Volume 6 - 2001 Editor: Giovanni Torello |
Dezembro de 2001 - Vol.6 - Nº 12 História da Psiquiatria A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira . Ana Maria Galdini Raimundo Oda Resumo No presente artigo, a história da psiquiatria brasileira é abordada de dois ângulos: de uma perspectiva interna, enfatiza-se o desenvolvimento de certos conceitos sobre os sintomas mentais e as postulações sobre sua relação com as raças humanas; de um ponto de vista externo, são apontadas as possíveis relações entre a construção deste saber e a sociedade em que este se gerou. Os autores em foco são os médicos Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira, escolhidos pelo caráter fundador de suas obras, no nascimento da psiquiatria brasileira. I- Introdução Antes de falar propriamente da história brasileira, são necessárias algumas considerações gerais que contextualizem o pensamento psicopatológico da época em análise (1880-1930). Na segunda metade do século XIX, no que se refere às teorias etiológicas sobre as doenças mentais, dominaram as concepções organicistas. Então, a neuropsiquiatria localizacionista tentou fornecer subsídios para a formulação de teorias explicativas causais sobre a doença mental, tendo a sífilis como modelo. Em outro vértice, não contraditório, mas complementar, outra teoria etiológica das mais marcantes foi a teoria da degeneração ou da degenerescência, baseada no pressuposto que haveria progressiva degeneração mental conforme se sucedessem as gerações: nervosos gerariam neuróticos, que produziriam psicóticos, que gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da linhagem defeituosa.Tal teoria foi sistematizada por B.A Morel (1809-1873), no Tratado das Degenerescências, de 1857, onde a degenerescência se definia como desvio de um tipo primitivo perfeito, desvio este transmissível hereditariamente. Mais tarde, a partir de 1870, V. Magnan (1835-1916) retomou Morel, mas redefiniu a idéia de degenerescência à luz do evolucionismo, considerando-a um estado patológico, em que os desequilíbrios físico e mental do indivíduo degenerado interromperiam o progresso natural da espécie; certos tipos específicos de loucura estariam associados à degenerescência - todo degenerado seria um desequilibrado mental, mas nem todo louco seria degenerado; tal degenerescência poderia ser herdada ou adquirida, manifestando-se em sinais, chamados estigmas, que poderiam ser físicos, intelectuais e comportamentais (ACKERKNECHT, 1964; BERCHERIE, 1989; SERPA Jr., 1998). A idéia da degenerescência como etiologia da doença mental sofreu transformações até ser gradativamente abandonada, declinando principalmente depois da terceira década do século XX. Já a neuropsiquiatria localizacionista seria abandonada antes, já que só nas demências e em alguns outros quadros orgânicos seu modelo explicativo obtinha sucesso. No início de século XX, o psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926) fundou a psicopatologia que se tornou base científica do alienismo, a partir da descrição detalhada dos sinais e sintomas apreensíveis da doença mental. Ressalte-se que a noção de degenerescência foi também utilizada amplamente por Kraepelin. Ao mesmo tempo, no campo da então chamada psiquiatria comparada, tentava-se verificar a validade e a universalidade dos quadros psicopatológicos descritos na Europa e registrar suas supostas recorrências em culturas diversas. Buscava-se a comprovação da existência de uma essência da doença mental, uma forma invariante, a despeito de um conteúdo variável, determinado culturalmente (referência à díade forma/conteúdo e aos conceitos de patogenia/patoplastia do adoecimento mental, vindos de Kahlbaum, trabalhados por Kraepelin e firmados por Jaspers) (DALGALARRONDO, 1996). A visão que o homem branco europeu tinha dos outros povos, ditos primitivos, foi, durante boa parte do século XIX e início do século XX, determinada pelo racismo científico. Este era uma crença compartilhada culturalmente, com status de paradigma científico, e teve importante articulação com a teoria da degenerescência. Dentre os muitos autores que embasaram suas teorias em uma pretensa hierarquia racial destaca-se, por sua influência na medicina, o francês Paul Broca, fundador da Sociedade Antropológica de Paris. Os pressupostos básicos de Broca eram: o tamanho do cérebro era diretamente ligado ao grau de inteligência; as raças humanas ocupavam posições