Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2001 - Vol.6 - Nº 2

Psiquiatria, outros olhares...

A ETNOPSIQUIATRIA segundo TOBIE NATHAN

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França), Professor
Titular de Psiquiatria da Fac. Medicina/UFCe, Diretor do Centro de Estudos da Família.

Tobie Nathan é psicólogo e psicanalista de formação. Uma história pessoal bem diversa. Nascido no Egito, pais judeus, fez seus estudos secundários na Itália e, depois a França, onde profissonalizou-se e fez carreira universitária. Ele criou o primeiro ambulatório de etnopsiquiatria na França (1979), no Hospital Avicenne.

Mas, ele é um intelectual que sempre recusou-se a participar de escolas e capelas. Recebido em meio universitário, ele dirige hoje o Centro Georges-Devereux (nome do fundador da etnopsiquiatria nos anos sessenta) e que funciona como o laboratório de pesquisa fundamental.

"Nós trabalhamos sempre em colaboração com os médicos. Mas, a um certo momento, os dois sistemas entram em conflito. Precisamos da liberdade para explorar os dispositivos tradicionais sem que a medicina coloque seu veto. Donde a idéia de um centro de cuidados não médicos, mas que sejam de qualquer forma considerados como de cura." Diz Tobie Nathan.

Terapeutas muito implicados

A etnopsiquiatria se define como uma prática da psiquiatria. Ela integra de forma igual a dimensão cultural do problema psicológico e sua abordagem, e a análise dos funcionamentos psíquicos internos. Essa psicoterapia recorre igualmente a antropologia e a psicanálise. "A maioria dos terapeutas que trabalha aqui são migrantes de um tipo muito particular, explica Tobie Nathan.

"Eles são originários dos lugares de onde vem nossos pacientes, então, eles conhecem a cultura e a língua, mas eles são também diplomados pela universidade francesa. Seus interesses são duplo: a pesquisa mas também a evolução pessoal." Nathalie Zajdé, mestre de conferência em psicologia na Universidade Paris VIII é uma dos membros do centro. Para ela, trata-se de um percurso individual muito acidentado: "O material com o qual nós trabalhamos não foi recolhido por etnólogos franceses, explica ela, mas por migrantes, que dessa forma tornam-se experts de seu próprio mundo cultural."

Com efeito, decifrar um sistema tradicional com um gabarito de leitura ocidental risca de chegar a um contra-senso. Tomemos o caso de uma certa criança, com uma dezena de anos, que foi agredida com um ferro de engomar pela esposa de seu irmão mais velho. De modo clássico, configura-se como um caso de mal-trato que exigiria uma maior intervenção da equipe.

A consulta etnopsiquiátrica revela que a criança não pode assistir ao enterro do pai, na África. Desde então, ele imaginava que seu pai o chamava: ele se imaginava curandeiro e pedia que o matassem. Sua cunhada não lhe desejava fazer o mal: na África, pode ser normal matar uma criança-curandeira.

A terapeuta interviu na situação explicando à criança que ela não tinha necessidade de morrer para juntar-se ao pai, que ele podia sonhar com o pai. "Durante a sessão, recorda um participante, a sala estava cheia de curandeiros! Quando a situação desanuviou, não havia mais que uma família." Mas, explicar não é justificar, e o procedimento etnopsiquiátrico está longe de aceitar, por exemplo, a prática de uma mutilação sexual ou de servícias em nome do "respeito à diferença".

Doze terapeutas para um paciente

No Hospital Avicenne de Bobigny, uma dezena de pessoas (psiquiatras, psicólogos, pediatras... todos com formação psicanalítica e conhecedores de muitas línguas), cercam o paciente. Este é, geralmente, enviado por um serviço de psiquiatria, de proteção maternal e infantil (PMI) ou ainda por um dos serviços do hospital. A vinda de um paciente por demanda espontânea é rara na medida em que a lista de espera é de um ano. Esta estrutura é única na França. (tarifa de uma consulta: 225 francos).

Negociar com os ancestrais

"Os consultantes tem uma vivência traumática, ligada a imigração, que eles devem expressar com suas referências culturais, analisa a Dr. Marie-Rose Moro, psiquiatra que dirige há 7 anos o ambulatório de etnopsiquiatria do Hospital Avicenne. Mas isto não é que uma passagem que lhe permite de dar um sentido a estes seus sofrimentos, porque suas representações estão em movimento: ele tem um sentido cultural de origem mais também um sentido atual. Nós lhe propomos de fazer uma ligação entre tudo isso."

