Maio de 2024 – Vol. 29 – Nº 5

Walmor J. Piccinini

A minha vivência pessoal com a psiquiatria começou em 1960 quando estava no primeiro ano de medicina em Porto Alegre. Exatamente no dia primeiro de junho de 1960 comecei a trabalhar com atendente psiquiátrico na Clínica Pinel de Porto Alegre. Fundada em 28 de março e 1960 por Marcelo Blaya Perez que retornara após quatro anos de residência nos Estados Unidos da América. Fizera sua formação na Clínica Menninger em Topeka, Kansas e vinha cheio de ideias para criar um hospital dinâmico em Porto Alegre. Este acontecimento marcou minha vida em vários sentidos, um deles é que fui apresentado ao mais moderno tratamento existente na época, diferente do que era feito nos macros hospitais públicos.

Em 1962 apresentei meu primeiro trabalho num congresso de Psicologia Médica realizado em Ribeirão Preto, SP. Ali conheci muitos personagens importantes da época, Professor Hernan Davanzo Corte, Luiz Cerqueira, Flávio D´Andrea e muitos outros. Tive muita sorte ao ser exposto a melhor psiquiatria do período. Em 1970 já psiquiatra formado, participei do I Congresso Brasileiro de Psiquiatria organizado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O primeiro contato com a história da psiquiatria foi através do livro Psiquiatria do Professor Isaías Paim, depois li muitos outros e muitas teses sobre o assunto. Confesso que comecei a ficar preocupado com o que eu enxergava como distorções ou injustiças feitas em relação aos psiquiatras brasileiros. Achava eu e ainda acho que muitos livros e artigos apresentavam um viés político que procurava apresentar a psiquiatria e os psiquiatras de forma negativa. Comecei a escrever sobre história da psiquiatria como um contraponto àquela história com viés político ideológico e lá se vão mais de vinte anos escrevendo e rebatendo o que considerei e considero uma maneira leviana de encarar a história. Muito me auxiliou nesta jornada foi o fato de ter organizado um índice Bibliográfico dos livros, artigos e teses publicados por psiquiatras e outros profissionais envolvidos na área, psicólogos, sociólogos, historiadores, antropólogos, enfermeiros e outros. De centenas de artigos por mim publicados selecionei alguns para leitura de todos.

O Começo

Uma tese muito repetida é de que “o poder médico” se apossou da loucura e dela fez seu reinado. Muitos textos repetem o título de um artigo de um médico sobre a circulação de loucos pela cidade do Rio de Janeiro como uma tentativa de controle sobre a loucura. Essas ideias me levaram a pesquisar sobre o Rio de Janeiro e dois livros de Luiz Edmundo responderam muitas perguntas a respeito. (O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis e o Rio de Janeiro do meu tempo).

A primeira constatação é que o Rio de Janeiro era a maior cidade africana fora da África, no final do século XVIII; “No Rio, pelo ano de 1799, para uma população de 43.377 homens, há, apenas 19.578 brancos. Triste minoria! E pelo país inteiro a proporção é, pouco mais ou menos, a mesma. Não fosse o índio em quantidade notável, esmagadora, e seríamos hoje quarenta milhões de negros e mulatos.” (Luiz Edmundo). Fiquei pensando por que não aconteceu por aqui algo parecido com o que ocorreu no Haiti onde os negros rebelados expulsaram os colonizadores franceses? A resposta mais simples é que sem planejar os portugueses tiveram muita sorte. Os escravos provinham de diferentes partes da África e de tribos que se odiavam, gente de Moçambique e da Guiné, de Angola e da Costa da Mina, cafres, quiloas, benguelas, cabindas, monjolos e vátuas. Todos com a mesma pele ebânea e retinta. As almas são, entanto, diferentes. Um outro aspecto a considerar é o do maior sucesso de alguns negros que eram artesãos e conseguiram ter uma profissão, os chamados “negros de ganho”. Saiam livremente para trabalhar, pagavam parte do rendimento para o dono e conseguiam economizar para comprar sua alforria, alguns tiveram tanto sucesso que além de liberar suas famílias puderam comprar escravos.