hierarquicamente distribuídas; o cérebro era maior nos adultos que nos velhos, no homem que na mulher, nos homens eminentes que nos medíocres, nas raças superiores que nas inferiores. Broca utilizava ainda, na sua classificação racial, características físicas mais óbvias, como a cor da pele, cor e tipo de cabelos, cor dos olhos e tipos nasais.As suas principais medidas craniométricas eram: - índice craniano (proporção largura/comprimento), que classificava os indivíduos em braquicéfalos (predomínio da largura) e dolicocéfalos (predomínio da altura); - medida do ângulo facial (grau de projeção anterior do rosto e da mandíbula - quanto maior a anteriorização, maior a inferioridade; - peso do cérebro, bem como a proporção entre as regiões anterior e posterior deste (GOULD, 1991). Feitas estas observações preliminares, passemos ao nosso objeto de estudo, que é a influência da teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira, estudada através da contraposição de trechos de dois importantes autores, Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira. II- Raimundo Nina Rodrigues : a teoria da degenerescência e o racismo científico à brasileira A discussão sobre a questão racial teve importância fundamental na formação da auto-imagem brasileira, sendo recorrente nas produções sociológicas e literárias a partir da segunda metade do século XIX: o Brasil se definia pela raça. A partir de 1870, idéias que seriam importantes para a construção das teorias sobre a relação entre raça e alienação mental foram introduzidas no Brasil, tais como o positivismo, o evolucionismo social e o darwinismo (SKIDMORE,1998). Na área médica, em termos gerais, assim se dividia a produção científica: no Rio de Janeiro, ela era voltada às doenças infecto-contagiosas (malária, febre amarela, cólera, sífilis), a seus tratamentos e a sua prevenção; na Bahia, os médicos concentravam-se especialmente na questão racial e no que consideravam ser os desdobramentos da constituição de um país mestiço - o problema do negro no Brasil passava a ser uma questão científica, vista pelo ângulo do evolucionismo social e da teoria da degenerescência (SCHWARCZ, 1993). É neste contexto que se insere a obra do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), que em sua multiplicidade de interesses transitou entre a antropologia, a psiquiatria e a medicina legal, disciplinas então ainda nascentes e em fase de diferenciação (CORRÊA, 1982; COSTA, 1994). Para entender a influência de N. Rodrigues deve-se considerar que, na época, o saber médico passara a regular, de forma muito mais intensa do que o fizera até então, a vida individual, das populações e das instituições urbanas (MACHADO et al., 1978). No período de produção científica de Nina Rodrigues, esse caráter regulador da medicina, embora estabelecido, necessitava ainda de maior consolidação e esse autor trabalhou em tal sentido. Ou seja, como um dos fundadores da psiquiatria e da medicina legal, Nina Rodrigues preocupou-se em reivindicar para estas disciplinas a prerrogativa de explicar cientificamente o comportamento humano e de, em conseqüência, ditar as regras para a avaliação de indivíduos cujas atitudes fossem consideradas mórbidas, decidir quanto à sua imputabilidade penal e principalmente, sugerir meios preventivos para evitar a loucura e o crime. Seu primeiro livro (1894) intitulou-se As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Em 1900, saiu seu segundo livro, em francês, L’animisme fétichiste des nègres de Bahia; seus terceiro e quarto livros foram publicado em 1901, O Alienado no direito civil brasileiro e Manual de Autópsia Médico Legal. Além dos livros citados, publicou em revistas médicas e na imprensa diária; cerca de três décadas após sua morte, Artur Ramos organizou seus escritos esparsos em mais dois livros, Os africanos no Brasil (1932) e As coletividades anormais (1939) e republicou em português O animismo fetichista dos negros baianos (1935) (RAMOS, 1939). Como citado na introdução, no período em estudo, o conceito de degenerescência era corrente na medicina, especialmente entre os autores franceses e italianos, referenciais teóricos de Nina Rodrigues. Uma importante referência sua foi o italiano C. Lombroso (1836-1909) criador de uma antropologia criminal, que relacionava crime e degeneração, relação que Nina Rodrigues pretendeu verificar no Brasil. Nina Rodrigues acreditava que as três raças fundamentais (negros, índios e brancos) transmitiriam "aos produtos de seus cruzamentos caracteres patológicos diferenciais de valor" (NINA RODRIGUES, 1939f, p.203), e que a correta diferenciação das raças seria muito importante para a prática médica, nas doenças físicas como nas mentais. Para ele, a inferioridade racial dos negros e indígenas, com relação ao branco, era indiscutível; assim sendo, a miscigenação entre raças em diferentes patamares evolutivos resultaria, fatalmente, em indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico, intelectual e nas suas manifestações comportamentais. A seu ver, um leve verniz de civilização poderia recobrir as populações mestiças, como os sertanejos, mas certas condições sociais fariam eclodir o lado bárbaro e selvagem destes, mal refreado por regras que não eram as suas, incompatíveis com o seu suposto nível mental. Vale observar que Nina Rodrigues, embora colocasse a inferioridade intelectual dos negros como fato científico, não desprezava suas manifestações culturais, tanto que deixou detalhados estudos antropológicos, em que registrou suas pesquisas entre ex-escravos africanos remanescentes em Salvador, no sentido de determinar as origens, as línguas e as religiões originais dos diversos grupos vindos da África, reconhecendo a grande influência desta contribuição na cultura brasileira (ODA, 2000). Embora considerado um mestre por seus contemporâneos, N. Rodrigues teve um período de relativo esquecimento; somente cerca de 30 anos após a sua morte ele foi redescoberto, suas obras republicadas e seu nome associado a uma escola de pensamento. Médicos atuantes em psiquiatria, antropologia e em medicina legal, como Arthur Ramos e Afrânio Peixoto, se declararam seus discípulos e continuadores. Nos escritos destes autodenominados discípulos evidencia-se a preocupação em reforçar a figura de Nina Rodrigues como espécie de "mito de origem" de uma escola de medicina, a Escola Baiana (CORRÊA, 1982). Entretanto, uma análise mais detida das obras destes autores mostra mais pontos de ruptura que de continuidade com o referido mestre – esta, porém, já é uma outra história... II.1- Trechos de Nina Rodrigues Do artigo "O regicida Marcelino Bispo" (1899/1939e), que tematiza a relação crime/loucura, foram escolhidos alguns trechos representativos da abordagem psicopatológica de Nina Rodrigues. Antes, uma breve explicação histórica: em cinco de novembro de 1897, o primeiro presidente civil da república brasileira, Prudente José de Morais Barros (1894-1898), sofreu um atentado, do qual saiu ileso; porém, não teve a mesma sorte o ministro da guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, que morreu ao tentar prender o anspeçada Marcelino Bispo de Melo, o autor do atentado. Este foi preso e, dois meses depois, suicidou-se na cadeia. Instaurado o processo judicial, verificou-se o envolvimento de vários políticos importantes no incidente (VIANNA, 1970). Prudente de Morais havia herdado de seu antecessor, marechal Floriano Vieira Peixoto, o Marechal de Ferro, uma situação política turbulenta e economicamente instável; então, seu governo caracterizou-se por tentativas de conciliação entre grupos políticos antagônicos e teve ainda que lidar com o descontentamento dos militares. Ainda que Floriano Peixoto, oficialmente, se opusesse a qualquer conspiração contra a ordem constitucional, muitos de seus admiradores, denominados florianistas, não pensavam assim, especialmente os militares mais jovens, fortemente influenciados pela doutrina positivista, e que acreditavam que só o poder militar poderia "purificar" as instituições do país e levá-lo ao progresso - a recente morte de Floriano havia reforçado ainda mais a mitificação de sua figura (CARDOSO, 1975). Foi sob uma ótica muito particular, a da psicopatologia, que Nina Rodrigues analisou o incidente descrito. Ele não desconsiderou, por certo, as circunstâncias sociais e políticas envolvidas, mas deu primazia à explicação psicopatológica, na justificativa das atitudes dos envolvidos. Neste artigo, enfoca principalmente Marcelino Bispo e de forma secundária Deocleciano Martir, capitão do exército e editor do jornal florianista O Jacobino, também envolvido. O artigo tem por objetivo demonstrar que o caso poderia ser explicado recorrendo-se à teoria da degenerescência, na vertente da antropologia criminal para explicar os perfis de Marcelino Bispo e de Deocleciano Martir - ele classificou