Assim, Talit, uma menina de sete anos, sofre de depressão e anorexia depois da morte acidental de sua irmã, no Mali. Os pais falam que eles passaram por muitas dificuldades para ter estes filhos, que mesmo a irmão, após ter si curado de uma doença física, foi brutalmente atingida por esse acidente fatal.

Os pais aceitaram essa morte evocando a fatalidade, mas Talit deduziu/pressentiu que um djinna - um ancestral - veio reclamar o seu dom, fazendo morrer crianças da família. "Era preciso identificar o djinna, encontrar o problema existente com o ancestral, fazer oferendas, isto é, elaborar um sentido cultural para compreender a situação. Em seguida somente o sofrimento individual poderá se expressar, senão, a terapia tornar-se-á ineficaz, indica a dra. Marie-Rose Moro. Quando eu falo dos ancestrais, são para mim realidades psíquicas, que é com o qual nós trabalhamos. Os antropólogos nos ensinaram bastante nesse domínio. Os pacientes dizem: "eu não creio nos djinnas, mas..." Estas teorias culturais são muito importantes, elas permitem de dar um sentido ao insensato".

As consultas podem ocorrer em francês ou na língua do país. "O tradutor deve poder dar seu parecer sobre a situação. Por vezes, isso pode parecer similar a que ele viveu, sua opinião é portanto interessante. De qualquer modo, eu me apercebi que o tradutor se expressava através de sua tradução, até as coisas pudessem ser claras" brinca a Dra. Moro.

Na metade dos casos, o problema é resolvido na consulta etnopsiquiátrica (uma a dez sessões em intervalo de dois meses). Um quarto dos pacientes resolve um pouco mais tarde com a equipe de origem e um outro quarto prossegue numa terapia individual. A tendência da consulta é ser a terapia curta.

MERGULHO EM ÁGUAS PROFUNDAS

No começo era um círculo, formado por uma quinzena de pessoas vindas de todos os horizontes do globo: psiquiatras da República dos Camarões, belgas ou uruguaios, psicólogos alemães e senegaleses, médicos romenos, pesquisador kabile, assistentes sociais francesas.... O paciente, integrado ao círculo, está acompanhado de um membro de sua família. Porque aqui não se recebe indivíduos, mas famílias e unicamente a partir da demanda de trabalhadores sociais: parteiras, peuricultoras, juízes da infância ou educadores.

Com seus muros verde escuros e suas cobertas escondendo as janelas, a vasta sala do Centro Georges-Devereux parece um laboratório de submarino. Com efeito, é um mergulho em águas profundas que efetuam todos os dias as equipes que se envolvem em sessões de duas a três horas, durante as quais tudo é gravado e filmado, depois de obter o acordo da família.

A sessão começa por uma rápida exposição dos fatos que motivaram aquela consulta. Histórias de vida são evocadas, parecendo sempre de uma complexidade extrema: mistura de culturas, de religiões, de línguas, problemas familiares transmitidos de geração a geração, sobre os quais vem se ajuntar as dificuldades específicas ligadas a migração e a perda das raízes. Às vezes, houve violência contra uma criança, uma garota. Por vezes, uma patologia deixa os médicos perplexos, tal como uma obesidade acontecida, sem modificação aparente do comportamento alimentar e pela qual as hospitalizações sucessivas foram em vão.Tudo é estrutura de pesquisa.

Aqui, considera-se que as crenças ancestrais constituem ferramentas eficazes para compreender e curar. Não se prescreve medicamentos. Trata-se, para o paciente, com a ajuda do grupo, de descobrir a sua própria "chave". Ele é questionado, bem como o parente que o acompanha, pelo terapeuta principal apoiado por outros participantes. Respostas inicialmente embaraçosas, em seguida mais naturais com longos espaços de silêncio. O tempo de descer às profundezas negadas: o culto dos ancestrais, os fetiches, o encantamento.... Todas estas pistas de leitura são, em princípio, válidas, só contando a eficácia. Os que intervém são convidados a dar suas interpretações. Apesar das telescopagens culturais, o trabalho coletivo de pesquisa explora as vias esquecidas, tenta de sair do labirinto. O grupo todo, completo, penetra em outra dimensão, um espaço-tempo à medida da história da humanidade. A saída é vivida como um mergulho numa apnéia: atingindo os limites do sufoco. (au bout de souffle!)

(Hélène Michelini)

(O presente texto foi traduzido e elaborado a partir de reportagem da Revista Univers Santé, maio/97)


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