Ainda citando Luiz Edmundo “É uma mescla de gente mais ou menos escura, uma vez que, sob a ação violenta e causticante do sol, o branco vira mulato, o mulato, preto, sendo que o preto retinto. Um verdadeiro povoado africano. Sofala, Benguela, Moçambique. Diga-se de passagem – para cada branco, dez pretos, três mulatos e três caboclos. O português, como em todo o Brasil, mandando, dirigindo, colonizando, impondo a língua, a religião, os costumes, porém, sempre, em grande, em escandalosa minoria. Se Portugal é um país pequeno e sem gente, com um milhão de habitantes na época do descobrimento, quando no Brasil já havia para mais de dois milhões de índios, só na costa!

Como imaginar um poder médico sobre esta gente? Para início de conversa, médicos eram raros e muitos que se diziam médicos eram sangradores, curiosos, feiticeiros. Mesmo para estes a vida não era fácil, se incorressem em alguma falta podiam acabar na fogueira da inquisição.”

Fala-se pouco do que era o Rio de Janeiro até a chegada da família imperial em 1808. Há relatos de extrema sujeira, fezes e urinas atirados pelas janelas, esgotos a céu aberto, os “tigrões” percorrendo as ruas com seus tonéis de excrementos e o que mais nos deixa perplexo é que animais mortos e escravos mortos eram deixados em certas ruas onde os urubus faziam seu trabalho. Casario modesto, umas poucas casas um pouco melhores que foram destinadas a corte que desembarcava. Repentinamente chegam quase 15 mil portugueses de alta hierarquia para dividir esta imundície com os habitantes locais.

O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis.

Extraído das crônicas de Luiz Edmundo

Negros e Médicos do Rio de Janeiro em 1793, gente de Moçambique e da Guiné, da Angola e da Costa da Mina, cafres, quiloas, benguelas, cabindas, monjolos e vátuas. Todo com a mesma pele ebânica e retinta. As almas são, entanto, diferentes

Portugal, sem o pensar, salvou-se, indo buscar o negro, um pouco em toda a parte. O negro, graças às fundas dissenções na terra de origem, entre nós, é maioria e é fraco. Não prepondera. Maquiavel não dá lições ao destino.

Na gleba natal, eles, os negros, formaram outrora nações desavindas que lutaram, que sofreram. Por isso aqui não se unem, antes se detestam e se odeiam. Separam-se por castas, orgulhosas, soberbos, e, como os animais, olham-se de esguelhas, rilhando os dentes.

O que vale é que as chuvas, sobretudo as do estio, profiláticas e violentas, em cheias mais ou menos notáveis, inundando tudo, acabam por conduzir todas essas abjeções caminho do mar. Natureza mãe! Natureza amiga! O homem suja, o vento varre, a água lava e o sol, depois, enxuga.

É uma mescla de gente mais ou menos escura, uma vez que, sob a ação violenta e causticante do sol, o branco vira mulato, o mulato, preto, sendo que o preto retinto. Um verdadeiro povoado africano. Sofala, Benguela, Moçambique. Diga-se de passagem – para cada branco, dez pretos, três mulatos e três caboclos. O português, como em todo o Brasil, mandando, dirigindo, colonizando, impondo a língua, a religião, os costumes, porém, sempre, em grande, em escandalosa minoria. Se Portugal é um país pequeno e sem gente, com um milhão de habitantes na época do descobrimento, quando no Brasil já havia para mais de dois milhões de índios, só na costa!

Nas explorações do comércio, nas especulações das indústrias, em qualquer coisa, enfim, onde haja promessa de ganho ou renda, há sempre metido um padre ou um frade. O bispo Alarcão faz negócios com barras de ouro. Só num dia embarca 16.000 para a Angola. Morre podre de rico. Quem obtém o monopólio dos açougues em Minas? Um padre. Padres e frades cevam-se de comadres. Vão deixando filhos por onde passam; uns discretamente, outros escandalosamente. Certo Frei José, frade jesuíta, numa solenidade do Carmo, após o sermão, pede ao povo uma Ave-Maria para a mulher do bispo que está em trabalho de parto… (Devassa feita pelo padre Cepeda sobre os jesuítas do Brasil, documento existente nos arquivos do Instituto Histórico Brasileiro).

No Rio, pelo ano de 1799, para uma população de 43.377 homens, há, apenas 19.578 brancos. Triste minoria! E pelo país inteiro a proporção é, pouco mais ou menos, a mesma. Não fosse o índio em quantidade notável, esmagadora, e seríamos hoje quarenta milhões de negros e mulatos.

