Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2002 - Vol.7 - Nº 9

História da Psiquiatria

Vida e obra de Nise da Silveira

Fernando Portela Câmara

Nise da Silveira (15.02.1905 – 30.10.1999) foi singular na psiquiatria brasileira. Pequenina e frágil, era uma gigante em força e coragem com que defendeu e lutou por suas idéias no âmbito da psiquiatria institucional. Ela foi pioneira na terapia ocupacional, introduzindo este método no Centro Psiquiátrico Pedro II do Rio de Janeiro e, segundo suas próprias palavras, entrara na Psiquiatria "pela via de atalho da ocupação terapêutica, método então considerado pouco importante para os padrões oficiais".

Nise era alagoana e fez seus estudos médicos na Faculdade de Medicina da Bahia (1921-1926) e foi a única mulher numa turma de 157 alunos. Colou grau com a tese "Ensaio Sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil" (28.12.1926) e retornou à terra natal em seguida, mas somente por um breve período, pois, com a morte prematura do pai, decidiu vir para o Rio de Janeiro (1927) onde estabeleceu suas raízes intelectuais e profissionais. Já casada, com seu conterrâneo e colega de turma, o sanitarista Mario Magalhães, engajou-se nos meios artísticos e literários e freqüentava ativamente os círculos marxistas, junto como marido, e escrevia sobre medicina para o jornal A Manhã (artigos que eram reproduzidos no Jornal de Alagoas, jornal onde seu pai fora jornalista e diretor). Em 1932 estagiou na famosa clínica neurológica de Antônio Austregésilo, e em 1933 entrou para o serviço público, através de concurso, trabalhando no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, na Praia Vermelha, pertencente da antiga Divisão de Saúde Mental.

O envolvimento de Nise com o marxismo valeu-lhe 15 meses de reclusão no presídio da Frei Caneca, no período de 1936-1934, local onde conheceu Graciliano Ramos, que a descreve no seu famoso livro "Memórias do Cárcere" (José Olympio Ed., RJ, 1953): "... lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço. O marido também era médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento."

Segundo a própria Nise, ela fora denunciada por uma enfermeira que mostrou à polícia política de Getúlio Vargas, liderada então pelo feroz Filinto Müller, os livros marxistas "subversivos" que ela guardava na sua estante. Sobre esta prisão, há uma anedota que Nise deliciava-se em contar, tanto porque ilustrava sua total descrença na existência do "embotamento afetivo" dos esquizofrênicos, fruto de sua experiência em terapêutica ocupacional com estes doentes. Luiza, uma esquizofrênica que todas as manhãs levava o café da Nise, ao saber que esta tinha sido presa, aplicou uma formidável sova na infeliz enfermeira que denunciara sua querida doutora. Nise terminava este relato dizendo que aquilo fora "uma verdadeira reação afetiva", e ria satisfeita, para então concluir seriamente: "o esquizofrênico não é indiferente, não é não".

Livre da prisão vagou na semiclandestinidade ao lado do marido devido ao risco de ser novamente presa. É neste período que se dedica a uma profunda e reflexiva leitura de Spinoza, redigindo suas conclusões e questionamentos sob formas de cartas que muitos anos mais tarde viria publicar. Em 17 de abril de 1944 foi reintegrada ao serviço público, sendo lotada no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. Nise sentia-se inapta para exercer a tarefa de psiquiatra, pois, era ferozmente contra os choques elétrico, cardiazólico e insulínico, as camisas de força, o isolamento, a psicocirurgia, e outros métodos da época que considerava extremamente brutais e recordavam-lhe as torturas do Estado Novo aplicada aos dissidentes políticos, e que ela conhecia tão bem. Recordo também o horror visceral dela contra a farra do boi, e penso que isto podia ser também um reflexo do seu horror a torturas. De qualquer modo, sua postura humanista a faria ser uma pioneira das idéias de Laing e Cooper (antipsiquiatria), Basaglia (psiquiatria democrática) e Jones (comunidade terapêutica).

