Volume 7 - 2002 Editor: Giovanni Torello |
Fevereiro de 2002 - Vol.7 - Nº 2 Psicanálise em debate
MAL DE ARQUIVO – As vicissitudes da memória segundo Derrida Dr.
Sérgio Telles
"Mal de Arquivo – Uma impressão freudiana" é uma conferência de Derrida pronunciada em Londres, no dia 5 dejunho de 1994, no colóquio internacional "Memória, a questão dos arquivos", organizado por iniciativa de René Major e Elizabeth Roudinesco e patrocinada pela Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld. O enigmático título logo fica esclarecido quando lembramos que arquivo é o locus da memória, dos registros do passado, da história. A descoberta freudiana, por sua vez, tem amplas repercussões na questão da memória, dos arquivos e da história. Os conceitos derivados do inconsciente, como repressão, censura, negação, esclarecem e iluminam aspectos fundamentais da historiografia moderna. Dizendo de outra forma, depois da psicanálise não é possível ter nenhuma visão ingênua sobre a memória, os arquivos, os registros históricos que guardam o passado. Com Freud, a memória e a história só podem ser consideradas como textos que sofreram inúmersas revisões decorrentes de repressões, negações, apagamentos e censuras. A memória é a própria essência do psiquismo, diz Derrida (p.185 ). De fato, os modelos de aparelho psíquico criados por Freud tentam explicar como ficam gravados os processos de percepção em memórias conscientes e inconscientes. Mal de arquivo vai retomar uma antiga preocupação de Derrida, abordada anteriormente no trabalho "Freud e a cena da escritura", uma conferência pronunciada no Instituto de Psicanálise de Paris, no seminário de André Green, em l966. A leitura destes dois textos separados por quase trinta anos dá mostras da organicidade do pensamento de Derrida, que retoma e desenvolve temas anteriormente visitados. Mal de arquivo enfoca à questão da memória, relacionando-a, por um lado, com as inovações tecno-científicas, indagando até que ponto poderão elas repercutir no campo psicanalítico e, noutro, com a pulsão de morte e o poder, aspecto que – de certa forma – é ilustrado com a questão de ser ou não a psicanálise uma "ciência judáica", no que Derrida se apóia num texto de Yosef Haym Yerushalmi, importante historiador do judaismo de origem norte-americana. Derrida mostra a dupla raiz da palavra arquivo, arkhê, que implica começo e comando (arconte, o que comanda). Esses significados linguísticos expõem uma verdade social e histórica - a relação entre o poder e o arquivo. É o poder quem detém o arquivo, é ele quem dispõe das informações, organizando uma história dentro de seus interesses, o que – evidentemente - tem decisivas consequências políticas. Se isso ocorre na historiografia em geral, não poderia ser diferente na história da própria psicanálise. Também aqui o poder institucional mantém uma história "oficial", que tem trazido inúmeros problemas para a psicanálise, como o escândalo em torno de Jeffrey Moussaief Massson, nos anos 80, à frente dos Arquivos Freud. O resultado deste episódio foi o fechamento de parte dos Arquivos até o ano de 2100. Essa politica oficial que privilegia o segredo tem dado margem a um revisionismo histórico da psicanálise, realizada principalmente nos Estados Unidos, altamente prejudicial. A ligação entre arquivo e poder remete à pulsão de morte. O poder está permanentemente arquivando e destruindo o arquivo, como a própria pulsão de morte, que está permanentemente arquivando – tirando da vida, desvitalizando e registrando, e permanentemente tentando destruir o próprio arquivo, a própria lembrança. Ou seja, o que ocorre externamente nas relações políticas organizadas pelo poder é correlato do que ocorre internamente, no mundo psíquico, onde a criação das facilitações (Bahnungen) da passagem da força, da quantidade, e a repetição destas facilitações como trajetos preferenciais da energia – teorias expostas por Freud no "Projeto" e minuciosamente estudadas por Derrida em "Freud e