Quando morre, vai apodrecer para as estradas, que a igreja é só para o branco. A Santa Casa só muito tarde é que pensa em fazer um cemitério para escravos. O senhor continua a sua vida tranquila, empilhando dobrões. Alguns há que as escravas moças e belas transformam em rameiras e as mandam aos mercados de Citera vender os corpos. No fim do dia recolhem a féria. Negócio, no tempo, altamente rendoso.

Só não se enterra na igreja o negro, embora crente em Deus, e, em algumas igrejas aristocratas, o mulato. É a piedade cristã do século, no Brasil. Sempre que morre o escravo, e isso pelo menos até o dia em que a Santa Casa de Misericórdia pensa num cemitério para eles, envolvem na própria esteira que lhe serviu de leito durante a vida e atiram-no pelas estradas de pouca frequência, para que vá servir de pasto aos urubus esfaimados. Profilatas magníficos! Vêm eles de bico em riste, as garras afiadas, em número tão grande e, ao mesmo tempo, tão voraz, que o corpo do pobre negro, às vezes, nem tempo tem de apodrecer completamente. Como nas merendas em dias de festa, na casa do vice-rei, é manjar que não chega para todos… Em nuvens cerradas descem os rapaces sobre o cadáver, cobrindo-o, logo, com um manto inquieto e vasto de penas negras. Bicam, ciscam. E quando partem, cindindo o espaço, alegres e revolteando em bulhenta folia, em vez do negro, o que fica na terra batida e escura é um montão de cartilagens, de cabelos e de ossos. A sobra do festim.

Pelos ângulos das ruas onde existem oratórios, ou pelos adros das capelas e igrejas, está a praga miseranda dos mendigos. Quase todos são negros. E velhos. O molambo inútil da escravidão, o trapo das senzalas que o senhor atira fora de portas para apodrecer o mais longe possível da casa risonha e próspera; o estômago de menos na morada, a pobre boca que fica pelas ruas a gemer, a chorar, a pedir, a mão em riste, a voz rouquenha e a alma cansada e triste – Uma esmolinha pelo amor de Deus! Quase nus, os pobrezinhos têm os membros cobertos de feridas, quando não estão deformados pela elefantíase, pela lepra ou por chagas asquerosas. Num país de fartura, não têm o que comer. Num país de religião, não têm quem os proteja. Semimortos, enterrados na própria miséria, inspirando aos que os veem ao mesmo tempo nojo e piedade, eles ficam ao sol, à chuva, gemendo, chorando, enxotando as moscas, a cada vulto que passa estendendo a mão trêmula, mão murcha e espectral, feita apenas de peles e de ossos… Por vezes a tumba da Misericórdia passa e carrega um, dois, três, frios, de olhar vidrado e lábios a sorrir. São os felizes de quem a Morte, mãe e amiga, de quando em quando se compadece.

Medicina: à influência poderosa dos jesuítas deve-se a decadência, o atraso, quase o desaparecimento da medicina em Portugal, que até a época do descobrimento do Brasil tanto florescera. Tudo porque, para aqueles intolerantes e fanáticos loyolistas, o nosso corpo, obra de Deus, não podia sofrer o desrespeito nem o agravo da pesquisa humana. Diante de tão insólita e nefasta teoria, que colocou o velho reino quase fora da civilização, embora muito perto do Céu, só restava um recurso aos que se sentiam com vocação para a carreira médica: emigrar, e num país, de maior cultura, embora de menor religião, beber o ensino que se lhe negava em Portugal. No ano de 1750 era assim, com efeito, que se ia estudar anatomia à Coimbra. Quem conta é Manuel Chaves, médico português – A anatomia daqueles tempos, em Coimbra, era dada em casa do lente Francisco Gomes Teixeira, que aos alunos mostrava um carneiro esfolado, numa bacia de prata, e dizia-lhes: este é o fígado, este é o baço, estas as tripas… Com tão singulares mentores não podia, na verdade, existir uma razoável medicina na Metrópole. Nem no Brasil. Que possuíamos nós, porém, pelo tempo, como indivíduos capazes de curar, mas todos, mais ou menos, equivalendo-se na arte de investir contra a vida do próximo?

Possuíamos, em primeiro lugar, os médicos e os cirurgiões formados em Coimbra, passando, todos eles, pela bacia de prata e pelo carneiro esfolado do lente Gomes Teixeira, ases famosos da medicina lusitana, e dos quais o desembargador Brochado, que era do tempo, dizia que curavam por ignorância e matavam por experiência. O número deles, felizmente, era, entre nós, bem pequeno. Ficavam todos na Metrópole. E tanto assim foi, que o Conde de Resende escrevia em fevereiro de 1799 ao Senado da Câmara, pedindo que se criassem pensões a um médico e a um cirurgião que, mandados a estudar na Europa, pudessem suprir ou contrabalançar a falta de pessoal oficialmente habilitado e de que aqui tanto carecíamos.