o primeiro entre os degenerados violentos, subcategoria regicidas ou magnicidas e o segundo, entre os degenerados superiores. A seguir, trechos de O regicida Marcelino Bispo (1899). "A história da tentativa de assassinato do presidente da República, do crime de 5 de novembro, encarna, no executor uma mistura curiosa dos caracteres dos regicidas modernos e dos súcubos criminosos, ao passo que o criador ou urdidor do atentado reveste apenas a trama do sectário criminoso vulgar. (...) Pelos laços hereditários, Bispo pertence também aos regicidas. É ele mestiço em sangue muito próximo dos índios brasileiros (...) Já desta circunstância se pode induzir o grau da sua impulsividade hereditária. (...) se os pais do assassino eram honestos, pacíficos e laboriosos, ‘houve outros parentes do criminoso, caboclos perversos e asssassinos (...)’. Aos regicidas pertence principalmente Marcelino Bispo por sua natureza, pois como todos os regicidas é evidentemente um degenerado. Dos estigmas físicos pouco se sabe. Infelizmente Marcelino Bispo não foi submetido a exame de sanidade mental. (...) Ainda assim em fotografias e gravuras que vi, davam-lhe um grande desenvolvimento e saliência da mandíbula, um dos estigmas mais importantes da degeneração criminosa ou mórbida. Por três caracteres acentuadíssimos se revela em Marcelino Bispo a degeneração psíquica dos regicidas: a) Pelo desequilíbrio ou desarmonia mental, (....) a mais exagerada energia e firmeza de execução voluntária se combina com a mais ingênua boa fé; b)Pela instabilidade doentia que o leva a não se fixar em parte alguma, adotando uma vida errante e mutadiça. (...) em satisfação, parece, aos instintos nômades de seus avós selvagens. (...) c) Pelo misticismo exagerado, a nota mais saliente do caráter de Marcelino Bispo e pedra angular da constituição mental dos regicidas. (...) Em torno desta exaltação mística pelo seu ídolo se desenrolou todo o drama (...). d) Finalmente, pertence Bispo aos regicidas pela execução do atentado. (...) Em pleno dia, às duas horas da tarde, numa praça de guerra, onde a multidão aclamava os vitoriosos que regressavam da luta, Marcelino Bispo, armado de garrucha e punhal, atira-se ao chefe da nação e, falhando a arma de fogo, prostra o marechal que o ia prender."(p.172-176, grifos do texto original). Nina Rodrigues julga que apenas com relação à sua terminação, o suicídio, difere M. Bispo dos regicidas clássicos, que sustentariam até o fim, diante dos tribunais, a legitimidade de suas idéias, sem arrependimento e sem culpa. Sobre Deocleciano Mártir, diz: "Inteligente (...), reunindo consumada habilidade à mais completa ausência de escrúpulos conseguiu, na fase tensa e agitada que atravessa o espírito público, parecer representante genuíno (...), partidário exaltado mas convicto das vantagens da supremacia militar (...). O desequilíbrio mental deste degenerado superior, de constituição moral toda falha, havia de adaptá-lo maravilhosamente às quadras agitadas e difíceis (...). E Deocleciano Martir pleiteou a chefia dos sentimentos florianistas (...) convertendo-os numa seita intolerante." (p.167-168). "Agitado, desequilibrado, degenerado também, Deocleciano Martir não pode todavia invocar as atenuantes psicológicas de uma determinação delirante. É um anormal, mas anormais e degenerados são em regra os criminosos. A existência de um estado mórbido é nele em todo caso menos clara (...) (p.192). Sobre a responsabilidade social na criminalidade: "Sem em nada diminuir a responsabilidade direta e imediata dos criminosos, não é menos evidente por isso a co-participação indireta do meio social e do momento político. (...) E, sem prejuízo do valor sempre incontestável do fator antropológico, na determinação criminosa, assim se confirma aqui a justa sentença de Lacassagne: ‘a sociedade é o caldo de cultura dos seus micróbios criminosos’." (p.193-194).
