelecimento (município)
Rio de Janeiro1852
1878
1890
Hospício de Pedro II (Rio de Janeiro)
Enfermaria de Alienados anexa ao Hospital São João Batista (Niterói)
Colônias de São Bento e Conde de Mesquita (Ilha do Governador)
São Paulo1852
1864
1895
1898
Hospício Provisório de Alienados de São Paulo (Rua São João)
Hospício de Alienados de São Paulo (Chácara da Tabatingüera)
Hospício-colônia provisório de Sorocaba
Hospício-colônia de Juqueri (atual Franco da Rocha)
Pernambuco1864
1883
Hospício de Alienados de Recife-Olinda (da Visitação de Santa Isabel)
Hospício da Tamarineira (Recife)
Pará1873
1892
Hospício Provisório de Alienados (Belém, próximo ao Hospício dos Lázaros).
Hospício do Marco da Légua (Belém)
Bahia1874Asilo de Alienados São João de Deus (Salvador)
Rio Grande do Sul1884Hospício de Alienados São Pedro (Porto Alegre)
Ceará1886Asilo de Alienados São Vicente de Paula (Fortaleza)
Alagoas1891Asilo de Santa Leopoldina (Maceió)
Paraíba1890Asilo de Alienados do Hospital Santa Ana (João Pessoa)
Amazonas1894Hospício Eduardo Ribeiro (Manaus)
Minas Gerais1903Hospício de Barbacena
Paraná1903Hospício Nossa Senhora da Luz (Curitiba)
Maranhão1905Hospício de Alienados (São Luis do Maranhão)

Conforme informações de Moreira (1905)* e Medeiros (1977)**
* MOREIRA, J. Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil. Arquivos brasileiros de psiquiatria, neurologia e ciências afins, 1(1): 52-98, 1905.
** MEDEIROS, T. A. Formação do modelo assistencial psiquiátrico no Brasil. Dissertação de mestrado (Universidade Federal do Rio de Janeiro), 1977.

Verifica-se que o percurso dos alienados nas várias províncias foi semelhante, indo das enfermarias dos hospitais das Santas Casas aos hospícios exclusivos. Apenas em São Paulo, o hospício de alienados não foi precedido de assistência sistemática em hospital de caridade, talvez pela precoce decisão do governo provincial de custear-lhes um asilo próprio. Cumpre ressaltar que, assim como no Hospício Pedro II, nesses hospícios não havia atuação significativa de médicos, pelo menos até o fim do Império. Somente no início do século XX, com algum custo, os médicos conseguiriam deslocar as poderosas administrações leigas das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que prestavam serviços nesses locais,e os hospícios foram se tornando, gradativamente, estabelecimentos médicos (Oda e Dalgalarrondo, 2005). Pode-se dizer que a Cena Inaugural da moderna psiquiatria brasileira foi a posse de Juliano Moreira na direção do Hospital Nacional dos Alienados e a conseqüente transposição para os trópicos de um modelo de assistência europeu.

Leis Específicas para os Doentes Mentais

A seguir apresentamos quadros comparativos entre as leis de 1903 e de 1934, do projeto de lei de 1989 e da lei aprovada em 2001, quanto às ementas, aos respectivos primeiros artigos, regimes de internação, modelos assistenciais propostos e principais direitos assegurados aos doentes mentais.

· Ementas:
- Decreto no. 1.132, de 1903 (Rodrigues Alves). "Reorganiza a assistência a alienados."
- Decreto no. 24.559, de 1934 (Getúlio Vargas). "Dispõe sobre a proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas."
- Lei 10.216, de 2001. "Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental."
http://www.abpbrasil.org.br/legislacao/resolucoes/
Projetos antecedentes da Lei 10.216:
Projeto de Lei 3.657, de 1989 (Deputado Paulo Delgado): "Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta e internação psiquiátrica compulsória."
Substitutivo do Senado ao projeto de lei da Câmara no. 8, de 1999 (Senador Sebastião Rocha): "Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos psíquicos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental."