a cena da escritura" – são considerados por Derrida como a presença da pulsão de morte no exato momento em que se está constituindo o aparelho psíquico, o que mostraria a simultaneidade da pulsão de morte e o estabelecimento e viabilização da vida psíquica. Diz Derrida: "Não é já a morte, num princípio de uma vida que só pode defender-se contra a morte pela economia da morte, pela diferância, pela repetição, pela reserva? (...) A vida já está ameaçada pela origem da memória que a constitui e pela facilitação à qual resiste, pela efração que não pode conter, senão repetindo"(p.186-7). Dizendo de outra forma, a repressão está permanentemente possibilitando o mal de arquivo, o esquecimento, o apagamento da memória. Ao falar de arquivo de memórias, Derrida prende-se aos avanços da tecno-ciência de hoje, com a cibernética, a microeletrônica e a computação, que criaram possibilidades técnicas de arquivamento insuspeitados. Sabedor da satisfação de Freud com a descoberta do "bloco mágico", pequena brincadeira que possibilitou uma pertinente descrição dos processos de inscrição da percepção em registros consciente e inconsciente, Derrida se pergunta como Freud usaria os novos modelos de arquivamento eletrônicos e em que isso poderia ajudar-lhe na confecção de novos modelos do aparelho psíquico. É claro que ao colocar a questão no passado, Derrida se pergunta qual seria o impacto destas atuais técnicas na prática da psicanálise e o que impediria os analistas de hoje de se aventurarem por estas áreas. Se até aqui Derrida coloca a questão relacionada ao objeto teórico da psicanálise, na possível pesquisa de novos modelos de aparelho psíquico que levassem em conta os avanços da tecno-ciência, por outro lado, se pergunta como esses avanços teriam influenciado os protocolos da psicanálise, suas atas, seus arquivos, a correspondência entre seus primeiros membros. Pensa que se houvesse tais facilidades naquela ocasião, a história da psicanálise seria totalmente diferente. Derrida desconstrói a idéia de arquivo, ao propor que não é o conteúdo do arquivo o que vai ser o determinante no processo de arquivamento, mas a técnica de arquivamento é que vai decidir o que pode ou deve ser arquivado: "Isso significa que no passado a psicanálise (não mais do que tantas outras coisas) não teria sido o que foi se o e-mail, por exemplo, tivesse existido. E no futuro não será mais o que Freud e tantos psicanalistas anteciparam, desde que o e-mail, por exemplo, se tornou possível". Acostumados, como já estamos, ao uso do e-mail, talvez muitos de nós não nos damos conta da imensa revolução por ele trazida. Por isso é importante a opinião de Derrida sobre o mesmo, mostrando que não só a psicanálise dele sofrerá a influência: "Mas privilegio também o índice do e-mail por uma razão mais importante e mais evidente: porque o correio eletrônico está hoje, mais ainda que o fax, em vias de transformar todo o espaço público e privado da humanidade e, portanto, o limite entre o privado, o segredo (privado ou público) e o público ou o fenomenal. Não é somente uma técnica no sentido corrente e limitado do termo: em um rítmo inédito, de maneira quase instantânea, esta possibilidade instrumental de produção, de impressão, de conservação e de destruição do arquivo não pode deixar de se acompanhar de transformações jurídicas e, portanto, políticas. Estas afetam nada menos que o direito da propriedade, o direito de publicar e de reproduzir" (p.29-30). Isso poderia ser ilustrado com a presença da pornografia na internet, que tornou caduco todo o arsenal jurídico que reprimia fortemente a publicação, divulgação e venda de produtos considerados obcenos e distribuidos pelos orgãos estatais, tal como mostrei em artigo anterior nesta coluna. A segunda parte de "Mal de arquivo" sustenta-se num longo comentário de Derrida ao último capítulo do livro "Freud’s Moses – Judaism terminable and interminable" de Yerushalmi. É conhecido por todos o esforço de Freud em fazer com