Frei Caetano Brandão, bispo do Grão-Pará, porém, não queria saber dessa gente vinda com diplomas para curar: melhor tratar-se uma pessoa com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto de que com um médico desses vindos de Lisboa, dizia ele. E, talvez com razão. Além desses doutores, havia ainda os licenciados. De acordo com o regimento da Real Junta do Porto Medicato, todo cidadão que apresentasse um atestado provando exercício clínico, fosse ele médico, fosse ele cirurgião, tanto em Portugal, como no Brasil, era submetido a exame, a fim de receber uma carta, com a qual podia, desde logo, exercer o ramo da medicina em que se habilitasse. Se o número dos primeiros doutores, formados por Coimbra, era insignificante, o dos segundos, em compensação, formou, entre nós, espessa e notável maioria. O tipo desse licenciado, que a literatura histórica deslembra, mas de cujo pitoresco vivem sempre sorrindo os que se afundam nas pesquisas das cousas de outros tempos, anda a pedir as simpatias e as glórias da novela. E, com efeito, um vulto singular, de alto relevo cômico, com toda a importância de suas exageradas atitudes, de seu ar doutoral, e, sobretudo, daquela consideração profunda, que lhe dava a carta de ofício, pedaço de pergaminho cor de âmbar, mescla de fita, lacre e rabisco, mostrando as assinaturas dos Senhores Comissários da Real Junta e mais outras complicadíssimas chancelas. Depois dos mandões da Mitra e dos mandarins emproados da Coroa, ninguém jamais aqui mostrou maior sinal de empáfia e prepotência: Entrava o licenciado pela casa das famílias, dessorando autoridade e valia, impressionando pela indumentária, expectorando frases em latim, o idioma científico da época, solene e majestático. Curvavam-se os incautos à figura altiva e apavonada do sabichão da Grécia, como se em lugar dos três-ventos de castor, trouxesse ele, à cabeça, o próprio capacete de Minerva. E era um nunca mais acabar de considerações e de propinas a dilatar-lhe a algibeira e o prestígio, enquanto a sabença ia, por sua vez, dilatando a trágica extensão dos obituários. Atenção, porém, que vou apresentar-vos, agora mesmo, um desses semideuses da centúria, o licenciado Jacinto José da Silva, que está saindo da sua residência, à Rua do Piolho, para ver um enfermo. Olha-o. É uma figura melancólica, toda forrada de negro, da cabeça aos pés: negro o tricórnio, negros a casaca, a véstia, a capa, o calção, a meia e as sapatrancas de salto raso e boca de bezerro. Só o nariz é rubro, beque austero, onde se assenta um par de vastíssimos quevedos, lunetas enormes, embutidas em ponta de boi e atadas por fitas de couro atrás da orelha. Até parece, o homem, um escafandro, dentro de tanto couro e tanto vidro. À porta, seguro pela manopla solícita do escravo, espera-o o Pégaso das visitações clínicas, um autêntico macho ferrado, de orelhas e caudas longas, e, certamente, com menos atestados de óbito na consciência. Há dois alforjes pendentes da silha do animal, e, dentro deles, com o pergaminho da semidoutorância, caixas, frascos com medicamentos, uma seringa e vários objetos de sangrar. Se fosse época de epidemias, havíamos de vê-lo numa couraça antisséptica, um balandrau branco, embebido em vinagre e outras drogas tremendas, na boca um dente de alho atravessado e, na mão sinistra e piedosa, um galhinho de arruda e mais o terço em contas de jacarandá. Para recebê-lo o quarto do doente se empavesa. A cama veste se do melhor linho que há na casa. Saem todas as rendas e bordados dos arcazes. Um pedaço de pano embebido em aguardente desliza sobre o rosto, pés, mãos, pescoço e braços do doente, retificando lhe a brancura. Se o enfermo é mulher e o licenciado consegue penetrar o santuário do casal, precatam-se os maridos, dissimulando, quanto possível, o ciúme muçulmano, com maneiras gentis. Por causa das dúvidas, entretanto, são os esposos que examinam, pelos clínicos, as esposas enfermas. – Queira vossa mercê, diz o médico, a apontar para a doente, espetar-lhe o fura-bolos, aqui, na altura da virilha, a ver se lhe dói. O marido carrega o dedo. A mulher dá um berro. Esculápio faz um movimento de cabeça. O diagnóstico está feito. Seu Doutor (e isso é ele o primeiro a dizer) aí está para curar, mas, se Deus quiser, pois a responsabilidade, afinal, não é nunca sua, senão quando o doente fica bom. Se morre, a culpa é sempre de Deus. Sempre. Esculápio, ali põe-se de joelhos, arranca os escanfândricos quevedos, e, erguendo aos céus a voz sumida e trêmula, murmura com piedade: – Foi a vontade do Senhor! E todos se conformavam, acreditando que só mesmo a vontade de Deus seria capaz de vencer a medicina formidável do Esculápio. Quem vingava, indiretamente, a clientela infeliz, lá no Reino, era a Santa Inquisição, que os torrava de quando em quando, em piedosíssimas fogueiras, sempre que lhes descobria, nas dobras da pantalona ou da redingota, livros que dissessem ideias novas, sobretudo as dos enciclopedistas franceses. Não ficava um só para remédio, um só para dizer, depois, da clemência do Sr. Cardeal Arcebispo de Lisboa… O Dr. João Tomás de Castro, médico fluminense, apesar de homem profundamente católico, por causa de uma brochurazinha dessas, foi queimado vivo… Embora sem escolas, mesmo de primeiras letras, o Brasil, que deu no século XVIII, Bartolomeu de Gusmão, o inventor do aeróstato, Antônio José da Silva, o Molière português que encheu a centúria com o seu nome, Morais, o primeiro que escreveu o dicionário da língua, e a plêiade brilhante de poetas mineiros, havia de dar, naturalmente, médicos. E os deu, para o tempo e para as escolas onde aprendiam, realmente notáveis. Em Portugal brilharam os brasileiros Francisco de Melo Franco, médico de grande fama, frequentador do cárcere da Inquisição, e que dos padres se vingou escrevendo uma sátira tremenda que se chamou – O Reino da Estupidez.