· Primeiros artigos:

Decreto de 1903
"O indivíduo que, por moléstia mental, congênita ou adquirida, comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a um estabelecimento de alienados".
§ 1o A reclusão, porém, sé se tornará efetiva em estabelecimento desta espécie, quer público, quer particular, depois de provada a alienação.
§ 2o Se a ordem pública exigir a internação de um alienado, será provisória sua admissão em asilo público ou particular, devendo o diretor do estabelecimento, dentro de 24 horas, comunicar ao juiz competente a admissão do enfermo e relatar-lhe todo o ocorrido a respeito, instruindo o relatório com a observação médica que houver sido feita."

Decreto de 1934
"A Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental terá por fim:
a) proporcionar aos psicopatas tratamento e proteção legal;
b) Dar amparo médico e social não só aos predispostos a doenças mentais, como também aos egressos dos estabelecimentos psiquiátricos;
c) Concorrer para a realização da higiene em geral e da profilaxia das psicopatias em especial."

Projeto 1989
"Fica proibida, em todo o território nacional, a construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e a contratação ou financiamento, pelo setor governamental, de novos leitos em hospital psiquiátrico."

Lei 10.216, de 2001
"Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtornos mentais, de que trata esta lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra."

· Regimes de Internação:

Decreto de 1903
Nos hospitais públicos ou privados, era feita por requisição de autoridade pública ou por algum particular.
Necessários documentos de identificação do doente e atestados médicos recentes declarando a alienação.
Permitido ao doente, a qualquer tempo, reclamar novo exame de sanidade mental ou denunciar a falta deste.
A saída do doente não seria recusada se solicitada por quem havia requerido a internação, salvo perigo iminente para o enfermo ou para a ordem pública.
Em caso de recusa, o diretor do hospital deveria relatar as razões da recusa à autoridade competente, para julgamento da procedência.

Decreto de 1934
A internação podia ser feita por ordem judicial ou requisição de autoridade policial, a pedido do próprio paciente ou solicitação de seu cônjuge, pai, filho ou parente até 4o grau, outro interessado ou por autoridade em geral *.
Era necessário atestado médico ou guia de internação do médico do hospital.
Definia que poderiam ser internados "os psicopatas, os toxicômanos e intoxicados habituais".
Não permitia a presença de doentes mentais em hospitais gerais, exceto em seções especiais.
Estabelecia três regimes de internação: aberto, fechado e misto. A primeira para pacientes que "não recusavam sua internação de modo formal", a segunda para aqueles internados por determinação judicial ou que se mostrassem perigosos ou com risco de fuga.
Os que tivessem apenas suspeita de doença mental deveriam ficar em seções especiais, antes da internação definitiva.
Alta poderia ser dada quando pedida pelo doente, pela família ou por quem o havia internado, desde que não constituísse perigo, etc. .... (idem 1903).
*(1934): "Art. 9o - Sempre que, por qualquer motivo, for inconveniente a conservação do psicopata em domicílio, será o mesmo removido para estabelecimento psiquiátrico." "Art. 10 - O psicopata ou indivíduo suspeito que atentar contra a própria vida ou de outrem, perturbar a ordem ou ofender a moral pública, deverá ser recolhido a estabelecimento psiquiátrico para observação ou tratamento."

Projeto de 1989
Define "internação compulsória" como aquela realizada sem o expresso desejo do paciente. Esta deveria ser comunicada, pelo médico, no prazo de 24 horas, à autoridade judiciária local. A autoridade ouviria o paciente, médico e equipe técnica do serviço, familiares e emitiria parecer sobre a legalidade da internação, em 24 horas.

Substitutivo de 1999
Internação indicada somente quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Só se dá com laudo médico circunstanciado, de profissional devidamente registrado no CRM do estado. O tratamento oferecido deve ser integral, multidisciplinar.
Define internação voluntária (com o consentimento do usuário - escrito), involuntária (sem seu consentimento e a pedido de terceiro) e compulsória (determinada pela justiça).
A internação psiquiátrica involuntária de ser comunicada, em 72 horas, ao Ministério Público Estadual, pelo responsável técnico do estabelecimento, o mesmo na respectiva alta.
O término da internação poderá ser solicitado por escrito pelo paciente (no caso de voluntária) ou por seus familiares (no caso de involuntária) ou determinada pelo médico assistente, em ambos os casos.
Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e óbito devem ser comunicados aos familiares e à autoridade sanitária, no máximo em 24 horas.
Proíbe a internação em instituição asilar, sem características terapêuticas.

