Volume 7 - 2002 Editor: Giovanni Torello |
Abril de 2002 - Vol.7 - Nº 4 Artigo do mês Saúde mental dos profissionais de saúde Luiz Antonio Nogueira-Martins NOGUEIRA-MARTINS, L.A. - Saúde Mental dos Profissionais de Saúde. In: BOTEGA, N.J. (org.) Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e Emergência__. Porto Alegre, Artmed Editora, 2002, pags.130-144 INTRODUÇÃO Neste capítulo, será abordada a questão da saúde mental dos profissionais de saúde, considerando o exercício profissional da Medicina como modelo ilustrativo das outras áreas. Um dos motivos desta abordagem se deve ao fato de que, entre as profissões de saúde, o trabalho do médico é o que tem sido mais estudado tanto do ponto de vista psicológico como sociológico. Vale aduzir também que, embora conservando características próprias de cada profissão, vários aspectos da atividade profissional em saúde são compartilhados por médicos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos; no que diz respeito à saúde ocupacional, por exemplo, o sofrimento psíquico inerente ao trabalho no âmbito hospitalar (PITTA, 1991) é comum a todos esses profissionais. Um exemplo desta assertiva pode ser constatado em uma antiga pesquisa sobre o trabalho de enfermeiras, realizado em um hospital de Londres, a respeito dos efeitos do estresse associado à tarefa assistencial (MENZIES, 1970). Nesse estudo, observou-se que havia um alto nível de tensão, angústia e ansiedade entre os enfermeiros, com faltas e abandonos da tarefa, mudanças freqüentes de emprego e uma alta freqüência de pequenos problemas de saúde que requeriam alguns dias de ausência de trabalho. A autora refere que a situação de trabalho suscita sentimentos muito fortes e contraditórios nos enfermeiros: piedade, compaixão e amor; culpa e ansiedade; ódio e ressentimento contra os pacientes que fazem emergir esses sentimentos fortes; inveja do cuidado oferecido ao paciente. Menzies observou também que os pacientes e seus parentes nutrem sentimentos complexos em relação ao hospital, que são expressos particularmente e mais diretamente aos enfermeiros e que, freqüentemente, os deixam confusos e angustiados. Os pacientes e seus parentes demonstram apreço, gratidão, afeição, respeito; uma comovente crença de que o hospital funciona; solidariedade e preocupação para com os enfermeiros em seu difícil trabalho. Mas os pacientes freqüentemente se ressentem de sua dependência; aceitam de má vontade a disciplina imposta pelo tratamento e pela rotina hospitalar; invejam as enfermeiras pela sua saúde e competência; são exigentes, possessivos e ciumentos. Este breve retrato psicodinâmico da tarefa profissional de enfermeiros com pacientes hospitalizados pode ser aplicado, em graus variados, ao conjunto dos profissionais que compõem a equipe de saúde. Diversas pesquisas sobre as relações entre o estresse ocupacional, as ambigüidades da profissão, o sofrimento psíquico e a saúde mental dos enfermeiros e auxiliares de enfermagem têm sido desenvolvidas recentemente em nosso meio (ANGELO, 1989; BIANCHI, 1992; SILVA & BIANCHI, 1992; AQUINO, 1993; CHAVES, 1994; SILVA, 1996; LABATE, 1997; CAMPIGLIA, 1998; BIANCHINI, 1999; PEDROSA & VIETTA, 1989). A profissão de Fonoaudiologia também tem sido contemplada com estudos quanto ao estresse profissional de seus primeiros atendimentos, ainda no curso de graduação (NOGUEIRA-MARTINS, 1998). Lado a lado com as semelhanças com a profissão médica, caminham as diferenças, as especificidades profissionais. Algumas profissões de saúde, por serem constituídas por população predominantemente feminina (Enfermagem, Serviço Social, Fonoaudiologia, Psicologia), têm acrescido ao desgaste estritamente profissional, a dupla jornada de trabalho e a tendência, infelizmente ainda existente, apesar dos grandes avanços dos movimentos de mulheres, de não se valorizar o trabalho feminino. As mulheres médicas, que atualmente constituem quase a metade do contingente médico (MACHADO, 1997), ainda sofrem preconceitos, obstáculos familiares e sociais para exercer a profissão Some-se a esses fatores a questão da hegemonia do discurso médico com relação aos demais profissionais de saúde e, conseqüentemente, as difíceis relações estabelecidas nas equipes interdisciplinares e teremos um panorama psicodinâmico bastante complexo sobre os profissionais de saúde. Antes de passar aos aspectos específicos sobre a saúde mental do médico, observemos o que a abordagem sociológica das questões de saúde podem nos oferecer para melhor compreensão da realidade das profissões de saúde. AS PROFISSÕES DE SAÚDE NO BRASIL: ASPECTOS SOCIOLÓGICOS Quanto às características da força de trabalho em saúde, BORDIN & ROSA (1998) apresentam dados comparativos entre as décadas de 1980 e 1990:
O PERFIL DO MÉDICO BRASILEIRO Em um excelente livro intitulado "Os médicos no Brasil: um retrato da realidade", MACHADO (1997) publicou os resultados da mais extensa e aprofundada pesquisa sociológica sobre a profissão médica e o exercício da medicina nos tempos atuais em nosso meio. Dados extraídos desta pesquisa apontam para as seguintes características psicossociológicas da população médica brasileira:
O EXERCÍCIO ATUAL DA MEDICINA O desenvolvimento de novos recursos diagnósticos e terapêuticos, a influência da indústria farmacêutica e de equipamentos e a crescente presença das empresas compradoras de serviços médicos são fatores que têm produzido profundas transformações na profissão médica, modificando o cenário do exercício profissional. As repercussões dessas mudanças ocorrem em vários campos, como por exemplo, na perda da autonomia, na remuneração, no estilo de vida, na saúde do médico, no comportamento ético do médico e nas relações entre médicos e pacientes. Acrescenta-se a esse quadro a insistente divulgação pela mídia das mazelas da assistência médica no Brasil que, pelo seu caráter habitualmente sensacionalista e pouco reflexivo, tende a criar uma imagem social bastante negativa do médico. Paralelamente, os meios de divulgação têm colocado à disposição da população informações a respeito dos avanços tecnológicos em Medicina, o que costuma produzir forte impacto emocional; os novos recursos tecnológicos passam a ser desejados e buscados pelos pacientes e familiares embora muitas vezes embasados em expectativas irrealistas, como por exemplo quanto a transplantes de órgãos (NOGUEIRA-MARTINS e cols., 1991). Por outro lado, a promulgação de novas leis (por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor), as normas e regulamentações decorrentes do desenvolvimento da Bioética e o exercício da cidadania têm levado, muitas vezes, pacientes e familiares a processar com maior freqüência os médicos e hospitais, por imperícia, imprudência ou negligência. O relacionamento entre médicos e pacientes assim como entre médicos e organizações públicas ou privadas está se tornando cada vez mais complexo. De um lado, os médicos têm sido vistos com desconfiança tanto pelos pacientes como pelos empregadores públicos e privados. Por outro lado, os médicos mostram-se insatisfeitos e estressados; 80% dos médicos brasileiros consideram a atividade médica desgastante, sendo os principais fatores de desgaste: excesso de trabalho/multiemprego, baixa remuneração, más condições de trabalho, responsabilidade profissional, área de atuação/especialidade, relação médico-paciente, conflito/cobrança da população, perda da autonomia (MACHADO, 1997). As associações de classe têm se preocupado com as questões referentes às atuais condições de trabalho do médico e as repercussões no relacionamento com os pacientes. Assim, por exemplo, o Sindicato dos Médicos de São Paulo, em 1997, lançou uma campanha para o resgate da imagem social do médico (JORNAL DO MÉDICO, 1997). "Os constantes problemas que os cidadãos desse país têm enfrentado toda vez que precisam de algum atendimento na área de saúde, colocam o profissional médico na berlinda. Se falta remédio nos hospitais, a culpa é do médico. O médico também acaba sendo culpado pelas péssimas condições de atendimento, pela falta de estrutura. Na linha de frente na batalha pela saúde da população, o médico é quem mais sofre com o desmazelo relegado ao setor. (...) Quem tem que arcar com as conseqüências imediatas de toda essa falta de estrutura é o médico. É em função disso tudo que a nossa campanha salarial, em 1997, vai além das questões econômicas e das garantias sociais, para trabalhar também o resgate junto à população da imagem do profissional." Esta descrição dos aspectos sociológicos do trabalho médico pode ser aplicada aos demais profissionais da saúde, caracterizando um estado de insalubridade ocupacional que tem repercussões psicológicas significativas no profissional e em sua relação com os pacientes e que acaba resultando em uma situação insatisfatória tanto para quem assiste (o profissional) como para quem é assistido (o paciente). A SAÚDE DO MÉDICO A inclusão de um capítulo sobre a saúde do médico no Tratado de Medicina de Cecil-Loeb (CLEVER, 1990), reflete a crescente importância que tem sido dada a esse tema. No início do capítulo, intitulado "A Saúde do Médico", a autora - Linda Harwes Clever - assim se expressa a respeito deste tema que, penso, deveria ser ensinado a todos os alunos de medicina com o mesmo empenho com que se discute os demais capítulos desse notável tratado: "Os médicos são um grupo curioso. Por um lado, reduzem sensivelmente os riscos à saúde por não fumarem. Por outro lado, geralmente evitam ser imunizados contra rubéola e hepatite B, doenças que podem ser devastadoras tanto para si próprios como para seus pacientes. O objetivo deste capítulo é rever os dados disponíveis quanto a vida, morte e práticas pessoais de saúde dos médicos, além de fazer recomendações quanto a atividades de manutenção da saúde para médicos." Ao longo do capítulo, Clever aborda diversos aspectos do exercício profissional e apresenta alguns interessantes dados sobre o trabalho dos médicos:
São discutidas de uma forma sintética, porém densa, as exigências da prática profissional, as tensões e prazeres relacionados ao estilo de vida e à família (os médicos têm uma das poucas razões socialmente aceitáveis para abandonar a família) e são apresentados dados sobre a morbimortalidade entre os médicos, sendo destacados os itens referentes a doenças relacionadas ao tabaco, suicídio e dependência de drogas; ao final do texto, são feitas recomendações que visam melhorar as práticas de saúde dos médicos. Em um dos subtítulos do capítulo intitulado "Morbidade", Linda Clever aponta algumas características do comportamento de muitos médicos, que são de crucial importância para se compreender vários aspectos relacionados aos mecanismos adaptativos utilizados por esses profissionais em relação às vicissitudes e estresses da tarefa médica: "...muitos médicos não têm seu próprio médico. ...O autotratamento, consultas de corredor e demoras devido ao constrangimento relativo à cortesia profissional