No mesmo ano que entrou no Hospital Pedro II (antigo Centro Psiquiátrico Nacional), Nise colaborou com o psiquiatra Fábio Sodré na introdução da TO naquela instituição. Em 1946, sabendo que Nise havia colaborado na implantação da TO no HPII, o então do diretor deste hospital, Paulo Elejalle, entusiasta desta forma de reabilitação psiquiátrica, pediu a ela para criar a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico Pedro II, neste mesmo ano. Em 1954 o STOR foi regulamentado pelo próprio Paulo Elejalle através de uma ordem de serviço, e oficializado em 9 de agosto de 1961 pelo decreto presidencial no 51.169. Nise dirigiu o STOR desde a sua fundação, em 1946, até sua aposentadoria compulsória em 1974.

O STOR tinha alguns setores especializados, mas foi a criação do atelier de pintura que o tornaria famoso. Neste empreendimento notável, Nise foi ajudada pelo estagiário Almir Mavignier, então com 21 anos e funcionário da secretaria do HPII. Almir viria se tornar um dos primeiros pintores abstratos do Brasil e professor de pintura da Escola Superior de Artes Plásticas de Hamburgo. Ele organizou a "Exposição de Arte Psicopatológica" no I Congresso Internacional de Psiquiatria, em Paris, 1950, e ainda em 1957, a mostra "A Esquizofrenia em Imagens", durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. A colaboração de Almir no STOR duraria até 1951, quando então este se transferiu definitivamente para Ulm, Alemanha.

Em pouco tempo o atelier do STOR ganhou notoriedade e a produção dos pacientes tornou-se um material impressionante sobre as imagens da psicose. Já em 1947, uma exposição sobre esta forma de arte foi organizada pelo Ministério de Educação e Cultura, outra em 1949, no Museu de Arte Moderna de São Paulo ("nove Artistas de Engenho de Dentro"), com obras escolhidas pelo crítico francês Leon Degand, e ainda neste mesmo ano outra exposição na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Para preservar e pesquisar o acervo artístico dos psicóticos (que reúne cerca de 350 mil obras), Nise criaria o internacionalmente famoso Museu de Imagens do Inconsciente em 1952, referência internacional e objeto de estudos e visitas, a para mante-lo foi criada em 1974 a Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, celebrando um convênio com a FINEP e a SEPLAN. Em 1975 dar-se-ia a ultima grande exposição deste acervo na Fundação Cultural do Distrito Federal, Brasília, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na Fundação Palácio das Artes, em Belo Horizonte e na Universidade do Paraná.

Para Nise, a terapia ocupacional era uma psicoterapia não verbal, única e apropriada à reabilitação de psicóticos. Ela ressaltava o alcance desta terapia para além das formas convencionais de psicoterapia (verbais), ao constatar que a comunicação com os esquizofrênicos graves só poderia ser feita inicialmente em nível não verbal. A terapia ocupacional permitia a eles, segundo suas próprias palavras, "a expressão de vivências não verbalizáveis que no psicótico estão fora do alcance das elaborações da razão e da palavra". Nise não aceitava que os esquizofrênicos tivessem embotamento afetivo, pois, acreditava que a TO negava eloqüentemente esta afirmação, pois, toda aquela produção artística seria uma demonstração cabal da preservação da afetividade nestes doentes, embora guardadas em seu íntimo, como que protegida. Dentro desta perspectiva, o psicótico não era apenas uma relação de sintomas positivos e negativos, era preciso proporcionar ao paciente um ambiente onde ele pudesse encontrar o suporte afetivo que o ajudasse a retornar ao mundo externo. Temos aí o fundamento da psiquiatria de Nise e percebe-se claramente seu pioneirismo no movimento da psiquiatria antiasilar.

Nise introduziu ainda animais (gatos e cães) em seu serviço como forma de atrair a afetividade dos psicóticos estabelecendo uma ponte com o mundo real. O cuidar dos animais tinha um efeito positivo e regulador nestes pacientes, e esta relação com animais acompanhou-a por toda a vida. Ela nunca esclareceu totalmente a razão de manter estes animais, como era típico seu, mas sabemos que isto era uma tentativa de extrair o afeto de seus pacientes, ou pelo menos proporcionar um estímulo ambiental para que eles se mantivessem próximos da superfície. Ela escreveu apenas um pequeno livro sobre sua experiência com gatos, seu animal preferido (v. relação de suas obras).