Lei 10.216, de 2001
Idem, exceto pela exclusão do parágrafo 1o do artigo 10, que previa revisão da internação involuntária, a partir de denúncia ou solicitação de familiar ou representante legal, por uma equipe multiprofissional independente.

· Modelos Assistenciais:

Decreto de 1903
Centralizado (estadual, nacional), centrado no Hospício e na atuação médica.
Isolamento necessário ao tratamento.
Art. 3o: "O enfermo de alienação mental, poderá ser tratado em domicílio, sempre que lhe forem subministrados os cuidados necessários."
Parágrafo único - Se, porém, a moléstia mental exceder o período de dois meses, a pessoa que tenha à sua guarda o enfermo comunicará o fato à autoridade competente, com todas as ocorrências relativas à moléstia e ao tratamento empregado."

Decreto de 1934
Centralizado, hospitalocêntrico. A reinserção social é objetivo periférico, só para certos doentes, sob supervisão do hospício. Grande preocupação com o controle médico e social dos loucos (perigosos).
"Art. 3o § 4o: Não é permitido conservar mais de três doentes mentais em um domicílio (...)".
Art. 8o: A fim de readaptar a vida social os psicopatas crônicos, tranqüilos e capazes de viver no regime da família, os estabelecimentos públicos poderão manter em seus arredores um serviço de assistência heterofamiliar.

Projeto de 1989
Desospitalização, substituição do hospital por outras instâncias. Antipsiquiátrico, contra o enfoque médico da loucura.
Proíbe a construção de novos hospitais psiquiátricos e determina a desativação dos existentes.
Define como "recursos não manicomiais": unidade psiquiátrica em hospital geral, hospital-dia, hospital-noite, centros de atenção e de convivência e pensões.

Substitutivo de 1999
Desospitalização, rede de serviços diversificada, comunitária, atenção menos restritiva possível, multidisciplinar.
Previa a possibilidade de novos leitos psiquiátricos, se necessário. Define estabelecimento de saúde mental como "instituição ou unidade que ofereça assistência em saúde aos portadores de transtornos psíquicos."
Não menciona os tipos de serviços, nem define onde se dará a internação.

Lei 10.216, de 2001
Idem, exceto pela supressão do artigo 4o do Substitutivo: "O poder público destinará recursos orçamentários para a construção e manutenção de uma rede de serviços de saúde mental diversificada e qualificada, sendo que a construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e a contratação ou financiamento, pelo poder público, de novos leitos em hospitais psiquiátricos somente será permitida nas regiões onde não exista estrutura assistencial adequada, desde que aprovada pelas Comissões Intergestoras e de controle social dos três níveis de gestão do SUS." *

*Não prevê, mas não proíbe a construção de novos hospitais nem a contratação de leitos psiquiátricos.

· Direitos dos doentes mentais:

Decreto de 1903
Internação provisória até prova de alienação.
Direito a reclamar exame de sanidade e de solicitar alta. Comissão do governo deveria fiscalizar os estabelecimentos.
"Art. 9o - Haverá ação penal, por denúncia do Ministério Público, em todos os casos de violência e atentado ao pudor, praticados nas pessoas dos alienados.
Art. 10 - É proibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos.

Decreto de 1934
"Art. 26: Os psicopatas, assim declarados por perícia médica processada de forma regular, são absoluta ou relativamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil."
Proteção entendida como administração provisória ou curatela. Internação em manicômio judiciário apenas por ordem de juiz. Na internação voluntária, direito de ter alta, "salvo em caso de perigo iminente.., etc.". Direito de solicitar novo exame de sanidade mental.
A correspondência dos doentes, dirigida às autoridades, não poderia ser violada nem impedida de prosseguir.
Comissão do governo para assegurar os direitos dos psicopatas.