III- Juliano Moreira e as causas da degeneração do povo brasileiro Juliano Moreira (1873-1933), nascido na Bahia, é também designado fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil (diria que, como Nina Rodrigues, ele ocupa lugar entre os "mitos de origem" da disciplina). Alguns dados biográficos são relevantes: era mulato, de família pobre, precocemente ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, graduando-se aos 18 anos (1891). Já em 1896, era professor substituto da seção de doenças nervosas e mentais da mesma escola. De 1895 a 1902, freqüentou cursos sobre doenças mentais e visitou muitos asilos na Europa (PASSOS, 1975; CARVALHAL, 1997). Dirigiu o Hospício Nacional de Alienados de 1903 a 1930 e, embora não fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio, colaborou na formação de muitos de seus alunos. Ao seu redor reuniram-se médicos que viriam a ser organizadores de diversas especialidades: neuropsiquiatria, medicina legal, pediatria e clínica médica, tais como Afrânio Peixoto, Antonio Austregésilo, Francisco Franco da Rocha, Henrique Roxo, Fernandes Figueira e Miguel Pereira, entre outros (LEME LOPES, 1964). Sua obra escrita é extensa: no início da carreira publicou estudos nas áreas de sifiligrafia, dermatologia e infectologia. Depois, concentrou-se na área de neuropsiquiatria, escreveu sobre modelos assistenciais e sobre a legislação referente aos alienados, discutiu a nosografia psiquiátrica, estudou as histórias da medicina e da assistência psiquiátrica no Brasil. Sua correspondência com Emil Kraepelin mostra ainda outra faceta sua, o interesse pela psiquiatria comparada (DALGALARRONDO, 1996). Juliano Moreira também opinou sobre a questão da degeneração do povo brasileiro: porém, ele recusou-se a atribuir à mestiçagem a sua causa, especialmente no que se referia a uma suposta contribuição negativa dos negros na miscigenação. A posição de J. Moreira era minoritária entre os médicos, nas primeiras décadas do século XX, quando polemizou sobre o assunto com Nina Rodrigues (MOREIRA, 1908, 1922). Outra posição sua, divergente da de muitos alienistas, era a negação de que existissem doenças mentais próprias dos climas tropicais (MOREIRA & PEIXOTO, 1906). Ressalte-se que a teoria da degenerescência nunca foi colocada em questão por Juliano, mas sim os seus fatores causais. Para ele, na luta contra as degenerações nervosas e mentais, os inimigos a combater seriam o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e educacionais adversas; o trabalho de higienização mental dos povos, disse ele, não deveria ser afetado por "ridículos preconceitos de cores ou castas (...)" (MOREIRA, 1922). Lembremos que, de meados do século XIX até cerca de 1920, o Brasil se definia pela raça, isto é, as discussões sobre o caráter nacional e o futuro da nação passavam pela solução dos problemas atribuídos à miscigenação do povo brasileiro. Já a partir das décadas de 1910/20, o foco passa gradativamente para as doenças do povo brasileiro: o isolamento geográfico, as infestações por doenças parasitárias (como ancilostomose e doença de Chagas) e a triste situação sanitária das populações interioranas explicariam seu atraso e sua apatia (LIMA & HOCHMAN, 1996). Consoante com esta crença no papel redentor da ciência, Juliano Moreira defendeu que a função mais importante da psiquiatria era a profilaxia, a promoção da higiene mental e da eugenia (ODA & DALGALARRONDO, 2000, 2001). Sobre tal ponto, deve-se ressaltar que a eugenia defendida por J. Moreira (assim como por vários neuropsiquiatras a ele ligados) não era uma eugenia racista. Sem dúvida, seu projeto médico tinha um caráter intervencionista, mas não pode ser identificado à ideologia eugenista nazista. Na falta de melhor termo, a chamaríamos de uma eugenia sanitarista - e este é um ponto da história da psiquiatria brasileira que está a merecer melhores estudos. III.1- Trechos de Juliano Moreira Para ilustrar a psicopatologia de Juliano Moreira, são apresentados trechos do artigo "Querelantes e pseudo-querelantes" e da comunicação "A luta contra as degenerações nervosas e mentais". Querelantes e pseudo-querelantes (1908). "Há em psiquiatria um capítulo que por seu alto interesse social e jurídico merece sempre o maior concurso de estudos e observações. Refiro-me ao que se tem chamado processomania. (...) (...) apuramos que há casos de processomania no decurso da imbecilidade, da demência senil, do alcoolismo, etc. É pois a processomania um síndromo e não uma entidade clínica à parte. Querelar é um sintoma não raramente encontrável em pacientes com diagnósticos mui diversos. Quando, porém, esse sintoma é o predominante no delírio do paciente, e dá às interpretações delirantes dele um tom demandista característico ao lado dos caracteres gerais da verdadeira paranóia, então é justo admitir ao lado desta uma variante clínica a que se convencionou dar o nome de paranóia querelante.