que a psicanálise não fosse considerada uma "questão judáica", o que o fez dar uma excessiva importância a Jung, o "principe herdeiro" que não permitiria que psicanálise ficasse restrita ao gueto. Longe já vai o terror nazista, o que autoriza Yerushalmi exigir de Freud uma declaração que explicite as profundas relações que a psicanálise tem com o judaísmo, apesar de ter, ele mesmo (Yerushalmi), uma afirmação desta ordem por parte de Freud, obtida em correspondência particular para Enrico Morselli, em 1926. Ali diz Freud: "não tinha certeza de que a psicanálise fosse, como ele (Enrico Morselli) pensava, um produto do espírito judaico, mas que, se assim fosse, (Freud) não ficaria envergonhado" (p67) Yerushalmi pensa que Freud reprimiu – sob os eflúvios de um mal de arquivo – a importância do judaísmo em sua obra e, neste sentido, faz uma interessanate descoberta. Nota que Freud, como que arrependido, acrescenta – em 1935 - uma frase a seu trabalho "Um estudo autobiográfico" de 1929. Ali diz: "O fato de ter mergulhado muito cedo, mal havia terminado o aprendizado da leitura, no estudo da história bíblica, determinou de maneira durável, como me dei conta muito depois a orientação de meus interesses". Yerushalmi fez um rastreamento nas diversas edições e traduções deste artigo de Freud, observando como esta frase foi "esquecida" ou eliminada várias vezes. Nesta cobrança, Yaroshalmi se alia ao velho Jakob Freud, que deu ao filho a Bíblia familiar, como um pungente oferecimento que o vincula ao judaísmo. Pensa ainda Yerushalmi que o ensaio de Freud sobre Moisés é um "retorno do reprimido", é a "obediência diferida" de Sigismund Schlomo a Jakob. Sendo Yerushalmi um importante scholar, zeloso de seus critérios historiográficos, é surpreende – afirma Derrida - que tenha ele se dado a liberdade de fazer o último capítulo de seu livro sob a forma de um texto de ficção, onde dialoga com o fantasma de Freud. Entre outras, diz Yerushalmi: "Professor Freud, neste ponto me parece fútil perguntar-lhe se a psicanálise é geneticamente ou estruturalmente uma ciência judia; nós o saberemos, supondo que isso possa tornar-se um dia objeto de saber, somente quando muito trabalho já houver sido feito. Muito dependerá certamente da maneira pela qual definiremos os termos judeu e ciência". O livro termina com uma última pergunta a Freud: "De fato, limitando-me ainda mais, eu me contentaria com sua resposta a esta única pergunta: quando sua filha fez chegar essa mensagem ao congresso de Jerusalém, era em seu nome que ela se exprimia? Eu lhe peço, prezado professor, diga-me, prometo guardar o segredo". Refere-se ele ao fato de Anna Freud ter feito um discurso de agradecimento na Universidade Hebraica de Jerusalém, que, em 1977, criara uma cátedra com o nome de seu pai. Naquela ocasião, Anna declarara que, frente a acusação de que a psicanálise seria uma ciencia judia, "na circunstância presente seria um título de glória". Derrida faz muitas e interessantes interpretações deste inusitado capítulo, estruturalmente tão diferente do resto do livro de Yerushalmi, ligando-a a uma situação transferencial do autor para com Freud, cujo fantasma é convocado a se pronunciar e que ele – um historiador – curiosamente promete manter em segredo a resposta, caso essa lhe venha a ser confiado! Mostra Derrida como a abertura para o futuro implícito na formulação de Yerushalmi denota vários aspectos próprios do judaísmo – o apego ao contrato divino que tem sua marca ou inscrição no corpo (circuncisão), a esperança do cumprimento da promessa divina no futuro, a obrigatoriedade do conhecimento do Livro e seu estudo permanente. Ou seja, impera no judaísmo a importância da história e da memória, a obrigação do arquivo. O judaísmo juntaria como traços essenciais "a unicidade absoluta na experiência da promessa (futuro) e a injunção da memória (passado)"(p.97). Se Derrida acompanha Yerushalmi até aqui, ele treme (p.98) ao ouvir dele que "em Israel e em nenhuma outra