Agosto de 2001 - Vol.6 - Nº 8
Psiquiatria,
outros olhares...
Família pobre em terapia
familiar
Dr.
Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França), Professor
Titular de Psiquiatria da Fac. Medicina/UFCe, Diretor do Centro
de Estudos da Família.
Seria
possível instituir atendimento familiar em populações de baixa renda
como programa de uma instituição pública? Quais os cuidados do ponto
de vista administrativo bem como ao nível técnico e político?
A
partir das experiências vivenciadas pelo autor tenta-se esboçar
um perfil mínimo da clientela, destacando os elementos de solidariedade
e desagregação presentes na dinâmica familiar e no contexto sócio-cultural.
Finalmente,
discute-se e propõe-se os eixos básicos para uma intervenção eficaz
junto a estas famílias.
AVALIAÇÃO
Do
ponto de vista administrativo pode-se assinalar, dentre outros,
os seguintes aspectos:
- Observa-se,
sobretudo nas instituições ligadas ao sistema de saúde,
uma progressiva municipalização dos serviços como parte
de uma política definida na Constituição de 1988. O Sistema
Unificado de Saúde (SUS) não tem sido exitoso em muitos
lugares, não atingindo os objetivos propostos. Houve uma
gradual desorganização do sistema e da rede de instituições.
Nem sempre a municipalização acompanhou-se de transferência
de recursos, do nível federal e estadual para os municípios,
revelando, com freqüência, disputa política regionais. A
esta indefinição, deve-se registrar a diminuição sistemática
dos recursos para a área de saúde, repercutindo diretamente
nas atividades destas instituições;
- apesar
do esforço de descentralização, ainda observa-se uma enorme
hierarquia burocratizante que emperra a máquina e a eficácia
das ações empreendidas. Está-se diante de instituições "baleias".
O Brasil, como um todo, parece adequar-se a essa designação.
O que se contrapõe aos países e instituições "tigres"
e "lebres", conhecidos do mundo desenvolvido.
Cada iniciativa é abortada, seja pela resistência às mudanças,
seja pela morosidade na adoção destas novas medidas e projetos.
Alinhe-se, ainda, a constante mudança dos quadros de direção,
implicando na constituição de novas equipes e na proposta
de novos projetos, abandonando-se os já elaborados ou em
andamento. Mal se inicia uma nova experiência e já se propõe
uma outra, num desgaste constante das equipes e no comprometimento
do entusiasmo;
- certos
princípios, acentuadamente clássicos, justificados historicamente
pela máxima "quanto maior, melhor", começam a
dar lugar a um novo paradigma: "ganham não os maiores,
ganham os mais ágeis". O serviço público e suas instituições
estão longe de atingir uma velocidade razoável para obtenção
do êxito e da eficácia; generaliza-se a crença de que, no
serviço público, estaria concentrada uma enorme tendência
corporativista. Não vestem a camisa do sistema público.
Estão ali, simplesmente, porque têm um emprego e não um
trabalho. Cada vez que se propõe uma cobrança mais clara
do desempenho profissional, o sentimento corporativista
prevalece, afastando qualquer proposta de mudança e eficácia.
Do
ponto de vista técnico, destaca-se uma clara lacuna na formação
dos profissionais que lidam no setor. O trabalho com famílias ainda
é percebido como uma novidade exótica. Trabalhar com enfoque sistêmico,
ainda mais desconhecido. Não há estímulo ao investimento profissional.
Observa-se mesmo uma certa rejeição, posto que esse engajamento
é percebido, não raro, como uma tarefa a mais.
Doutra
parte, mesmo havendo o desejo de se aperfeiçoar, o profissional
notará uma grave lacuna do ponto de vista de uma práxis nacional.
A maior parte da bibliografia colocada à disposição, é constituída
por autores estrangeiros, que obviamente, retratam famílias e situações
com outro quadro de referência, contexto e cultura. Poucos estudos,
até hoje, foram feitos sobre a família brasileira, e mais ainda,
a família que procura os serviços públicos. Isto é, família de periferia,
dos bairros distantes, onde as carências sociais estão agudizadas.