Substitutivo de 1999 e Lei 10.216, de 2001 (substituído "psíquico" por "mental").
É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção da saúde aos portadores de transtornos mentais, "com a devida participação da sociedade e da família" e sem qualquer discriminação (Art. 1o).
Nos atendimentos em saúde mental, a pessoa, seus familiares ou representantes legais deverão ser formalmente cientificados dos seguintes direitos:
"Art. 2o. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental":
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III-ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração,
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII-ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
"Art. 11: Pesquisas científicas, para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde."

Observações sobre as leis e seus contextos

Cada uma das leis citadas reflete, em seu texto, as condições históricas específicas em que foram geradas e as noções sobre a doença mental vigentes na sociedade brasileira, em cada época.
O Decreto de 1841 traz a marca da benemerência do monarca e, embora tenha sido também uma reivindicação da Academia Imperial de Medicina, vimos que o Hospício se destinou, primordialmente, a recolher os insanos sob os cuidados de uma ordem religiosa e sob a direção da Santa Casa de Misericórdia, sendo antes uma vitória da filantropia que da incipiente corporação médica.
A Lei de 1903 refletiu a consolidação da psiquiatria como especialidade médica, no Brasil. No contexto da República nascente, representou mais um dos esforços civilizadores, pela modernização do país: um país moderno deveria garantir o direito de tratamento dos loucos, protegendo-os das reclusões carcerárias.
O Decreto de 1934 expressou um momento em que a medicina defendia a profilaxia e a higiene (mental, inclusive) como forma de combater os muitos males que atingiam o povo. Consolida-se, então, o papel do médico psiquiatra como perito na determinação da doença mental. Em termos políticos, recorde-se que o golpe de 1930 levou ao poder Getúlio Vargas, iniciando um período de centralização de poder, autoritarismo e restrição de liberdades individuais, o que de certa forma se reflete no referido decreto.
O projeto de lei de 1989 sintetizou a justa percepção sobre a necessidade urgente de reformar a assistência psiquiátrica e de lutar pela garantia dos direitos de cidadania dos doentes mentais, tendo surgido num momento de retomada na normalidade democrática no país. Ele teve o mérito de provocar a discussão do tema por toda a sociedade. Entretanto, seu caráter fortemente antipsiquiátrico refletiu disputas corporativas, equivocando-se ao colocar os procedimentos médicos exclusivamente no campo ideológico, desconsiderando os seus aspectos técnicos.
Finalmente, pode-se dizer que a Lei 10.216 (2001) é, em essência, uma carta de intenções. Nela se incluem os princípios para a proteção dos enfermos mentais e para a melhoria da atenção em saúde mental (ONU, 1991), já apoiados há muito pela ABP e o pelo CFM.
A nosso ver, essa Lei expressa o resultado de intensos debates e embates entre representantes de entidades corporativas de profissionais de saúde, de associações civis, de usuários e familiares, de grupos políticos e do governo.
Em resumo, a Lei atual trata da garantia dos direitos básicos do doente mental, inclusive o de ter acesso aos melhores recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis, numa rede de serviços diversificada; ela reconhece a internação psiquiátrica integral como mais um dos recursos terapêuticos válidos, desde que seja de boa qualidade, ressaltando ainda a necessidade de desenvolvimento de políticas específicas de desospitalização.

Referências bibliográficas
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - Decreto 1.132, de 22 de dezembro de 1903.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - Decreto 24.559, de 3 de julho de 1934.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 3.657, de 12 de setembro de 1989. (Deputado Paulo Delgado).
BRASIL. SENADO FEDERAL. Redação final do substitutivo do Senado ao projeto de lei da Câmara no. 8, de 1991 (3.657/89, na casa de origem), de 21 de janeiro de 1999. (Senador Sebastião Rocha).
BRASIL. Lei 10.216, de 6 de abril de 2001
Todas as leis disponíveis em: http://www.planalto.gov.br
ODA, A. M. G. R., DALGALARRONDO, P. História das primeiras instituições para alienados no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 12 (3): 983-1010, set.-dez. 2005. Texto integral disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000300018&lng=en&nrm=iso
ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. 3 vol. [Edição fac-símile do Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, 14.ed., Rio de Janeiro, Typ. do Instituto Philomathico, 1870].


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