parte a injunção de se lembrar é sentida como um imperativo religioso para todo um povo". Ao fazer esta afirmação, que pareceria justa, Yerushalmi na verdade está plantando a semente de uma profunda injustiça, pois tal afirmação pareceria excluir todos os demais povos da riqueza e benefícios da aquisição cultural, colocando Israel numa Unicidade que seria fonte de toda a violência, na medida em que – como toda Unicidade - exclui e ignora o outro, ignora que outros povos possam ter dito o mesmo, de forma diferente, afinal, "todo outro é totalmente outro" (p.99). Derrida sublinha que nunca a afirmação de um Um - completo e único em sua unicidade e completude - deixa de cair no totalitarismo do narcisismo mais deslavado, que ignora o outro, pois "o Um se resguarda do outro"(p.100). Ao não tolerar o outro fora de si, o Um mantem a ilusão de uma unicidade interna que não existe, ele nega a alteridade e a diferença de si, o seu próprio inconsciente, e nisso o "Um se transforma em pura violência".(p.100) Derrida mostra assim como o próprio Yerushalmi entra em mal de arquivo, tanto ao propor-se narcisicamente o Um como ao se equivocar numa argumentação sobre a morte de Moisés (p.86). Como já vimos, o próprio Freud, ao desvincular a psicanálise do judaísmo, teria também reprimido o seu "arquivo", também teria tido seu episódio de mal de arquivo, no que ele possa ter dependido de conjunções edipianas (desobedecer a Jakob em sua conclamação no oferecimento da Bíblia) ou políticas (ascenção do nazismo). Com tudo isso, fica claro como a pulsão de morte está em permanente movimento, cuidando do arquivo e ao mesmo tempo tentando destruí-lo, procurando levar tudo ao esquecimento e ao nada. Freud foi o primeiro a desconstruir – a analisar – o poder arcôntico do arquivo e sua vinculação com o poder paterno e patriarcal, cuja única resolução possível é o parricídio e a tomada dos arquivos pelos irmãos, base para "a igualdade e liberdade dos irmãos, uma certa idéia ainda viva de uma democracia", como diz Derrida. Apesar disso, pessoal e institucionalmente Freud usou a lógica do poder patriarcal, a ponto de ainda hoje – tanto tempo depois - se perguntarem seus "filhos" (os analistas) se podem pensar com suas próprias cabeças, se podem falar em seus próprios nomes. Como mencionamos acima, é chamativa a presença de René Major e Elizabeth Roudinesco no simpósio onde foi apresentada essa conferência. Ela até pareceria um evento preliminar dos Estados Gerais da Psicanálise, realizados em Paris, 2000, na medida em que muitos dos temas aqui abordados foram ali retomados por Derrida na conferência "Estados d’Alma da Psicanálise". Ali falou da necessidade de uma psicanálise que não resista a si mesmo, enfrentando o encontro com o mundo politico e científico. Aqui, como lá, fala do impacto da tecno-ciência à qual Freud não teve acesso e da qual os analistas de hoje devem – usando suas próprias cabeças – se aproximar e usar. Em Paris falou da imensa importância do pensamento freudiano nos discursos jurídico, ético e político; aqui particulariza essa importância na historiografia, quer seja a da própria psicanálise, quer seja a do grande mundo e em ambos critica o poder arcôntico e insinua que os "filhos" possam falar em seus próprios nomes. O que é interessante é que Derrida, com insistência, se pergunta se as novas técnicas de arquivamento influenciariam a psicanálise. Mas termina por deixar claro que, na verdade, a psicanálise é que subverte sistematicamente qualquer idéia de arquivo, na medida em que sustenta a presença deste insopitável inconsciente, da repressão e da supressão e seus efeitos organizatórios. Referências bibliográficas Jacques Derrida – "Freud e a cena da escritura" in "A escritura e a diferença" – p. 179-227 - Editora Perspectiva - 2ª edição – São Paulo – 1995 Jacques Derrida – "Mal de Arquivo – Uma impressão freudiana" – Editora Relume Dumará – Rio de Janeiro - 2001 |
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