Há um vazio teórico.
A
tentação é de procurar aplicar modelos alienígenas com receitas
prontas. Pode-se citar, como exemplo, a enorme diferença de casos
de anorexia mental nos países desenvolvidos e no Brasil. Um adolescente
aqui não "ousaria" entrar em greve de fome. Seus outros
irmãos, igualmente famintos, não deixariam de saborear aquilo que
ele rejeita. De igual forma os princípios e valores que são próprios
a cada sociedade e cultura.
Nesse
mister, cabe um alerta e uma reprovação àqueles que se sujeitam
a modismos e modelos prêt-à-porter, de preferência aqueles vindos
de países economicamente mais evoluídos, como se isso fosse um paradigma
absoluto.
Não
se sabe o que fazer com estas diferenças e, não raro, são avaliadas
como fracassos as tentativas negativas de adequação. Doutra parte,
os profissionais estrangeiros são recebidos como os novos magos
da sabedoria absoluta. Rapidamente são eleitos gurus e passam a
formar escolas exóticas e fechadas, numa lógica epistemologicamente
insultante.
Há
que se destacar, ainda, a grande rigidez nos horários de atendimento
e acolhimento. Restringe-se a calendários fixos, de tal a tal hora,
no mais das vezes, exatamente quando as famílias não podem se mobilizar
e vir. A onipotência do profissional não lhe permite desconfiar
das restrições de tempo às quais a família está contigenciada para
uma terapia.
Igualmente,
não parece comum e freqüente que se discuta, preliminarmente, um
contrato terapêutico, o sistema de avaliação e continuidade. Fica
tudo no subentendido. Não se verbaliza, nem se estabelecem regras
precisas. Além do valor pedagógico de tais atitudes, elas significariam
um esforço na perspectiva de pontuação do contrato. Confunde-se,
não raro, o que é público, como sendo o de ninguém. Sendo do governo
e gratuito, tudo é possível!...
Essa
observação tenta lembrar, claramente, que a terapia precisa ser
pontuada de forma clara. O projeto terapêutico deve ser discutido
preliminarmente com a família, destacando-se os objetivos. E, obviamente,
deve inscrever-se num tempo. Uma terapia sem data de término vira
"papo" entre amigos...
Do
ponto de vista político há, inicialmente, o risco de psicologizar
os conflitos sociais. Isto é, há problemas familiares graves que
transcendem a dimensão de uma intervenção psicoterapêutica, seja
de inspiração sistêmica ou mesmo psicodinâmica.
Caberia,
nestes casos, muito mais estimular uma melhor organização comunitária
ou mesmo uma participação política do grupo. Cada domínio profissional
tem as suas propriedades e sua pertinência. As questões ligadas
à moradia, falta de escolas, emprego, saneamento básico, segurança
pública não podem ser resolvidas dentro de um quadro psicoterápico.
A Política é mais eficaz e o desaguadouro evidente dessas situações.
Deve-se
precisar com as famílias o que a equipe se propõe a realizar, quais
os objetivos que deseja atingir, sobretudo, na direção da clarificação
de situações. Deixar claro, igualmente, o tempo de duração da terapia,
quando se pretende encerra-la.
Lamentavelmente,
as lutas salariais e por melhores condições de trabalho das equipes
profissionais, tem trazido graves prejuízos a estas terapias e muitas
vezes, quando muito longas estas greves, o contrato terapêutico
é totalmente rompido e/ou abandonado, colocando ainda mais em descrença
o serviço público.