Nise estudou a TO sob todos os pontos de vista da época (Kraepelin, Bleuler, Schneider, Simon, Freud, Jung) justificando-a sob todos os ângulos, sem contudo subordinar-se intelectualmente a nenhuma destas escolas, apesar de ter encontrado na psicologia profunda de Jung a base para explicar a produção artística dos psicóticos no atelier de pintura do STOR, bem como a possível linguagem para entender o processo da psicose. Em 1955, visando propagar as idéias de Jung entre nós e criar uma ponte entre o Museu de Imagens do Inconsciente e a sociedade, criou o Grupo de Estudos C. G. Jung (que funciona ainda na Rua Marques de Abrantes no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro). Este grupo, que foi presidido por Nise até a sua morte, foi oficializado em 1968 e mantinha uma publicação muito irregular chamada "Quaternio", até agora contando com poucos números publicados. Em 1956 ela criou a Casa das Palmeiras, uma instituição externa para atendimentos dos padecentes mentais sem internação ou restrição de liberdade. Aí se iniciou um projeto nos moldes em que Nise concebia a psiquiatria, e que foi precursor do atual hospital-dia, lares abrigados e centros de convivência. A Casa das Palmeiras foi reconhecida como de utilidade pública por decreto municipal em 1963.

O embasamento de sua experiência com a arte dos psicóticos, e a descoberta da Psicologia Junguiana como o suporte teórico que necessitava para compreender toda aquela a linguagem do inconsciente manifestada naquele acervo, fez Nise evoluir naturalmente da TO para a Psicologia Profunda e tornar-se a maior autoridade em Psicologia Junguiana no Brasil. Contudo, afirmava sempre que seu conhecimento prático de psicologia aprendera lendo Machado de Assis na biblioteca de seu pai, e seus conhecimentos do homem vieram das suas leituras de Marx. Segundo Adriano Pires de Campos e Miriam Ejzenberg, que conviveram muito de perto com ela, Nise também conhecia profundamente a obra de Freud, que lia tanto na edição inglesa quanto na espanhola. Tamanho era o seu conhecimento da obra de Freud, que alguns psicanalistas freudianos que a freqüentavam chamavam-na carinhosamente de "le petit Freud". De fato, Nise nunca deixou de considerar as idéias de Freud em todas as suas reflexões, mas somente em Jung ela encontraria o respaldo para a arte dos seus psicóticos.

O encontro de Nise com a psicologia Junguiana não foi obra do acaso. Ao iniciar a terapia ocupacional com psicóticos no CPPII, usando a pintura, o desenho e a modelagem, logo ela percebeu algo singular: uma profusão de figuras circulares ou "mandalas", e a recorrência de temas mitológicas e religiosas, e logo percebeu que estava lidando com uma produção viva do inconsciente daqueles pacientes. Foi em Jung que ela encontrou semelhante observações e um sistema teórico que procura interpretar estes achados.

Em 1954 travou contato com Jung através de cartas, onde discutia as mandalas de seus psicóticos. Desde então, Jung impressionou-se com o material do Museu de Imagens do Inconsciente e aconselhou Nise a estudar mitologia e religiões comparadas para encontrar a fonte ou arquétipos de tudo aquilo, que ele afirmava, como ela já percebera lendo suas obras, ser a manifestação do inconsciente coletivo. Jung lhe enfatizara que o inconsciente coletivo fala a linguagem dos mitos, que os mitos resumem toda experiência ancestral da humanidade simbolizada em figuras que ele denominou "arquétipos", e que o inconsciente coletivo era o depositário desta experiência e, portanto, das representações arquétipos.