podem impedir o diagnóstico e o tratamento. ...Uma extensão patológica da negação é a "síndrome da invulnerabilidade médica" que se caracteriza pela convicção de que os problemas pessoais e familiares, as complicações e as doenças que afetam outras pessoas não podem afetar o médico ou não irão fazê-lo." A SAÚDE MENTAL DO MÉDICO CARACTERÍSTICAS PSICOLÓGICAS DA TAREFA MÉDICA Há inúmeras gratificações psicológicas inerentes à profissão médica. Aliviar a dor e o sofrimento, curar doenças, salvar vidas, diagnosticar corretamente, sentir-se competente, ensinar, aconselhar, educar, prevenir doenças, receber reconhecimento e gratidão são algumas das características psicológicas da tarefa médica que fazem da medicina uma profissão ainda muito atraente e gratificante. A Medicina permanece, a despeito da crise que atravessa em nosso meio, uma profissão que oferece várias possibilidades de realização material, intelectual e emocional. É uma área fascinante, de capital importância para a sociedade e, como tal,uma carreira desejada e idealizada pelos jovens. O grau de idealização pode gerar altas expectativas que, não correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações significativas, com repercussões importantes na saúde dos estudantes, residentes e médicos. Um importante ponto merece ser destacado ao estudarmos a tarefa médica: o caráter altamente ansiogênico do exercício profissional. Há, como regra geral, com pequenas variações, intrínseca ao trabalho clínico, a exposição a poderosas radiações psicológicas emanadas do contato íntimo com o adoecer. Cumpre enfatizar este aspecto já que, em especial no âmbito assistencial dos serviços de emergência, ocorrem situações tão dramáticas como talvez em nenhum outro campo da atividade humana em tempos de paz. Este caráter estressante inerente à tarefa médica tem se amplificado significativamente devido ao volume de pacientes e às precárias condições de trabalho vigentes na maioria dos serviços de emergência da rede pública, o que tem gerado situações de franca hostilidade por parte dos pacientes e familiares. Algumas das características inerentes à tarefa médica definem, isoladamente ou em seu conjunto, um ambiente profissional cujo colorido básico é formado pelos intensos estímulos emocionais que acompanham o adoecer (NOGUEIRA-MARTINS, 1991):
Na literatura, encontramos descrições de síndromes associadas às atividades profissionais dos médicos. A síndrome do "burn-out" ou síndrome do estresse profissional tem sido reconhecida como uma condição experimentada por profissionais que desempenham atividades em que está envolvido um alto grau de contato com outras pessoas. Esta síndrome tem sido definida como uma resposta ao estresse emocional crônico intermitente. A síndrome do "burn-out" em profissionais da área de saúde é composta por sintomas somáticos, psicológicos e comportamentais. Os sintomas somáticos compreendem: exaustão, fadiga, cefaléias, distúrbios gastro-intestinais, insônia e dispnéia. Humor depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo e desinteresse são os sintomas psicológicos. A sintomatologia principal se expressa no comportamento; fazer consultas rápidas, colocar rótulos depreciativos, evitar os pacientes e o contato visual, são alguns exemplos ilustrativos. Um profissional que está "burning-out", tende a criticar tudo e todos que o cercam, tem pouca energia para as diferentes solicitações de seu trabalho, desenvolve frieza e indiferença para com as necessidades e o sofrimento dos outros, tem sentimentos de decepção e frustração e comprometimento da auto-estima (RODRIGUES, 1998). Na Residência Médica, o estresse atinge o seu ápice. O período de transição aluno-médico, a responsabilidade profissional, o isolamento social, a fadiga, a privação do sono, a sobrecarga de trabalho, o pavor de cometer erros e outros fatores inerentes ao treinamento estão associados a diversas expressões psicológicas, psicopatológicas e comportamentais que incluem: estados depressivos com ideação suicida, consumo excessivo de álcool, adição a drogas, raiva crônica e o desenvolvimento de um amargo ceticismo e um irônico humor negro. Em um estudo prospectivo (NOGUEIRA-MARTINS, 1994) realizado na Escola Paulista de Medicina com residentes de 12 programas de Residência Médica, os resultados mostraram que as principais dificuldades encontradas pelos residentes na tarefa assistencial foram:
Nesse estudo, as principais fontes de estresse identificadas pelos residentes foram:
A ADAPTAÇÃO AO ESTRESSE DA TAREFA MÉDICA O complexo processo adaptativo frente aos fatores estressantes inerentes à prática médica pode tomar diferentes caminhos. O resultado final da exposição à radiação psicológica estressante depende do indivíduo e dos mecanismos e recursos defensivos por ele utilizados, sejam conscientes e/ou inconscientes. Assim, conforme os mecanismos utilizados, dar-se-á uma adequada adaptação dentro dos limites possíveis ou, ao contrário, uma inadequada adaptação cujos efeitos serão perceptíveis de várias maneiras. Os médicos emocionalmente desajustados revelam adaptações claudicantes que se expressam através de algumas características comportamentais, das quais se destacam as seguintes (NOGUEIRA-MARTINS, 1991):
A questão que se impõe, ao analisarmos estes padrões de comportamento dos médicos desajustados e emocionalmente incapacitados, diz respeito à eventual predisposição ou vulnerabilidade de alguns profissionais ao estresse da tarefa médica.