A
FAMÍLIA CARENTE
O
trabalho que se tem realizado com famílias carentes permite apresentar
algumas características que importam na abordagem terapêutica:
- Grande violência física
– não é raro que os conflitos familiares ou conjugais assumam
o registro da violência física. Na verdade, a violência
ao nível familiar – de casa – é tão ou mais significativa
do que a violência das ruas. Só que essa violência familiar
não é divulgada. Ela fica escondida, não é revelada. Desde
que haja um clima de maior confiança, seguramente que esse
assunto tomará um grande interesse e espaço. Cabe aos terapeutas
estarem alertas e não portarem julgamentos;
- ausência da figura paterna
– Assume uma proporção significativa a existência de famílias
sem a presença da figura paterna. Seja porque esse pai deixou
a família, seja porque ele tem um papel irrelevante. Trata-se
da falência do pai. Destituído da condição de provedor da
família – pelo desemprego, pela baixa remuneração, pelo
esvaziamento da autoridade – nada lhe resta, senão assumir
um comportamento de ameaça e de violência, tentativa de
recuperar a função, ou, fugir pelo abandono simples ou pela
bebida. De alguma forma é muito importante estar atento
a esses novos arranjos familiares e o significado que eles
podem ter na dinâmica familiar;
- fatalismo histórico –
elemento social evidente, esse fatalismo pode representar
também, ao nível da dinâmica familiar, um significado muito
grande. "É assim mesmo". "Nada pode mudar",
"Deus quis assim". "Nasceu assim vai morrer
assim...". Esse tipo de pensamento é muito bloqueante.
Parece um valor cultural muito impregnado e difícil de ser
percebido e, obviamente, mudado;
- imediatismo (Aqui e Agora)
– dada a condição de dor e desesperança, pouco se crê nas
promessas ou nas possibilidades a longo prazo. As situações
são tão graves e dolorosas que precisam ser encaradas de
imediato. Por isso, é bom que a terapia proponha algo de
concreto. Os gestos, os rituais, as condutas, mesmo expostas
a título de prescrição, podem ter uma eficácia e uma resposta
que não coloca a terapia num vazio;
- utilitarismo – dessa forma,
é natural que sejam buscadas soluções mágicas, milagrosas.
Busca-se uma resposta que sirva para aquele sintoma especificamente
declarado. Não aceita-se arrodeios e teorias. As construções
ou hipóteses teóricas estruturais podem ter pouca aplicabilidade
nestas circunstâncias. Não é raro que a família esteja sempre
chamando o profissional para a realidade;
- desagregação e marginalidade
– naturalmente que, algumas vezes, a intervenção solicitada
aparece com atraso. A família está chegando no momento inadequado.
O que se poderia fazer, não é mais possível. Trabalhar nessa
estreita faixa do possível é um grande desafio a sustentar.
Muitas vezes o terapeuta é procurado quando as circunstâncias
são totalmente desfavoráveis. Exemplo: a polícia prendeu
o filho por tráfico de drogas, o pai já é um alcoólatra
crônico, etc.
O
TEXTO E O CONTEXTO
Alguns
aspectos mais ligados à cultura também precisam ser destacados.
Eis alguns deles:
- Solidariedade
(gregária x grupal) – alguns técnicos, menos avisados, costumam
pensar que nas populações carentes, de baixa renda, haveria
um grande sentimento de solidariedade. O fato de cuidar
de uma criança da vizinha quando esta vai ao médico, emprestar
algum objeto de uso pessoal, aceitar certo tipo de relacionamento
mais próximo, como freqüentar a casa do amigo, etc., faz-lhes
pensar que existiria uma maior aproximação social, sentimento
de solidariedade e consciência coletiva.
Na
verdade, essa solidariedade é epidérmica, superficial, simplesmente
gregária, algo instintiva e espontânea. Não configura uma solidariedade
grupal, nascida de uma consciência crítica. Por isso, as propostas
de uma maior participação comunitária redundam em fracasso ou numa
mobilização muito penosa, com poucos frutos. Esse agrupamento formado
não se consolida na luta e na reivindicação. Isto leva o profissional,
quase sempre, a experimentar uma grande frustração. A avaliação
foi demasiado otimista, ou melhor, equivocada;
- condições precárias de
sobrevivência – a forma de utilização do espaço físico altera
as relações familiares e sociais. O lar, espaço da família
é, com freqüência, extremamente reduzido, muito pequeno.