É da lavra de Melo Franco, ainda, seja dito de passagem, a primeira obra regular escrita em linguagem portuguesa sobre higiene. Outros médicos, entanto, ainda demos, entre eles José Francisco Leal, catedrático de Coimbra e demonstrador de anatomia da mesma universidade, José Correia Picanço, médico da Corte de D. Maria I, o que voltou ao Brasil por ocasião da partida de D. João VI, então príncipe regente, como cirurgião mor do Reino, isso para não citar outros. Se mais notáveis deixamos de dar, a culpa foi tão-somente devida aos naturais estorvos que se antepunham aos filhos da terra, que tinham a veleidade de amar a instrução e os livros. Além de não possuirmos escolas no país, para a Europa só ia o filho do rico, e que, em geral, por lá mesmo ficava ganhando, com vantagem, a sua vida, que os outros, esses, coitados, tinham muita sorte se, em seu caminho, encontravam, por acaso, uma alma piedosa, que lhes quisesse meter o alfabeto na cabeça.

O tempo babalaôs de exígua astrologia e ovelhas do cristianismo, devotos de Ogum e de São Benedito, os ciganos, os bruxos brancos do Reino e os inspirados, que empregavam a cura sugestiva, já por D. João IV oficialmente reconhecida, como se vê pela pensão por ele mandada dar ao soldado Antônio Rodrigues, pensão de 40$000 por ano pelas curas que tem feito com palavras. Ninguém se espante, porém, ao saber que, muita vez, ao lado de tais velhacos e impostores, juntaram-se homens de reconhecida competência, como esse mais que conhecido Dr. Curvo Semedo, cubiculário real, espelho da ciência médica na Metrópole. Veja-se, a propósito, o que escreveu, ele, nas suas Observações Doutrinárias. É de espantar. Aqueles que havendo sido bem-casados, e muito amantes de suas mulheres, passavam a uma tal metamorfose ou mudança odiosa que nem as podiam ver, nem se deitar com elas na mesma cama, fiz reconciliar em amizade, mandando que, às escondidas, untassem a palmilha dos sapatos do amancebado com esterco da manceba, e a palmilha dos sapatos da manceba com o esterco do amancebado. E daquele dia por diante se converteu em desagrado e aborrecimento de ambos o que até aquele tempo tinha sido cegueira do amor lascivo etc.

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