A VULNERABILIDADE PSICOLÓGICA DO MÉDICO Uma alta prevalência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais em médicos assim como altos índices de estresse e depressão em residentes tem sido apontados na literatura. Muitas das características psicodinâmicas que conduzem as pessoas para a carreira médica também as predispõem para desordens emocionais, alcoolismo, abuso de drogas e doença mental. Estas características incluem compulsividade, rigidez, controle sobre as emoções, retardo de gratificações e formação de fantasias irrealistas sobre o futuro. JOHNSON (1991), em uma revisão sobre a predisposição dos estudantes e médicos para os distúrbios emocionais e psiquiátricos, destaca o importante papel das experiências de vida na determinação da vulnerabilidade ao estresse ocupacional. Um aspecto relevante neste tema é a questão da escolha profissional. Estudos a respeito das motivações dos estudantes para a carreira médica sugerem que, para uma parcela dos estudantes, um dos componentes de sua opção profissional é uma tentativa de reparação de experiências emocionais infantis vinculadas a situações de impotência e/ou de abandono emocional. Segundo Johnson, os dois mecanismos básicos envolvidos nas motivações de alguns estudantes para a escolha da carreira médica seriam:
A escolha da Medicina nesses casos seria uma resposta adaptativa a uma vivência de fragilidade e de baixa auto-estima, que pode levar ao desenvolvimento de algumas disfunções profissionais, tais como:
Uma das bases da escolha profissional é a vivência da angústia e impotência frente à morte; assim, uma série de comportamentos dos médicos seriam a expressão de mecanismos de defesa ligados a angústias muito primitivas, inerentes ao ser humano, como "o medo da própria destrutibilidade, fragilidade e desamparo" (MILLAN e cols., 1999). O tema das motivações para a escolha profissional suscita diversas questões. Como era, do ponto de vista psicológico, o estudante antes de ingressar na faculdade de Medicina? É possível predizer quais estudantes podem vir a ter maiores dificuldades durante o curso de Medicina? E após tornar-se médico? Quais os mecanismos adaptativos que os médicos utilizam para lidar com os conflitos e dificuldades na vida adulta? Em um estudo prospectivo que se tornou clássico na literatura, VAILLANT e col. (1972) investigaram essas questões. A infância de 47 médicos (homens) foi comparada à infância de 79 profissionais não-médicos (homens), socioeconomicamente pareados. Paralelamente, ao longo de 30 anos da vida adulta, o uso de drogas, a estabilidade no casamento, a busca de psicoterapia e os mecanismos utilizados pelos médicos para lidar com crises e conflitos foram comparados com o grupo controle (não-médicos). Os resultados revelaram que os médicos, especialmente aqueles que tinham prática clínica, apresentavam casamentos mais instáveis, usavam drogas e álcool de forma abusiva e buscavam psicoterapia em proporção maior do que os controles. Ao discutir esses resultados, os autores assinalam que embora estas dificuldades sejam, com freqüência, atribuídas às vicissitudes do exercício da Medicina, a sua presença ou ausência estava fortemente associada à adaptação na vida anterior à escola médica. Somente os médicos com adaptações instáveis na infância e adolescência revelaram vulnerabilidade às solicitações da profissão. Quanto aos mecanismos utilizados para lidar com as crises e conflitos da vida adulta, o estudo detectou que os médicos utilizavam, em uma proporção duas vezes superior à dos controles, os mecanismos de reações hipocondríacas, auto-agressão e formação reativa; alguns médicos pareciam ter uma espécie de fobia a procurar ajuda; o altruismo como um tipo de formação reativa também apareceu em uma proporção duas vezes superior à dos controles. Na discussão de seus achados, os autores destacam os seguintes pontos:
Em um antigo estudo com médicos dependentes de narcóticos (MODLIN & MONTES, 1964), as razões dadas pelos mesmos para o uso de drogas eram: sobrecarga de trabalho, fadiga crônica e doença física. Os autores, contudo, referem que, ao elaborarem uma história anterior à dependência, encontraram nos relatos dos médicos sentimentos de muita revolta em relação aos pais. Mais de 50% dos pais eram referidos como alcoólatras ou consumidores excessivos de álcool e as mães eram descritas como extremamente nervosas, dominadoras, depressivas, hipocondríacas e cruéis. Simultaneamente, havia a presença de intensos sentimentos de dependência em relação às mães. Outros dados dessa pesquisa indicavam que os médicos haviam tido diversas doenças na infância, como cólicas intestinais, enurese, asma, obesidade, infecções respiratórias recorrentes e febre reumática. A vida conjugal destes médicos era uniformemente caracterizada