Observa-se uma intensa promiscuidade e, pela diminuição
do dito espaço, parece ocorrer uma maior agressividade entre
os pares. A contenção e os risco de promiscuidade sexual
são evidentes. Por outro lado, o espaço da rua é tido como
o da socialização, do risco e da violência. Terra de ninguém,
posto que não se pode estabelecer as regras sociais de forma
introjetada;
- perda de referências culturais
– a migração, constituindo-se no fenômeno social mais significativo
da recente História do Brasil, tem ensejado a que milhares
de famílias deixem o interior, buscando nas grandes cidades
novas formas de convivência. Há uma perda rápida e brutal
dos referenciais culturais. Sem poder fazer apelo aos antigos
valores, sem ter acesso aos novos, será uma fácil massa
de manobra, em todos os planos. Desde a proposta consumista.
Compra tudo que a TV diz que é para comprar, tenta conseguir
tudo que é importante mostrar que tem. Até a manipulação
política e a perspectiva demagógica do uso das massas. Os
valores morais e religiosos são rapidamente descartados
por total inadequação. Sustentar um diálogo de gerações
– pais x filhos – numa perspectiva assim descrita parece
muito utópico. Sobra o risco da violência, da agressão e,
algumas vezes, da morte.
INTERVENÇÃO
Pensar
uma intervenção terapêutica dentro desse contexto exige muito cuidado
e competência. Aliás, uma competência não encontrada nos livros.
Em que consistiria essa ajuda? Algumas idéias parecem fundamentais:
- Escuta qualificada – Nem
tudo é ruim e marginal. Estas famílias, muitas vezes, precisam
apenas de um lugar de escuta, espaço e momento onde possam
verbalizar os conflitos e as dificuldades. Cabe ao terapeuta,
nestas circunstâncias, ser também pedagogo, esculpir alternativas
e situações que ensejem o aprofundamento dessas contradições,
sem a pretensão perigosa da cura. Por outro lado, o terapeuta
não pode se auto-proclamar juiz, até porque não se trata
de dirimir contenciosos. Sabendo que jamais o Estado, instância
que representa, pode arrolar-se como substituto das esferas
familiares, como se pudesse inaugurar um Estado-Mãe. Essa
observação parece ainda mais pertinente quando constata-se
as propostas e ações do Estado que tentam, deliberadamente
assumir o papel de pai/mãe. (Vide políticas de menor de
rua, creches, orfanatos, etc.);
- recursos humanos – em
todos os casos é fundamental investir na formação de recursos
humanos. Essa é uma prioridade essencial, criando uma política
de estímulo e ajuda. O profissional qualificado deve ser
reconhecido como uma meta indispensável do serviço público.
Primar pela eficiência e qualidade, justamente por ser público.
De igual forma deve-se promover a divulgação dos serviços
prestados por estas instituições, como forma de legitimação
e reconhecimento sociais;
- reproduzir/divulgar –
nesse mister é essencial promover uma ampla discussão e
divulgação das experiências que vêm sendo realizadas, sendo
objetivo fazer reproduzir e multiplicar essas iniciativas.
Esse tipo de intervenção requer um melhor sistema de avaliação,
fator indispensável nas atividades a que se propõe.
CONCLUSÃO
Apesar
de todas as dificuldades expostas ao longo desse trabalho, parece
muito rico poder-se discutir o assunto, a partir de enfoques tão
diversos. Não parece sem explicação que mesmo em eventos científicos
esse tema seja abordado de forma marginal ou mesmo esquecido. Ele
nos constrange ou mostra com mais evidência as nossas limitações.
Seja
como for, não se pode negar a importância e pertinência a esse tipo
de recurso terapêutico.
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