Jung explicaria a Nise que as mandalas de seus pacientes era uma reação de compensação do inconsciente ao caos que a psicose produzia na consciência, uma tentativa autógena de reunificação do ego cindido. Mostrou-lhe também que a predisposição dos psicóticos para reproduzirem imagens iguais ou semelhantes era uma tentativa de vencer a ruptura do ego, utilizando um material arcaico de situações já vividas pela humanidade e condensadas nos motivos mitológicos (arquétipos), material este que eram usados como tentativas de solução para o ego rompido. Confirmando, pois, para Nise que a linguagem das pinturas, modelagens e desenhos de seus artistas psicóticos seria a dos arquétipos, e que isto era uma ponte para ela entender a psicose, a Psicologia Junguiana marcou definitivamente a vida da eminente psiquiatra brasileira.

O primeiro encontro entre Nise e Jung se deu em 1957, no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. Jung inaugurou a exposição "Esquizofrenia em Imagens", do Museu de Imagens do Inconsciente, na presença da Nise que fora para a Suíça com bolsa do CNPq. Esta mostra causou uma enorme sensação e foi o reconhecimento mundial definitivo das idéias e do trabalho de Nise da Silveira. Nise completou sua supervisão em psicanálise Junguiana com Marie Louise von Franz, a assistente de Jung, viajando para Zurique algumas vezes e também mediante troca de cartas com Franz, resultando uma estreita e profícua amizade entre essas duas grandes mulheres.

Esta carreira empreendedora foi à marca de Nise da Silveira, aliadas à paixão, tenacidade e espírito de aventura, que a fizera resistir e manter-se em todas as adversidades e lutas profissionais que enfrentaria ao longo de seus 94 anos de vida. Nise era indômita, seguia suas próprias idéias e tinha seus próprios projetos. Isto já se configurava na garota de 16 anos que, contrariando o desejo e expectativas de sua mãe em torna-la pianista como ela, resolveu estudar medicina, veio para o Rio de Janeiro, e daí ganhou o mundo e marcou a psiquiatria brasileira. Uma figura singular.

Produção literária:

Detentora de numerosos títulos, comenda e medalhas de mérito, Nise teve amplo reconhecimento em vida de sua obra e contribuição para a psiquiatria. Publicou alguns artigos em jornais e revistas populares, e seus artigos acadêmicos são poucos, todos em língua portuguesa e em revistas nacionais. Destes, destaco os que foram publicados na Revista de Medicina, Cirurgia e Farmácia (Rio de Janeiro) como os mais importantes, em minha opinião,

  • Estado mental dos afásicos. Set. 1944.
  • Considerações teóricas sobre ocupação terapêutica. Jun. 1952.
  • Contribuição aos estudos dos efeitos da leucotomia sobre a atividade criadora. Jan. 1955.

Assim como sua resenha sobre sua experiência com TO no Hospital Pedro II:

  • 20 anos de Terapêutica Ocupacional em Engenho de Dentro (1946-1966). Revista Brasileira de Saúde Mental, v. 12 (número especial), 1966.

Nise publicou 10 livros, abaixo relacionados:

  • Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil. Tese de doutoramento, Faculdade de Medicina da Bahia, Imprensa Oficial do Estado, Salvador, 1926.
  • Jung: Vida e Obra. Este excelente livro introdutório ao pensamento Junguiano teve muitas edições, sucessivamente pela José Álvaro Ed. (Rio de Janeiro, 1968) e Paz e Terra (Rio de Janeiro, 1975, 1976, 1985, 1999), com várias tiragens em cada edição.
  • Terapêutica Ocupacional: Teoria e Prática. Casa das Palmeiras, Rio d Janeiro, 1979.
  • Imagens do Inconsciente. Alhambra, Rio de Janeiro, 1981.
  • Casa das Palmeiras. A emoção de lidar. Uma experiência em psiquiatria. Alhambra, Rio de Janeiro, 1986.
  • O Museu de Imagens do Inconsciente – História. In: Museu de Imagens do Inconsciente, MEC, Rio de Janeiro, pp. 13-29, 1980.
  • Artaud: a nostalgia do mais. Numen Ed., Rio de Janeiro, 1989, juntamente com outros autores: Rubens Corrêa, Marco Lucchesi e Milton Freire.
  • O mundo das imagens. Ed. Ática, São Paulo, 1992.
  • Cartas a Spinoza. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1995.
  • Gatos, a emoção de lidar. Léo Christiano Editorial, Rio de Janeiro, 1998.

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