por discórdia e infelicidade, sendo que 75% tinham sérias dificuldades sexuais com as esposas. Em resumo, há na literatura evidências sugestivas de que uma parcela da população médica - 8% a 10% - seja um grupo de risco em relação a distúrbios emocionais. Este grupo apresenta, portanto, uma maior vulnerabilidade psicológica. Esta vulnerabilidade psicológica intervém na escolha profissional e precisa ser considerada no âmbito do planejamento das atividades médicas na graduação, na pós-graduação e na vida profissional. Esse planejamento deve considerar que a tarefa médica apresenta um caráter altamente ansiogênico; essa ansiedade precisa ser metabolizada, caso contrário, pode gerar adaptações patológicas. A insalubridade psicológica inerente à tarefa médica pode ser um importante fator desencadeante de distúrbios emocionais em estudantes, residentes e médicos predispostos ou mais vulneráveis (NOGUEIRA-MARTINS, 1989/90). MEDIDAS PREVENTIVAS Diversos recursos têm sido propostos para prevenir as conseqüências da insalubridade psicológica do trabalho médico. Devo enfatizar que a implantação de medidas profiláticas deve, compulsoriamente, começar por uma medida básica: a inclusão da dimensão psicológica na formação do estudante de Medicina. O trabalho de sensibilização do jovem aluno em relação aos seus aspectos psicológicos - motivações para a profissão, idealização do papel de médico, etc. - e as suas reações vivenciais durante o curso de Medicina é uma medida de atenção primária, que pode ser concretizada mediante modificações curriculares que incluam, nas escolas médicas, o ensino de Psicologia Médica, centrado nas vicissitudes do curso médico e do exercício da Medicina. A tarefa central, prática, de uma disciplina de Psicologia Médica, é propiciar ao estudante um espaço para entrar em contato com seus sentimentos e emoções, diante dos seres humanos que está começando a atender. Um espaço que priorize a reflexão e a troca de experiências. Sob diferentes estratégias, trata-se de utilizar a vivência como instrumento de aprendizado e de semiologia (BOTEGA & NOGUEIRA-MARTINS, 1997). O ensino médico que não reflete sobre o ser humano que há no médico participa de modo altamente prejudicial das deformações adaptativas do futuro profissional. Nas escolas médicas, o discurso enfatiza os deveres e responsabilidades e mantém um eloqüente silêncio sobre os direitos, prerrogativas e limitações do médico. Certos valores heróicos, veiculados pelo corpo docente e que estimulam fantasias irrealísticas nos estudantes de Medicina, merecem ser reavaliados. Ainda ao nível da formação, é fundamental a criação de serviços de orientação psicopedagógica para os estudantes, assim como deve ser estimulada a organização de serviços de de assistência psicológica e psiquiátrica aos alunos e profissionais da saúde. A preocupação com a saúde mental dos estudantes universitários em geral e com os estudantes de medicina em particular data do início do século ( HAHN e cols., 1999). No Brasil já dispomos de razoável massa crítica nessa área (MILLAN e cols, 1999); a experiência dos nossos serviços tem sido discutida em diversos encontros reunindo profissionais da área de saúde mental que prestam assistência aos estudantes. Em outubro de 1997, foi realizado o I Encontro Paulista dos Serviços de Assistência Psicológica ao Estudante Universitário (MILLAN et al., 1998), com a participação de 12 Serviços, representando oito instituições de ensino superior. Desde então encontros anuais foram realizados em Campinas (1998), promovido pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Bragança Paulista (1999), promovido pela Universidade São Francisco e em Marília (2000), promovido pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA). Um exemplo de serviço organizado para o atendimento de médicos e enfermeiras residentes de um hospital é o Núcleo de Assistência e Pesquisa em Residência Médica (NAPREME) da Universidade Federal de São Paulo. O NAPREME tem como objetivos: contribuir para a redução do estresse do treinamento, promover o crescimento profissional e pessoal dos residentes, prevenir disfunções profissionais e distúrbios emocionais, oferecer atendimento psicológico, assessorar os preceptores dos Programas de Residência Médica e desenvolver projetos de pesquisa que identifiquem as dificuldades emocionais que ocorrem durante o treinamento. O objetivo final é aperfeiçoar o sistema de capacitação profissional na Residência Médica, aprimorando a assistência prestada aos pacientes e a qualidade de vida dos profissionais encarregados dessa assistência.(NOGUEIRA-MARTINS e cols, 1997). A implantação de grupos de discussão e reflexão sobre a tarefa assistencial na Residência Médica , onde os residentes possam expor suas dificuldades, angústias e temores ligados ao exercício profissional, tem se revelado um eficiente instrumento psicopedagógico de natureza preventiva. As medidas preventivas no âmbito da Residência podem ser divididas em duas áreas:
Pesquisas sobre as condições de trabalho dos médicos, nas diferentes especialidades médicas, devem ser desenvolvidas visando a detecção precoce dos grupos de risco. Na medida em que a Medicina, gradativamente, deixa de ser uma profissão masculina, pesquisas sobre as mulheres médicas se tornam cada vez mais necessárias. Essas pesquisas devem contribuir para a implantação de programas de qualidade nas instituições de saúde. A criação de serviços de consultoria psiquiátrica e psicológica (Interconsulta) nos hospitais gerais é medida prioritária (NOGUEIRA-MARTINS, BOTEGA & CELERI, 1995). Um conjunto de situações clínicas -- estados confusionais agudos associados a diversas patologias orgânicas e ao uso de medicamentos, estados depressivos, pacientes com alto potencial autodestrutivo, atos suicidas, dilemas éticos -- representa importantes fontes de estresse para os médicos encarregados da assistência em hospitais gerais. Um serviço de Interconsulta pode auxiliar o médico consultante no diagnóstico e no tratamento de pacientes com problemas psicológicos, psiquiátricos e psicossociais bem como no diagnóstico e tratamento de disfunções e distúrbios interpessoais e institucionais, envolvendo o paciente, a família e a equipe de saúde. A criação de equipes interdisciplinares e multiprofissionais nos serviços de saúde, possibilitando a troca de experiências e permitindo compartilhar as difíceis situações que se apresentam nas instituições médicas é uma outra tarefa prioritária. As associações de classe e de especialidades, bem como os órgãos reguladores do exercício profissional, têm um importante papel a desempenhar, informando e estimulando o debate sobre os fatores de risco para a saúde mental do profissional e propondo o desenvolvimento de modelos de intervenção nos níveis institucional, grupal e individual. Neste sentido, merece ser saudada e destacada recente resolução do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – Resolução nº 090/2000 – que normatiza preceitos que contribuam para a melhoria das condições de saúde ocupacional dos médicos. Assim, por exemplo, a questão referente à sobrecarga horária de trabalho é contemplada pela Resolução nº 090/2000, em seu artigo 8º, ao estabelecer que: " Ficam proibidos plantões superiores a vinte e quatro (24) horas ininterruptas, exceto em caso de plantões à distância". Em seu anexo único, a Resolução nº 090/2000 descreve os riscos biológicos, físicos, químicos, psicossociais, ergonômicos a que estão sujeitos os médicos e as medidas de proteção que devem ser adotadas pelas instituições e serviços de saúde. Uma valiosa medida profilática é, sem dúvida, o debate aberto e franco sobre as nossas vulnerabilidades, limitações e patologias, com o mesmo empenho e dedicação com que o fazemos em relação às suscetibilidades e patologias dos nossos pacientes. Convém, finalmente, salientar que toda e qualquer medida profilática envolve um processo de conscientização com tentativa de modificação de atitudes. Este processo costuma ser demorado e doloroso. As resistências não são pequenas e com freqüência crescem ao longo desse processo. GRUPO DE REFLEXÃO SOBRE A TAREFA ASSISTENCIAL – GRUPOS BALINT Dentre as medidas preventivas que podem ser aplicadas tanto no âmbito da formação como do exercício profissional, o Grupo de Reflexão sobre a Tarefa Assistencial merece destaque. Esse tipo de atividade é inspirado nos Grupos Balint. Michael Balint, psicanalista de origem húngara, desenvolveu os seus trabalhos sobre a capacitação psicológica dos médicos na Clínica Tavistock em Londres a partir de 1945. Balint iniciou seus trabalhos a partir de pesquisas com grupos de assistentes sociais que atendiam famílias. Esta atividade foi posteriormente estendida para médicos clínicos visando compreender e administrar dificuldades que os profissionais encontravam em seu trabalho clínico. Na época em que muitos médicos generalistas britânicos tinham que atender solicitações reiteradas de pacientes funcionais inscritos em suas listas, Balint passou a coordenar seminários semanais de discussão a respeito dos problemas psicológicos da prática médica (BOTEGA,1996) Habitualmente participavam dos seminários 14 médicos generalistas e uma taquigrafista que registrava o conteúdo das apresentações dos casos clínicos que eram atendidos pelos médicos. Segundo Balint "a maneira de falar do médico a respeito de seu paciente, com todas as falhas e inexatidões de seu relato, as omissões, os pensamentos secundários, as adições tardias e as correções, incluindo a seqüência na qual isso foi revelado, contam uma história – semelhante ao conteúdo de um sonho - familiar e facilmente inteligível para nós, analistas. Esta história é aquela, evidentemente, da implicação afetiva do médico, de sua contratransferência" (BALINT,1994). As principais contribuições de Balint à Psicologia Médica encontram-se em "O Médico, seu paciente e a doença", publicado originalmente em 1957 e em "Técnicas psicoterapêuticas em medicina", publicação de 1961. A técnica dos grupos Balint desenvolveu-se em diversos países, tendo sido criadas em todo o mundo várias associações de profissionais interessados no estudo e divulgação desta técnica. Balint é também muito conhecido pela criação de uma máxima a respeito da prática médica, abaixo reproduzida : "O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico, o qual, como os demais medicamentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reações colaterais e toxicidade". BALINT (1988), em sua obra, deu ênfase à "aliança terapêutica" que deve existir no vínculo profissional-paciente, como propulsora de um bom atendimento. Conforme esse autor, a técnica, por mais aprimorada que seja, tenderá a ser ou inócua ou alienante, se não for veiculada por uma boa relação profissional-paciente. Para que haja essa boa relação, é necessário que se dê atenção aos elementos que a compõem que são, ao mesmo tempo, racionais e irracionais, realísticos e irrealísticos, maduros e infantis, conscientes e inconscientes. O objetivo dos Grupos Balint é que os médicos, com o auxílio de um coordenador da área de Saúde Mental, possam ter uma compreensão nova a respeito de seus pacientes e ampliar suas possibilidades terapêuticas. O trabalho se realiza em grupo, a partir de casos clínicos relatados pelos médicos (MISSENARD, 1994). O coordenador oferece aos médicos uma possibilidade de submeterem seus casos problemáticos a seus pares, analisando as situações, propiciando discussões e mostrando interesse e sensibilidade pela realidade profissional do médico e por seu desenvolvimento profissional. CASSORLA (1994) concebe os Grupos Balint como um recurso pelo qual o médico e o estudante de Medicina passem a se interessar pelo mundo emocional do seu paciente e pelas repercussões que seu modo de vivê-lo acarretam para o processo saúde-doença; como conseqüência, o médico passaria a interessar-se também por sua própria vida emocional e pela relação humana (em particular, pela relação médico-paciente). O Grupo de Reflexão (ZIMERMAN, 1992), é uma técnica muito utilizada no ensino de Psicologia Médica, que pressupõe que as possibilidades de mudanças nas atitudes estão diretamente ligadas à intensidade das experiências emocionais vividas no decorrer do processo de ensino ou de trabalho. As experiências emocionais ligadas ao exercício profissional compartilhadas em um ambiente afetivo e acolhedor permitem um reasseguramento da identidade profissional através da detecção e enfrentamento dos conflitos. Com este modelo, se propõe a criação de uma instância reflexiva sobre o cotidiano da prática assistencial, com possibilidade de detecção de entraves e pautas estereotipadas de conduta no exercício profissional. O manejo técnico utilizado neste tipo de grupo consiste em que seu coordenador centralize a discussão no tema que, como um denominador comum, emerge da livre discussão que se estabelece a partir dos relatos das vivências clínicas. O coordenador, através de breves estímulos, colocações e indagações, mercê de uma capacidade de discriminação e síntese, ajuda o grupo a sentir, indagar e incorporar um conjunto de valores que convergem para as atitudes médicas. O termo "re-flexão" indica que a finalidade precípua do grupo é a de levar o indivíduo a flectir-se sobre si próprio através do pensar e do sentir, e assim levá-lo a aprender a aprender. Tanto os Grupos Balint como os Grupos de Reflexão se caracterizam pela apresentação e discussão de casos clínicos de pacientes que estão sendo atendidos por um ou mais profissionais em diferentes âmbitos assistenciais (consultório privado, ambulatórios, enfermarias, etc.). A seguir, é descrito resumidamente um exemplo ilustrativo de uma experiência de Grupos de Reflexão realizados durante o ano de 1981 (vale lembrar que a situação discutida no Grupo se passa antes da promulgação de vários códigos de proteção e defesa dos direitos dos usuários de serviços de saúde, atualmente em vigor) com os membros de uma equipe de saúde de uma enfermaria (pacientes do sexo feminino) de Clínica Médica de um hospital-escola. A equipe (cerca de 13 pessoas) era constituída por alunos do sexto ano médico, residentes de segundo ano de Clínica Médica, preceptores dos alunos e a enfermeira da unidade. As reuniões eram semanais com duração de 90 minutos e coordenadas por um psiquiatra com experiência em Interconsulta Psiquiátrica ( NOGUEIRA-MARTINS,1982). No início de cada nova turma (rodízio de seis semanas), os alunos recebiam orientação quanto às características básicas da tarefa:
UM EXEMPLO DE GRUPO DE REFLEXÃO SOBRE A TAREFA ASSISTENCIAL: A transfusão sangüínea. O sagrado do médico x o sagrado da paciente. Em uma das primeiras reuniões, foi apresentada uma extensa e bem elaborada observação clínica. A aluna havia feito uma anamnese detalhada e a observação mostrava que o caso estava bem estudado e a propedêutica caminhava no sentido de um esclarecimento diagnóstico. Tratava-se de uma paciente que fora internada em função de um acentuado emagrecimento, tendo sido detectada importante anemia. Os exames estavam em andamento e a hipótese diagnóstica principal era a de um linfoma. A apresentação transcorria tranqüila quando o coordenador, não atinando com as razões que teriam levado à escolha do caso, indagou a respeito. Foi informado então que a paciente, dada a sua anemia, necessitava de uma transfusão sangüínea e que, por motivos de ordem religiosa, esta se recusava a receber sangue. Esta situação estava deixando a aluna intranqüila, vendo-se diante de um impasse: por um lado achava que deveria fazer a transfusão, em especial porque talvez se tornasse necessária uma exploração cirúrgica e ela temia pela vida da paciente no ato cirúrgico; por outro lado gostaria de respeitar as crenças religiosas da paciente, de tal sorte que se sentia intensamente conflituada. Já havia discutido o assunto com a paciente e esta mostrava-se irredutível. Em conversa com os colegas e professores, havia contado "seu drama", sem qualquer solução. Enfatizava que não gostaria de tomar qualquer medida agressiva mas que a situação a estava deixando intolerante no seu relacionamento com a paciente. Vários alunos manifestaram-se. Algumas sugestões foram veiculadas: _"Sedamos a paciente e administramos o sangue. Quando ela acordar, nada saberá" _ "Pegamos um frasco de sangue, cobrimos com esparadrapo e dizemos que é soro" Outras manifestações foram mais agressivas: _ "O que ela quer? Porque eles (religiosos) não constróem um hospital para os seus crentes?" _ "Isto é um absurdo! Estamos na Idade Média!" _ "A que ponto chegamos! Nos Estados Unidos, estão gastando milhões de dólares na pesquisa de um sangue artificial! Tudo por causa deles!" Após estas manifestações, alguns alunos fizeram referência a folhetos que a paciente tinha em seu poder e que oferecia aos médicos para lerem. Os folhetos tinham como título indagações da seguinte natureza: "O paciente que se recusa a receber sangue é um suicida ? " "O médico que não faz uma transfusão, mesmo com risco de vida, está cometendo um crime?" Poucos alunos haviam lido os impressos e aqueles que o fizeram relataram, com algum constrangimento, que havia uma certa coerência nos textos e que a argumentação chegava a ser convincente. O coordenador, após certificar-se com a equipe de que não havia uma situação de urgência quanto à transfusão, propôs que se continuasse a discussão na reunião seguinte, alertando para o fato de que o que estava em jogo, com uma crescente e perigosa radicalização, eram princípios, dogmas, e que a situação concreta e particular daquela paciente não exigia uma corrida contra o tempo. Sugeriu que a aluna retomasse a discussão com a paciente, visto que ela (paciente) devia estar, também, muito conflituada com a situação. Na reunião seguinte, o clima estava menos tenso. A aluna fez um relato da evolução dos acontecimentos. Segundo a aluna, a paciente, certo dia, chamou-a e disse-lhe que gostaria que ela (aluna) conversasse com seu (da paciente) marido. A paciente contou que recebia visitas de muitos amigos da sua igreja e de que, comentando com eles a respeito da transfusão, havia sido convencida por uma amiga de que a decisão final deveria ser do marido, pois se a religião proibia o recebimento de sangue, também dizia que a esposa é uma serva do marido e a ele deve obediência. A aluna assim procedeu e, como o marido não pertencia à mesma religião da paciente, sem hesitar, aquiesceu com a transfusão. Esta decisão trouxe grande alívio à aluna e, sem dúvida, também à paciente, que conseguiu uma plástica acomodação de suas necessidades. É interessante registrar que a transfusão acabou não sendo realizada, visto que em sucessivas reavaliações verificou-se que o grau de anemia não era suficientemente grave a ponto de tornar a transfusão uma medida imperiosa, assim como não se confirmou a necessidade de exploração cirúrgica. O presente relato pretende ilustrar o processo de construção de uma aliança terapêutica mesmo em situações tão difíceis e complexas como a retratada acima (dilema ético). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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