(...)" (p.426-427). "A.P.D., pequeno proprietário, falecido aos 55 anos de idade, mestiço, filho de italiano e de uma preta. Antecedentes hereditários - Pai bêbado habitual, mãe nada apresentava de anormal." Juliano Moreira, a seguir, descreve detalhadamente a história de APD, sua vida na infância, seus estudos até o segundo ano de direito, a sua volta à casa paterna, interrompendo a faculdade a contragosto e, a partir daí, o desenvolvimento de preocupações exclusivamente voltadas a uma questão de limites entre suas terras e de um vizinho. Segundo J. Moreira, a "paranóia querelante" levou APD a inúmeras e intermináveis demandas judiciais, durante 32 anos. Ele teve oportunidade de conversar várias vezes com o paciente (socialmente), tendo testemunhado o caráter delirante de suas preocupações. "Tendo mostrado este doente ao Prof. Nina Rodrigues, achou ele no caso mais uma prova de que a mestiçagem é um fator degenerativo. Ora, tendo eu sempre me oposto a esta maneira superficial de ver o problema, aproveitei uma longa estada na Europa para examinar os parentes de A.P.D. que tinham ficado na Europa livres da mestiçagem. (...) Apurei o seguinte: o velho pai de nosso doente tivera dois irmão e uma irmã. Dos primeiros, um também partiu para a América desertando das fileiras do exército. Dele não se sabe notícias. O outro, imbecil, ébrio habitual, turbulento, muito supersticioso, esteve preso duas vezes por ter ofendido fisicamente duas velhas (...); casou-se e teve dois filhos, ambos imbecis. A irmã epiléptica teve três filhos: um também epiléptico, um imbecil e o terceiro homicida, supõe-se que também epiléptico (...). Vê-se que o ramo europeu da família, livre da mestiçagem, em nada foi superior ao ramo mestiço brasileiro.(...) Intelectualmente mesmo A.D. apesar de paranóico era evidentemente superior aos seus primos italianos. Não afirmarei que o relativo lucro proveio do cruzamento, mas sim da circunstância de ser a mãe dele uma mulher sã, não tendo ele herdado sua eiva senão de seu pai, bêbado habitual, nada escrupuloso em negócios e com evidente tendência demandista." (p.431-432). A luta contra as degenerações nervosas e mentais (1922). "1º - Em um Congresso de Medicina social (...), o conceito de degeneração tem de ser amplo, isto é, há de abranger até a noção de inadaptabilidade social dos indivíduos. Assim sendo, (...) apanha um maior número de casos capazes de serem atingidos pelas medidas de profilaxia susceptíveis de salvaguardar a melhor higiene mental dos povos. 2º - Sendo as infecções, as infestações e as intoxicações (...) os maiores fatores deseugenéticos da humanidade e portanto os maiores inimigos da saúde mental, às providências dos orgãos prepostos a garantir a eficiência da higiene geral do nosso povo, temos que confiar a diminuição crescente das cifras das estatísticas das doenças mentais. 3º - A campanha bem feita contra as doenças venéreas, mui especialmente a sífilis, reduzirá consideravelmente (talvez de mais de 30%) o número de doentes nervosos e mentais. 4º - A campanha contra os abusos das bebidas alcoólicas e de outros inebriantes suprimirá mais de 40% dos casos de distúrbios mentais. 5º - Evitada a procriação entre gentes taradas pelos males que por certo vão maleficamente concorrendo com os dois fatores já citados nas duas rubricas anteriores, logo conseguiremos a redução de pelo menos umas duas dezenas em um cento de casos mentais. 6º - O combate a uncinariose e a outras verminoses completará a luta eficaz contra as doenças mentais. 7º - Enquanto não obtivermos, da aplicação dos preceitos da eugenética (...) a redução máxima nas cifras de atipias nervosas e mentais, alargaremos por mais exeqüível que o é, o raio de ação da higiene mental. 8º - Comecemos na escola de envolta com o ensino do alfabeto a convencer à criança que é preciso dar combate aos fatores deseugenisantes da espécie. 9º - Continuemos nas oficinas, nas escolas secundárias, na caserna, nas escolas superiores e em todas as coletividades o trabalho de higiene mental que tornará efetiva a melhor profilaxia contra os fatores de degradação da nossa gente, sempre sem ridículos preconceitos de cores ou castas, mesmo porque só assim os que foram senhores e se compenetraram de sua superioridade, merecerão ser absolvidos do feio pecado de terem vivido por muito tempo fartamente mercê do trabalho desmoralizado dos outros, que eles ou seus ascendentes degradaram e escravizaram."
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